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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
A página final, em 1964

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Com o falecimento de Afonso Schmidt, o jornal paulistano Folha de São Paulo publicou este artigo na edição de 5 de abril de 1964, nas páginas 1 e 15 (ortografia atualizada nesta transcrição):

SEPULTADO SCHMIDT - O poeta Afonso Schmidt, o "Intelectual do ano" de 1963, morreu e ontem foi sepultado. Quando descia à sepultura, a última homenagem foi-lhe prestada: "Assim morrem as glórias do mundo!" Assim morreu o "mais paulista de todos escritores".

Imagem: reprodução parcial da primeira pagina da edição de 5/4/1964

 

A página final de Schmidt 

Texto de Sergio Freddi e fotos de José Castro

O poeta-jornalista Afonso Schmidt, prêmio "Intelectual do Ano" de 1963, morreu anteontem, aos 73 anos, e foi sepultado ontem à tarde, no cemitério do Araçá.

Edema agudo do pulmão – o mesmo problema que quase o abatera em junho do ano passado – levou-o desta feita. A crise manifestou-se repentinamente e durou apenas 35 minutos, de nada adiantando os esforços feitos para socorrê-lo. Faleceu dentro de uma ambulância em movimento, ao lado da esposa, sra. Maria José da Silva Schmidt, quando, numa última tentativa, se encaminhavam para o Hospital Municipal.

A Biblioteca Municipal manteve-se fechada para as consultas dos estudantes, guardando por algumas horas, num velório comovente, do qual participaram dezenas de escritores, jornalistas, parentes e amigos, o corpo do bom Afonso Schmidt, chamado "o mais paulista dos escritores paulistas".

Glória que morre – À beira da sepultura, vários de seus amigos discursaram, numa última homenagem. Inicialmente, afirmou o sr. Oliveira Ribeiro Neto:

- "Assim morrem as glórias do mundo! Há um mês apenas estávamos juntos, meu querido Schmidt, quando você recebia a consagração da inteligência brasileira como O intelectual do ano, e eu emprestei à sua timidez o som da minha voz, para dizer do seu agradecimento. Aqui estamos hoje, comovidos, à beira do seu túmulo, junto à terra querida de São Paulo, em que seu corpo vai de novo fundir-se. Mas seu espírito está vivo, Afonso Schmidt, e no céu do Brasil há de projetar-se a todo o mundo, como um dos mais intensos brilhos do nosso sol, como um dos mais belos talentos da nossa raça. Repousa em paz na terra que você tanto amou e glorificou, como um lírio de bondade e de pureza que volta de novo à terra e deixa no ar e nas lembranças dos que o viram o clarão de sua presença eterna. A Academia Paulista de Letra aqui está para dizer-lhe adeus. Seus amigos aqui choram para dizer-lhe adeus. Para sempre, Afonso Schmidt".

O biógrafo de Schmidt, escritor Henrique L. Alves, afirmou:

"Neste derradeiro instante, São Paulo tributa-lhe as homenagens pela sua vida e obra, dedicadas ao longo de sua existência, sacrificadas no dia a dia, na construção de uma obra monumental. Dobra-se sua última página e encerra-se o ciclo mais lindo da vida de um escritor, ao cujo final recebe as maiores consagrações. Deram-lhe o troféu Juca Pato". Posteriormente, falando sobre o escritor, afirma que, incompreendido, por vezes, "sua literatura é de uma amplitude sem horizontes". No final da oração, disse o biógrafo: "Adeus mestre Afonso, intelectual símbolo da cultura nacional".

Poeta social – O deputado Cid Franco, também presente, disse:

- "Afonso Schmidt, meu velho e querido amigo. Amigo desde 1925 ou 26, nem me lembro mais. Você foi o criador da poesia social da fase do proletariado, como Castro Alves foi o criador da fase da escravidão. Você sofreu injustiças dos poderosos durante toda sua vida. Há mesmo uma literatura em que seu nome não se encontra.

"Agora, você desce à terra. Não como um cadáver, mas como uma semente, que há de brotar e frutificar". Citou então, causando viva emoção nos presentes, a poesia do extinto, Ao bater das enxadas:

- "Revolve a terra lavrador, que anda por tudo o sol esparso, nessa explosão de vida e amor, que aos campos traz o mês de março. Florido enterro da semente no seio amigo de uma cova, para que surja, viridente, a planta e dê semente nova."

Lembrou por fim que, ideologicamente, "de 1912 a 1964 foste um homem coerente. É pena que não possas assistir, como semente, o dia da libertação".

