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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Charles Jones: matou um e salvou 200

Um dos grandes crimes do passado santista

A história foi relatada no Almanaque de Santos - 1971, editado pelo falecido jornalista Olao Rodrigues e publicado em 12 de dezembro de 1970 pela empresa santista Ariel Editora e Publicidade, dirigida pelo fotógrafo José Dias Herrera:

OS GRANDES CRIMES DO PASSADO
Assassinou um, mas salvou a vida de 200: Charles Jones

Numa manhã de domingo, no dia 6 de abril de 1894, a Cidade foi abalada por bárbaro crime de morte, que a todos consternou. A vítima, Paulo Emílio Wilmersdorf, chefe da estação ferroviária, pai de vários filhos menores, era muito estimada por sua conduta morigerada. Achando-se em seu gabinete de trabalho, despreocupado, foi ele atacado inopinadamente por Charles Jones, inglês também funcionário da Estrada, que, sem dizer palavra, assestou-lhe violento golpe de machado de engenheiro, matando-o instantaneamente.

O agressor não se impressionou com o ato brutal e traiçoeiro, pois calmamente, fumando charuto, deixou o local, foi ao chafariz das imediações e lavou as mãos tintas de sangue. Sabia-se que Charles Jones estava de viagem marcada para a Inglaterra. Nada mais. Preso, foi levado, para a Cadeia, enquanto subalternos cuidavam da vítima, inerte, alcançada na cabeça pelo golpe assassino.

Benquisto na Cidade, sua morte violenta causou profundo pesar. Deixou viúva e filhos menores, socorridos por amigos e admiradores, que de imediato se cotizaram para a humaníssima missão de solidariedade e amparo.

Um ano depois, isto é, em 4 de outubro de 1895, pretendeu Charles Jones fugir da Cadeia, por meio de uma corda, que se partira. Foi frustrada a fuga, por ele chefiada, e que também envolvia Francisco Barleta, outro criminoso de morte, e Manuel Fernandes de Almeida, moedeiro falso. Dado o alarma, foram dominados e reconduzidos para o xadrez. Charles Jones estabelecera que seria o primeiro a ganhar a liberdade, com o que os outros dois concordaram. Por pouco, seu plano de fuga não se efetivou.

O matador de Paulo Emílio Wilmersdorf foi julgado e condenado a prisão perpétua com trabalhos forçados, que cumpriria na Ilha Fernando de Noronha, para onde o removeram.

A grande aventura de Charles Jones - No presídio de Fernando de Noronha, Charles Jones sempre se manifestou arrependido. Era homem inteligente, persuasivo, extremamente calmo, bom presidiário, enfim. Por isso, ganhou a confiança dos guardas e dos responsáveis maiores pelo presídio, além do respeito dos outros reclusos.

Afastada do Continente, Fernando de Noronha recebia provisões do Recife por meio de uma lancha. Não se sabe por que motivo, a embarcação não fez em certa oportunidade a viagem regular. Passaram-se dias. Os víveres estavam no fim. De inquietante, a situação tornou-se desesperadora pela excessiva demora de reabastecimento. Não havia comunicação com o Continente.

Foi quando Charles Jones, dirigindo-se ao comandante, prontificou-se a ir ao Recife em busca de providências. Como já não mais houvesse provisões, foi-lhe dada autorização mediante documento que assinou, comprometendo-se a voltar com a lancha de abastecimento, embora ninguém acreditasse no êxito da missão, pelos insuperáveis perigos da travessia.

E Charles Jones, tripulando frágil embarcação, em mar aberto infestado de tubarões, partiu para o Continente, resoluto, remando com energia, firmemente disposto a salvar aquela pequena população dos foras-da-lei das agruras da fome. Reabilitar-se-ia assim do bárbaro crime da manhã de 1894. Enfrentou os mais sérios perigos naquele mar tempestuoso e traiçoeiro. Faminto, estropiado, quase desfalecido, conseguiu vencer a adversidade e chegou à praia depois de alguns dias, realizando a proeza em que seus companheiros de presídio não acreditavam.

