Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult060d.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/01/08 13:29:15
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
Narciso de Andrade (4)

Leva para a página anterior
Artigo publicado no site PortoGente em 31 de dezembro de 2007:
 
  • Narciso de Andrade
    O Porto de Santos perde seu poeta-repórter
    Texto publicado em 31 de Dezembro de 2007 - 18h41

  • por Alessandro Atanes *

    “Veio a noite, e veio a lua,
    e uma tristeza infinita... Mas a morte,
    a morte não veio.”

    Narciso de Andrade

     

    Escrevo este texto no início da tarde do último domingo, ainda em 2007, logo depois de ter recebido do escritor Flávio Viegas Amoreira a notícia da morte do poeta Narciso de Andrade, aos 82 anos, no início da noite de sábado (29), na Casa de Saúde de Santos, onde estava internado desde o Natal.

     

    Não conheci Narciso. Fomos apresentados durante um evento de leitura de poesia no consistório da Unisanta creio que ainda no primeiro semestre de 2007 e ele já estava bastante frágil. À sua família e amigos ficam meus pensamentos e um abraço.

     

    Se não tive a sorte de conhecê-lo, tive pelo menos o prazer de escrever algumas vezes sobre sua poesia ao longo do ano graças à publicação de seus poemas pela editora da Unisanta, que no final de 2006 lançou o volume Poesia sempre, com parte de sua produção lírica escrita ao longo de 50 anos reunida pela primeira vez em livro.

     

    Dos 101 poemas de Poesia sempre, temos cinco sobre a morte. Eles não apresentam muita diferença em relação aos demais. Como grande parte da poesia de Narciso, seu tema é dissolvido no cotidiano ou, como assinalou Lúcia Maria Teixeira Furlani no prefácio, é o próprio cotidiano que é arrancado de sua normalidade e transportado a outra dimensão: são mortos que resistem, "à caça de ecos e nuvens e cheiros" em Os mortos; é a criança que passa na rua e faz algum barulho no Velório; é a preparação para a morte em Poema da morte não vinda; os cuidados da família com o corpo do morto em A pele do morto; ou a vida prosaica em A face do morto.

     

    Mas nesse momento que o próprio poeta se manifeste sobre a morte:

     

    Os mortos

    Os mortos resistentes
    se quedam mudos calados nunca.

    Permanecem resistindo

    a todas as fomes e ânsias.

    Resistem freneticamente
    até ao que convencionamos chamar vida.

     

    E nada lhe devora as entranhas
    realizadas no cristalizado espírito.

    Entranhas maravilhosas

    recostadas no solo da eternidade.

    Ah, os mortos são fabulosos caçadores
    à caça de ecos e nuvens e cheiros!

     

    Aos mortos – implacavelmente mortos embora –
    não chamaremos dizimados
    que a sua matéria palpita e explode

    em cada tempo da vida nossa
    que para eles é morte.

    Nós não passamos de formações

    operadas sobre carnes falecidas.
    Nossa isso que chamamos alma
    é a forma dos antepassados

    por nós vivida no presente.

    Quando caminhamos
    nossos mortos nos acompanham.

    A nossa condição de liberdade

    se apóia na incrível
    presença dos mortos

    em sublime reino sem catálogo vivendo
    devo confessar que vos amos
    e por entre pedras folhas bactérias

    como suave inseto circulo
    ouvindo meu sangue palpitar
    na vida que hoje tenho

    e toda feita de outrora.

     

    Poema da morte não vinda

    Senti que a noite crescia
    diante de meus olhos e por isso
    me preparei para morrer. Mas, a morte...

    A morte não veio.

     

    Veio, isso sim, o suave rumor
    de ondas rolando na distância,
    de pétalas tombando e de pássaros
    em revoada sobre alamedas de melancolia,
    agosto em pranto sobre o instante.

     

    E veio um odor de rosas,
    de cravos, flores silvestres,
    campinas recobertas de orvalho,

    Terra molhada e a doce
    maresia de uma praia solitária...

     

    Cheia de mistério e presságio,
    diante de meus olhos a noite crescia,

    Mas a morte... A morte não veio.

     

    Veio, isso sim, incontida ânsia,
    rebelado desejo, louca vontade
    de correr sobre rochedos
    pisando algas e espumas
    e deixar os membros doloridos
    irem cedendo, pouco a pouco,
    ao convite azul das águas fundas...