Finalmente, o escritor Fernando Soares, numa breve alocução, disse que "a coisa mais dolorosa para nós é perder um talento. Nós o perdemos, mas os teus livros ficam. Que seus livros sirvam de exemplo para todos nós".

Foi muito grande o número de escritores que passou pela Biblioteca e vários exprimiram a grandeza da perda e o valor do homem que partiu:

Mario Graciotti: "O Brasil perde um dos grandes generais da beleza e da bondade".

Menoti Del Pichia: "É uma perda irreparável".

Caio Prado Jr.: "Um grande escritor. Sobretudo, um grande coração".

Oliveira Ribeiro Neto: "A morte de Afonso Schmidt deixou em todos essa impressão que se tem quando uma luz se apaga. Na escuridão, no vazio de sua ausência, a luminosidade do seu espírito ficou em todos nós".

Ligia Fagundes Teles: "Sentia por Schmidt uma ternura. Foi um homem generoso, extraordinariamente bom. Foi a primeira porta que se abriu no meu mundo literário. Um homem puro no sentido da palavra – inteligente e bom".

Antonio D'Elia: "Chegou ao fim a vida de dedicação extremada à literatura – Afonso Schmidt".

João Gualberto de Oliveira: "Sinto muito o desaparecimento do mestre e amigo, de quem levo a orientação de diversos trabalhos meus".

Renata Palotini: "Com Afonso Schmidt desaparece toda uma época, todo um tempo de São Paulo, de sua literatura e de sua vida. A UBE chora a perda de seu presidente, e São Paulo chora a morte de seu romancista".

Aureliano Leite: "São Paulo perde a figura primacial de nossas letras".

Brasil Bandecchi: "Afonso Schmidt, escritor de alta sensibilidade, levou para o romance e a poesia a alma heróica de São Paulo".

Alfredo Gomes: "Era uma biblioteca. Estilo admirável, tem nas páginas de suas leituras a riqueza de um grande escritor".

Caio Porfirio Carneiro: "Se foi antes de tudo um grande escritor, um patrimônio das letras nacionais, foi sobretudo um homem bom".

Aristeu Bulhões – "Afonso Schmidt não foi só um escritor e um poeta. Foi uma mensagem humana de paz e fraternidade, num mundo em que o egoísmo cego destrói toda esperança de compreensão e harmonia. Sua morte não perturbou, porém, sua cruzada de fé cristã e bem-estar social".

Modéstia e Renome – A grande modéstia do escritor é considerada,por muitos, como a explicação para o fato de não se ter projetado tanto quanto seria de esperar. Mesmo assim, além de seus cerca de 800.000 exemplares editados no Brasil, Schmidt foi traduzido na Rússia, Itália, Polônia, Espanha, Lituânia e, clandestinamente, também em Portugal.

Atualmente, era o presidente da União Brasileira de Escritores, seção de São Paulo. Recebeu 5 prêmios da Academia Brasileira de Letras (3 dos quais, em um só ano), era sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, correspondente de várias entidades culturais, membro da Academia Paulista de Letras. Atualmente, era apontado como sério candidato de São Paulo a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

Homenagens – Ainda na tarde de ontem o Instituto Histórico e Geográfico realizou uma sessão solene para homenagear a memória do escritor, designando comissão composta dos escritores Henrique L. Alves, Celestino Frazio e Jacob Penteado para representar a entidade nos funerais.

Por outro lado, no próximo dia 9, às 11 horas, uma placa de bronze será inaugurada na Prefeitura de Cubatão, em homenagem a Schmidt.

Afonso Schmidt, nascido a 29 de junho de 1890, em Cubatão, deixa viúva a sra. Maria José da Silva Schmidt (em segundas núpcias) e os filhos Bruno, Aldo, Vera e Sérgio (casados) e Rosana, menor. Eram seus irmãos os srs. Godofredo, Rodolfo, Odila e Vital (casados) e Maria Clara (solteira).

Afirmando ser um escritor "por fatalidade", e que escreveria "até que um sujeito bata aí na porta e avise: Ei velho, o caixão já está aqui. Vê se não demora..." – seu desejo cumpriu-se. Escreveu até o fim.

Ele foi principalmente operário. Até à morte

Foto: José Castro, publicada com a matéria

 

Operário

Da. Maria José da Silva Schmidt, esposa do escritor, velando o corpo na Biblioteca Municipal, chora silenciosamente, respondendo a perguntas, contando coisas de uma lembrança recente ou remota do convívio com o marido:

- "Não esperava isto agora. Minha esperança era levá-lo de crise em crise, como no ano passado, até um dia. Mas não esperava que esse fosse o dia.

"Mas ele teve a morte que sempre quis. Morreu trabalhando. Em sua máquina de escrever ficou um papel com o começo de um trabalho que seria publicado em janeiro. Sua tenacidade para escrever era admirável. Não importava que estivesse doente ou sem dinheiro. Ainda dia 1º último ele foi à Hebraica, onde se programara uma homenagem à sua pessoa. Tive, não sei porque, um pressentimento de que talvez ele não voltasse. Mas a revolução provocou o cancelamento e, ao retornar, ele me dizia: 'Você sabe que os judeus dariam uma história maravilhosa?'

"Começou então a falar da idéia que nascia, com judeus vindos para o Brasil, numa história humana e suave, com tonalidades locais:

- "Ele só gostava de coisas assim".

O livro era como uma pá - Depois, da. Maria lembra o sentimento que Schmidt nutria pelos livros:

"O livro nunca era para ele uma distração. Nem valia pela sua encadernação, pelo seu exterior. A leitura era uma espécie de obrigação, estudo, atividade que apresentava algum fim. Minha impressão era a de que ele pegava o livro como um trabalhador pega a pá ou a enxada.

"Quando as pessoas morrem a gente diz, querendo consolar: descansou. Mas dizer que o Schmidt descansou não é consolo. Ele gostava tanto de trabalhar".

Perguntado qual fora, agora ao final, o resultado de tanto trabalho, a esposa responde:

"Sua vida de trabalho deixou, ao término, livros, muitos livros; e a ternura, uma grande ternura por tudo: pelos grandes, pelos pequenos, pelas coisas, pelos bichos. Há a casa em que moramos, produto da tradução de um livro, e há sua vida cheia de dignidade, patrimônio que deixa para todos os filhos".

Devoto de S. Francisco – Querem saber se o autor de A Marcha era religioso:

- "Era um espiritualista. Não se pode dizer que era religioso. Mas era uma pessoa que se comovia até com uma flor caída ou um boneco jogado. Era devoto de São Francisco – devoção exclusiva – e ele mesmo sentia-se um franciscano. Todos os anos, em novembro, ia levar um ramo de flores à igreja de São Francisco. A última vez, levamos os três – eu, a Rosana e ele – flores que ele havia ganho durante cerimônia de inauguração de uma exposição de seus livros".

Depois, lembra a adoração do escritor pela filha que fará 6 anos no dia 20 de maio:

- "Ele dizia, apontando para a menina Rosana, a quem chamava de Ternura do velho: - Isso enche a vida da gente".

E foi a garota que, 5 minutos antes da crise, chamando-o de "meu velhinho adorado", beijou-o antes de ir dormir. Ele também iria dormir muito logo.

O livro querido – Schmidt escreveu cerca de 70 obras e não gostava de apontar uma delas como sendo a melhor, ou a que lhe era mais cara. Da. Maria, entretanto, afirma: "Minha impressão era de que o livro que mais lhe agradava era A Marcha. Mas não posso afirmar. É uma impressão. O culto que tinha pela família – os filhos, os irmãos – talvez justificasse também uma certa predileção pelo Menino Felipe. Mas, quando se falava em traduzir qualquer obra sua, perguntava sugerindo: - "Por que não A Marcha?"

Schmidt e o "Juca" – O escritor de tantas obras – poesia, contos, romance, crônicas -, mesmo contando com grande número de apreciadores e tendo visto serem impressos, por várias editoras, mais de 800.000 exemplares de suas obras, nunca mereceu o beneplácito da crítica literária. Algumas obras sobre a história da literatura brasileira nem mesmo registram seu nome.

Mesmo assim, dentro do concurso O Intelectual do ano, promovido pela Folha de S. Paulo e União Brasileira de Escritores, seu nome foi lembrado e sufragado pela maioria dos eleitores, numa reparação que chegou, cheia de festas e de emoções, 45 dias antes de sua morte.

Sobre o prêmio, afirmou a viúva de Schmidt: "Senti que a consagração com o Juca lhe trouxe um contentamento muito grande, intimamente. Nós achávamos que era uma reparação à sua ausência dos compêndios de literatura, numa consagração oficial, prestigiada pelos escritores. O essencial é que ele pôde sentir, ainda em vida, o reconhecimento do valor de sua obra".

O corpo foi velado na Biblioteca Municipal com o assentimento do secretário de Educação e Cultura da municipalidade, prof. Carlos Rizzini, e esta última passagem por entre as prateleiras e estantes valeu como uma simbólica despedida do grande escritor dos seus companheiros de toda a vida: os livros.

Schmidt disse que só pararia de trabalhar quando morresse. E entre livros foi velado, em sala da Biblioteca Municipal

Foto: José Castro, publicada com a matéria

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