     

    Veio a noite, e veio a lua,
    e uma tristeza infinita... Mas a morte,
    a morte não veio.

     

    Epílogo

    No lançamento de Poesia sempre escrevi que os poemas de Narciso são "frutos da experiência do autor como repórter cobrindo as atividades portuárias, mas também revelam detalhes da cidade e de seu clima. Além dos temas do cotidiano urbano e portuário, Narciso escreve também muita poesia lírica, com peças com nomes de mulheres e a lua como motivo literário".

     

    Na introdução, Adelto Gonçalves conta um pouco da experiência de Narciso como repórter do porto na seção Vida marítima, do jornal O Diário:

     

    Amassava lama à porta dos armazéns, subia nos navios, conversava com os comandantes, ouvia os doqueiros, os estivadores, os carregadores que, em fila indiana, suportavam nos ombros sacos de 60 quilos de café, a subir e descer os vapores. Não havia dia em que não chegasse à redação com uma boa reportagem. "Como falava inglês e francês, não tinha dificuldade para conversar com o pessoal dos navios estrangeiros", conta. "Naquela época, as grandes personalidades do mundo sempre passavam por aqui a bordo de navios de passageiros".

     

    Na semana passada, por coincidência, escrevi sobre a literatura no turismo e ali destaquei a utilização dos versos iniciais de Cais, de Narciso de Andrade, na entrada da Ponte Edgar Perdigão, na Ponta da Praia:

     

    Com tanto navio para partir
    minha saudade não sabe onde embarcar...

     

    Cais é um poema que também revela o lado repórter de Narciso. Nele, como já também escrevi antes, a perspectiva do narrador é a de quem está dentro do porto, pisando no chão do cais, olhando as espumas que ficam no lugar dos cascos.

    Narciso manteve uma amizade literária com Roldão Mendes Rosa, eles eram os poetirmãos. Para encerrar o Porto Literário desta semana triste para a literatura santista, um poema homenagem que Roldão escreveu para Narciso:

     

    Ao poetirmão do vento e das maresias

    Para Narciso de Andrade

     

    O poeta, Irmão, se despede do dia.

    O corpo não sabe
    (desaprende a cada signo que lê
    a cor das horas).

    O corpo ama, dorme, come, trabalha.

    Não sabe
    que todo longe só é longe no exílio.

     

    O poeta sabe e sofre antes do corpo.

    Ele ouvia (podia ouvir)
    o horizonte e seus navios,
    o último cargueiro da madrugada marítima
    na névoa da barra,
    as pombas no ombro do fundador da Cidade,
    os imortais pardais
    no ombro das árvores que anoitecem na praça.

     

    O corpo, Irmão que sabes,
    nada sabe do poeta.

    O poeta percorre sua íntima geografia em névoa,
    pedra, sal, maresia.

    Os pássaros que ouvia talvez tenham morrido,
    ou simplesmente dormem (se é que existiram).

    Os navios (há navios?) provavelmente deslizam invisíveis
    a caminho da barra.
    E o porto, velho Irmão,
    é um terno rumor
    de pedra caída no começo do mundo.

    O mundo começa longe.

     

    No segundo mês do ano de 24, o mundo começa
    numa rua de lojas sonolentas,
    de bondes e navios que atravessam o sono.

    (Um dia, o poeta escreveu:

    “Nasci num porto do Atlântico.
    Dia e noite as águas cantam.

    Ouvimos o mar desde o berço
    no cais na praia no sono”.)

                    E não pôde continuar.

                    E não continuará.

     

    O poeta irmão do vento se despede sem pássaros

    do dia que se desprende
          (O corpo é burro, nada sabe do poeta.)

    O poeta está preso
    na rua que o fez e o deu livre à Cidade.

    Na mesma rua onde brincou de tempo e vento
    o poeta está preso.

    (E nada sabia naquele tempo a respeito da palavra exílio,
    senão que um sabiá cantava na memória de alguém.)

     

    Referências:

    Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.

    Roldão Mendes Rosa. Poemas do não e da noite. São Paulo: Editora Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal, 1992.

     

    Narciso de Andrade em Porto Literário:

    Lacunas da história e da poesia santista são preenchidas por editoras da cidade, 03/abril/2007.

    Diálogos entre Narciso de Andrade e Roldão Mendes Rosa, 10/04/2007.

    Narciso e Pagu: entre o mito e a amizade, 17/04/2007.

    Literatura do porto ou da cidade?, 08/05/2007.

    Um ciclo sobre o ciclo do romance de identidade portuária, 17/07/2007.

    O porto de nossos dias e o chão do cais, 31/07/2007.

    Com tanto poema para partir, 24/12/2007

    A coluna de Alessandro, em PortoGente, publicada em 10/4/2007:

  • Conversa literária
    Diálogos entre Narciso de Andrade e Roldão Mendes Rosa
    Texto publicado em 10 de Abril de 2007 - 01h01

  • por Alessandro Atanes *

    I - O poetirmão

    Na introdução de Adelto Gonçalves a Poesia sempre, reunião de poemas de Narciso de Andrade, o professor e romancista destaca a amizade literária entre Narciso e Roldão Mendes Rosa, poetirmãos, como lembra o autor de Barcelona Brasileira.

     

    Os dois se conhecem ainda no ginásio no Colégio Santista. Nos anos seguintes a amizade se consolida. Nos primeiros anos pós-guerra, Narciso era um jovem repórter em Santos, trabalhava em O Diário, escrevendo notícias sobre o porto. Na Rua XV de Novembro, aos finais de tarde, unia-se a Roldão no Bazar Paris, livraria e ponto de encontro que atraía pensadores de todo o país. Adelto Gonçalves conta:

     

    Ali, várias vezes, Narciso e Roldão encontraram e travaram longas conversas com Washington Luís, o elegante e discreto ex-presidente da República que vivia como uma sombra depois de seu regresso do exílio. [página 19]

     

    Na virada dos anos 40 para os 50 - ainda estamos na introdução - Roldão já tinha se projetado como poeta. Nesse período ele passa a freqüentar o grupo de intelectuais reunidos por Cid Silveira, entre eles Miroel Silveira e Cassiano Nunes, para o qual o poetirmão levaria também Narciso.

     

    O diálogo entre os dois acabou extravasando para a poesia. Em uma das estrofes de Ao poetirmão do vento e das maresias, de 1981, Roldão descreve o cotidiano portuário do repórter de vista poética:

     

    O poeta sabe e sofre antes do corpo.

    Ele ouvia (podia ouvir)
    o horizonte e seus navios,
    o último cargueiro da madrugada marítima
    na névoa da barra,

    As pombas no ombro do fundados da Cidade,
    os imortais pardais
    no ombro das árvores que anoitecem na praça.

     

    Em Café da vida presa, de Narciso (foto), o ambiente é o do encontro. O interlocutor da voz narrativa não tem nome, não podemos afirmar que seja Roldão, mas é chamado de amigo por ela. O poema vale a citação completa:

     

    Havia mesas e,
    e eram muitas mesas.

     

    Havia pessoas e,
    eram muitas pessoas.

     

    Sobre as mesas
    café, refrescos, sanduíches.

    Cigarros para as conversas,
    fósforos para os cigarros.

     

    Havia óculos tímidos
    atravessado por múltiplos olhares.

     

    Talvez um pouco de sonho
    e até luar houvesse
    naquela tarde, naquele café.

     

    Mas o que havia mesmo, amigo,
    era vida. Embora encarcerada
    mas vida, muita vida
    que ainda não fora vivida
    e talvez um dia explodisse.

    E talvez nunca. 

     

    Talvez resposta mais efetiva de Narciso a Roldão tenha sido a apresentação que escreveu para Poemas do não e da noite, obra póstuma de Roldão, com poemas selecionados pelo poetirmão Narciso, que termina assim:

     

    Tendo sido escolhido para selecionar seus poemas em razão de nossa longa e fraterna amizade procurei agir como se fora o próprio poeta, fiel ao seu expresso desejo de jamais publicar algo que nada viesse a acrescentar (...).

    Roldão Mendes Rosa não publicou nenhum livro em vida. Resta, pois, a pergunta: esta seria a obra que ele publicaria? A resposta, me parece, deverá ser dada pelo leitor no momento da fruição dos poemas.  

     

    A conversa entre os dois também ocorre na descrição poética da cidade portuária. Porto Literário escreveu uma vez sobre como o poema Porto, de Roldão, expressava certa "nostalgia da partida", como caracterizei na ocasião, isto é, a expressão poética da "condição de quem vive em uma cidade portuária, ao sabor dos embarques e desembarques, mas sem partir em navio algum". Idéia concretizada logo na primeira estrofe:

     

    Por que
    este amor ao cais
    se o que espero
    não viaja?

     

    Cais, de Narciso, também é feito a partir da perspectiva de quem fica. Aí vai ele:

     

    - 1-

    Com tanto navio para partir
    minha saudade não sabe onde embarcar...

     

    - 2 -

    A água comove a pedra
    que parece fremir levemente.

     

    Na oscilação breve das marolas
    há homens malogrando olhares
    vagos, indecisos, alongados.

     

    (Completa ausência de tempo.

    O calendário se desfaz
    nas sombras, na brisa e na anatomia
    recortada do estuário).

     

    - 3 -

    Cambia todos os tons
    essa angústia a flor da água.

     

    - 4 -

    Não há gaivotas nem quaisquer
    outros pássaros oceânicos.

    Todavia aquela espuma brilhante
    sugere o roçar logo de algum.

     

    - 5 -

    Silenciosamente pesados
    firmam-se nas horas os navios,
    fortuitos donos do porto,
    transitórios proprietários
    de metros de alvenaria
    que fazem maior a tristeza
    da imensa nostalgia portuária.

     

    Ah! receber todos os adeuses,
    todos os abraços, todos os olhares
    de ida e volta e permanecer
    ancorado na paisagem imutável!

     

    - 6 -

    Passarinho no topo do mastro
    partirá ou há de voltar para a terra?

     

    Esse espaço já se referiu uma vez à hipotipose, isto é, a descrição literária de um determinado espaço. A expressão é de Umberto Eco e tem a serventia de despertar as idéias para a individualidade de cada estilo e da narrativa de cada um dos poetirmãos em relação ao espaço portuário.

     

    Primeiro Porto, de Roldão. Porto é o nome que se dá ao espaço econômico com infra-estrutura multimodal para o embarque e desembarque de pessoas, idéias e mercadorias, isto é, um lugar em que várias coisas ocorrem ao mesmo tempo. Quem vê o porto está fora dele. O ponto de observação é da cidade, de uma das janelas do centro ou das calçadas dos bairros portuários, cuja distância visual pode ser imaginada no verso “vejo lenços que acenam”.

     

    Cais, de Narciso, opera em outro plano. Desta vez estamos dentro do porto - a perspectiva do repórter que entrevistava estivadores e trabalhadores do cais - e agora podemos notar um passarinho pousado no mastro e até a ação do mar e da maresia na beira do cais ("A água comove a pedra/ que parece fremir levemente.", lembrando que fremir, diz o dicionário Michaelis, é vibrar, agitar-se levemente).

     

    No espaço do cais, temos acesso à ação dos homens e à percepção do tempo (o da sucessão dos momentos e também o do clima) na paisagem humana.

     

    Até a estrofe que caracteriza a nostalgia da partida é realizada a partir de quem está próximo para identificar os navios, "fortuitos donos do porto", e seus transitórios "metros de alvenaria".

     

    Quem lá trabalha ou muito visita recebe um excesso de abraços, adeuses, acenos e olhares que a soma das partidas e chegadas "que fazem maior a tristeza/ da imensa nostalgia portuária.".

     

    Talvez esta sobrecarga de adeuses seja a origem da dúvida ("minha saudade não sabe onde embarcar") que sinaliza que deixar a cidade portuária já tinha passado pela cabeça do narrador, mas ele nada faz e acaba por permanecer "ancorado na paisagem imutável".

     

    Epílogo

    Não tenho como conferir se Roldão Mendes Rosa (1924-1988) nenhum livro havia publicado em vida por excesso de autocrítica, por algum motivo extraliterário ou pela falta na cidade de condições editorias, isto é, casas editoras e parque gráfico, hipótese que deve ser levada em conta para escrever também a história das edições, das editoras e dos espaços literários da cidade.

     

    Considerando tudo isso, deve se ressaltar o quanto é importante esta edição em livro pela primeira vez dos poemas de Narciso de Andrade em Poesia sempre, poeta e intelectual nascido em 1925, farol que, com seus depoimentos e textos de e sobre a história e a ficção de Santos, há mais de meio século vem jogando luz nas letras desta cidade portuária.  

     

    Referências:

    Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.

    Mais:

    Lacunas da história e da poesia santista são preenchidas por editoras da cidade, 03/abril/2007.

     

    Roldão Mendes Rosa. Poemas do não e da noite. Com apresentação de Narciso de Andrade. São Paulo-Santos: Editora Hucitec, Prefeitura Municipal de Santos, 1992.

    Mais:

    Duas sombras sobre o cais e o estilo do imperador, 25/julho/2006.

    Um porto para cada história, 18/julho/2006.

    Paisagem, trabalho e máquinas narrativas, 10/janeiro/2006.

    Considerações sobre um poema de Roldão, 13/setembro/2005.

     

    Umberto Eco. Les sémaphores sous la pluie. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.

    Mais:

    A expressão verbal do espaço portuário, 12/setembro/2006.

    A coluna de Alessandro, publicada em 17/4/2007 em PortoGente:

  • Outras conversas
    Narciso e Pagu: entre o mito e a amizade
    Texto atualizado em 17 de Abril de 2007 - 01h27

  • por Alessandro Atanes *

    A partir da edição de Poesia sempre, primeira coletânea de poemas de Narciso de Andrade, o Porto Literário da semana anterior mostrou um pouco do diálogo da obra do autor com a do poeta Roldão Mendes Rosa, que chamava Narciso de poetirmão.

     

    Hoje veremos, a partir do poema Pagu, do mesmo livro, o diálogo de Narciso com Patrícia Galvão, o nome por trás do famoso pseudônimo. Antes, vamos à sua transcrição:

     

    Pagu

    eu ouvia falar de Pagu
    de sua coragem de sua valentia
    de sua beleza

    contavam histórias de Pagu
    cobrindo seu corpo
    o companheiro que tombava
    enfrentando as patas dos cavalos
    e o sabre dos milicianos
    na Praça da República
    nesta cidade de Santos

    contavam que Pagu
    fora traída por seus companheiros
    e quanto martírio sofreu
    na imunda cadeia pública
    desta cidade de Santos
    Pagu mulher virando mito

    falavam das viagens de Pagu
    a estranhos orientes
    andando de bicicleta com o rei
    trazendo as primeiras sementes de soja
    Pagu nas ruas de Paris
    ao lado de Edith Piaff
    que vendia castanhas e cantava
    Pagu e Edith
    na cidade de Paris
    com frio, com fome, com tosse
    sei lá! É noite em Paris
    e tudo pode acontecer
    eu ouvia muito falar da beleza de Pagu
    de suas formas ardentemente femininas
    de seus olhos capitulinos
    de seus lábios violentamente pintados
    de sua figura dominadora
    nos arredores da Escola Normal Caetano de Campos
    na austera cidade de São Paulo

    eu ouvi falar tanta coisa de Pagu
    que até pensei que ela não existia
    era uma invenção de visionário
    revolucionários que tomam chá com limão
    tanta coisa ouvi
    que imaginei uma mulher impossível
    jamais nascida increada
    a Pagu das lendas e dos martírios

    sonhei com Pagu até encontrá-la
    reciclada em Patrícia Galvão

    fomos amigos
    era tudo verdade

     

    Na verdade, o que ocorre no poema não é um diálogo, pelo menos nos termos em que o assunto foi tratado na semana passada. Lemos em Pagu, de fato, uma espera pelo diálogo, uma expectativa, até um pouco de ansiedade do narrador. Ele ouve tantas coisas fantásticas sobre Pagu que chega até a desacreditar de sua existência ("até pensei que ela não existia/ era uma visão de visionário").

     

    Assim como o professor Adelto Gonçalves destacou na introdução de Poesia sempre, vemos também em Pagu o gosto de Narciso de Andrade pelas coisas e formas reais. Ao transformar a amiga em objeto literário, o poeta celebra a concretude da vida, nesse caso por preferir a pessoa real ao mito, ainda que este tenha sido a forma com a qual o poeta primeiro travou contato com o tema da poesia, que começa em tom de lenda:

     

    eu ouvia falar de Pagu

    de sua coragem de sua valentia

    de sua beleza

     

    E a segunda estrofe amplia o efeito ao por o sujeito da ação no plural e em forma indeterminada: "contavam estórias de Pagu". E ele continua pelas demais estrofes, repetindo o motivo: "contavam que Pagu", "falavam das viagens de Pagu", "eu ouvia falar da beleza de Pagu", até o "eu ouvi falar tanta coisa de Pagu".

     

    Nessas estrofes Pagu enfrentou milícias, traições e a cadeia; tomou um navio no porto para o oriente; trouxe sementes de soja para o Brasil; conheceu Edith Piaff em Paris; passou fome, frio e tossiu; mas era linda, de "formas ardentemente femininas", "olhos capitulinos", "lábios violentamente pintados", um ser que o poeta chega a pensar que não existia, imaginando-a "impossível". Mas o narrador encontra é Patrícia Galvão e assim termina o poema:

     

    sonhei com Pagu até encontrá-la

    reciclada em Patrícia Galvão

     

    fomos amigos

    era tudo verdade

     

    Na introdução aos contos policiais de Safra macabra (que Patrícia Galvão havia assinado com outro pseudônimo, King Shelter), o crítico Geraldo Galvão Ferraz, filho da escritora, conta que no final de sua vida Patrícia Galvão costumava dizer que detestava ser chamada de Pagu: "Pagu era o rótulo que parecia designar, segundo ela, uma pessoa que já não existia".

     

    Talvez seja isso o que Narciso pressentia em sua expectativa de diálogo: partir do mito Pagu para chegar à verdade Patrícia Galvão. Só que ao contrário do que queria a escritora e intelectual, por mais que Patrícia Galvão tenha sido mais que Pagu, Pagu nunca deixou de ser parte dela.

     

    Era tudo verdade.

     

    Referências:

    Narciso de Andrade. Pagu. In: Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.

    Geraldo Galvão Ferraz. A pulp fiction de Patrícia Galvão. In: Patrícia Galvão como King Shelter. Safra Macabra: contos policiais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.   

    E a coluna de Alessandro, também em PortoGente, publicada em 24/12/2007:

  • Turismo literário
    Com tanto poema para partir
    Texto publicado em 24 de Dezembro de 2007 - 18h40

  • por Alessandro Atanes *

    O caderno de turismo da Folha de S. Paulo nesta semana que acaba trouxe uma reportagem sobre turismo literário no Rio de Janeiro, com sugestões aos turistas para que visitassem e conhecessem os lugares freqüentados por Machado de Assis na então capital do Império e, posteriormente, da República. Considerado por muitos nosso maior escritor, é nas ruas do Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX que o bruxo do Cosme Velho (bairro carioca) faz seus personagens andarem e viverem suas tramas.

     

    I

    E turismo literário em nossas terras, como seria? Um indício é a Ponte Edgar Perdigão, de cujos atracadouros partem e chegam barcas que transportam diariamente centenas de pessoas entre a Ponta da Praia, em Santos, e as praias do Góes e de Santa Cruz dos Navegantes, em Guarujá. Desde a reinauguração da ponte, qualquer um que ali entra pode ler à direita o verso inicial de Cais, poema de Narciso de Andrade:

     

    Com tanto navio para partir
    minha saudade não sabe onde embarcar...

     

     Foto: Skyscrapercity

     

    Que frase para um lugar onde se tomam barcos, hein? Quem escolheu o verso para o local foi o secretário de Comunicação da Prefeitura de Santos à época da inauguração do local, José Alberto Pereira, o Sheik, co-autor de Santos: uma história de pioneiros, piratas, revoltas, epidemias, carnaval e futebol. No lançamento do livro, em março deste ano, ele me contou que na época da inauguração da ponte, no final de 2006, estava procurando por uma boa frase para o local e a descobriu em uma matéria da repórter Elcira Nuñez y Nuñez, de A Tribuna. Elcira havia me entrevistado sobre a pesquisa que faço sobre o romance Navios Iluminados e outras literaturas portuárias e, para completar a matéria (Porto santista é fonte de inspiração), acabou escrevendo também sobre o poema de Narciso, que eu ainda não conhecia e que, por coincidência, acabou sendo publicado pela primeira vez em livro logo depois, em dezembro de 2006 (Lacunas da história e da poesia santista são preenchidas por editoras da cidade).

     

    Fiquei muito satisfeito ao ver que uma entrevista sobre a pesquisa que faço permitiu à repórter acrescentar novos elementos ao material e que todos eles juntos conseguiram sensibilizar um secretário de governo (ainda bem que Sheik é repórter e escritor, e não um burocrata).

     

    No caso da ponte Edgar Perdigão, a frase do poeta é apenas ilustrativa, mas o exemplo tem de ser seguido e ampliado.

     

    II

    Ainda pelas proximidades da Ponte Edgar Perdigão temos mais uns versos ilustrativos. São do poema Da Ponta da Praia, em que Alberto Martins poetiza a visão dos navios entrando ou saindo do estuário santista, visão que atrai tantos visitantes ao calçadão à beira-mar.

     

    Da calçada vejo
    a quina de aço
    – feito cunha –
    na paisagem:

    A Pouca Farinha
    o forte em ruínas
    o Góes... e por aí vai,
    devorando a outra margem.

    Boa viagem.

     

    Da Ponta da Praia é um poema do livro Cais. Ali, os versos são acompanhados por uma série de gravuras feitas pelo próprio autor. A página dupla digitalizada abaixo tem seu espaço dividido entre uma gravura e o trecho final do poema acima transcrito.

     

     

    A imagem abaixo da capa de Transatlânticos de Cruzeiros Marítimos – O Passado no Presente, do colega de PortoGente Laire José Giraud, mostra a atenção que recebem os navios e suas cunhas que "devoram a outra margem".

     

     

    Outros pontos da cidade também podem ser ilustrados poeticamente. Mas a própria literatura também pode despertar interesse turístico, de forma autônoma, sendo ela mesma o objeto de interesse dos visitantes. Voltamos a isso na próxima semana.

     

    Canja

    Enquanto isso, fiquemos com os dois poemas citados:

    Cais, de Narciso de Andrade:

     

    – 1 –

    Com tanto navio para partir
    minha saudade não sabe onde embarcar...

     

    – 2 –

    A água comove a pedra
    que parece fremir levemente.

     

    Na oscilação breve das marolas
    há homens malogrando olhares
    vagos, indecisos, alongados.

     

    (Completa ausência de tempo.

    O calendário se desfaz
    nas sombras, na brisa e na anatomia
    recortada do estuário).

     

    – 3 –

    Cambia todos os tons
    esta angústia à flor da água.

     

    – 4 –

    Não há gaivotas nem quaisquer
    outros pássaros oceânicos.

    Todavia aquela espuma brilhante
    sugere o roçar logo de algum.

     

    – 5 –

    Silenciosamente pesados
    firmam-se nas horas os navios,
    fortuitos donos do porto,
    transitórios proprietários
    de metros de alvenaria
    que fazem maior a tristeza
    da imensa nostalgia portuária.

     

    Ah!, receber todos os adeuses,
    todos os abraços, todos os olhares
    de ida e volta e permanecer
    ancorado na paisagem imutável!

     

    – 6 –

    Passarinho no topo do mastro
    partirá ou há de voltar para a terra?

     

    E agora Da Ponta da Praia, de Alberto Martins:

     

    Tão perto de tocar
    o instante quase-já
    de toda viagem;
    no entanto, rente à praia
    é tanto rente ao fundo
    que só percebo
    o espesso casco negro
    brilhando à tona
    um segundo. E depois?

    Viagem houve de fato?

    Ou tudo não passa
    de um golpe
    do acaso?

     

                    Mas –
    e o casco?

    É úmido. Está coberto
    de cracas e a ferrugem
    que rói as chapas
    rói a carga
    é visível
    da Ponta da Praia
    a olho nu.

     

    Da calçada vejo
    a quina de aço

    – feito cunha –
    na paisagem:
    a Pouca Farinha
    o forte em ruínas
    o Góes... e por aí vai,
    devorando a outra margem.

    Boa viagem.

     

    Referências:

    Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos, Editora da Unisanta, 2006.

    Alberto Martins. Cais; gravuras do autor. São Paulo: Editora 34, 2002.

    Laire José Giraud. Transatlânticos de Cruzeiros Marítimos – O Passado no Presente. Santos: sem editora, 2003.

    Leva para a página seguinte da série