Certo é que o matador contrito de Paulo Emílio conseguiu chegar ao Posto de Subsistência, que, de imediato, em lancha de carreira, providenciou farta provisão para Fernando de Noronha. Ele não embarcou de volta, nesse embarcação. Deve ter mentido. Ficou no Recife. Não observou o compromisso formalmente assinado. Afinal, devia ter pensado: "Palavra de criminoso não tem valor". Livrou-se assim da prisão e da pena pela eliminação de um semelhante. Mas salvou a vida de 200 outros dos estertores da morte por inanição.

O julgamento de Charles Jones, em Santos, foi assim registrado pelo jornal paulistano A Provincia de São Paulo, na primeira página da edição de 19 de setembro de 1884 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 1 do jornal A Província de S. Paulo de 19/9/1884 com a matéria, no Acervo Estadão

SEÇÃO LIVRE

O julgamento de Charles Jones em Santos

Segundo consta do Diario de Santos, de 17 do corrente, foi submetido a julgamento na última sessão do júri o processo instaurado contra Charles Jones.

A transcrição da notícia dada por aquele jornal, só por si, basta para o público firmar um juízo seguro das arbitrariedades cometidas, tanto mais quanto aquela imprensa tem se manifestado sempre mal impressionada contra o acusado; porém, relatando fielmente os incidentes do julgamento, deixou estampado até onde pode chegar a falibilidade da justiça humana!

Ficaria dispensado do doloroso dever de censurar os erros de um colega, se não tivesse necessidade de justificar minha ausência, filha em parte do bom direito que assistia ao meu constituinte requerendo para ser adiado o julgamento, e da confiança que então inspirava-me o magistrado a quem recorri. Mas o sr. Ledo Vega julga que, quando pintam a justiça com os olhos vendados, é para não enxergar o direito das partes, e deixar-se somente arrastar pelas falsas impressões, que muitas vezes os fatos produzem em suas primeiras manifestações. A prevalecer esta esdrúxula interpretação, poder-se-ia inscrever no frontispício dos tribunais o verso que, segundo Dante, lê-se na porta do inferno: Lasciate ogni sperança, voi ch'entrate.

***

Os meios legítimos, empregados pelo réu e seu advogado, no sentido de adiar o julgamento, foram baldados perante a manifesta prevenção do dr. juiz de direito de Santos, que mal interpretando a sua elevada e nobre atribuição, pensa que nos processos graves não há direito de defesa e o juiz deve constituir-se algoz do acusado.

Tendo corrido à revelia os direitos do acusado, na formação de culpa, não lhe sendo possível então constituir advogado, apresentou no plenário o rol de suas testemunhas. Expedida carta precatória e não se tendo efetuado a respectiva citação antes do julgamento, Charles Jones, em uma circunstanciada petição, fez ver que em face do disposto no art. 354 do regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842 e aviso de 23 de março de 1855, cumprindo ao presidente do tribunal do júri verificar se os processos apresentados achavam-se devidamente regularizados, a fim de evitar nulidades; e dispondo os arts. 317 da lei de 29 de novembro de 1832 e 347 do citado regulamento, que não cumpridas as diligências requeridas deixam de estar devidamente preparados os processos; e que, portanto, faltando a citação das testemunhas da defesa (uma das mais importantes diligências do processo), conseguintemente não podia ser submetido a julgamento.

No sentido de corroborar sua pretensão citou 14 acórdãos de tribunais superiores, que reconheciam esta formalidade como essencial à validade dos julgamentos; citou ainda o precedente estabelecido pelo dr. juiz de direito de Santos na penúltima sessão do júri, que, em identidade de caso, deixou de submeter a julgamento um processo, considerando-o não preparado, pelo fato de não constar o cumprimento da precatória. Declarou também o acusado em sua petição que, ainda quando a espera da citação das testemunhas constantes da precatória trouxesse o adiamento do julgamento, ainda assim era-lhe preferível continuar a sofrer o peso de uma grave acusação a submeter-se a julgamento sem os meios de defesa com que pretendia contestá-la. Argumentou,k finalmente, com a autorizada opinião do venerando marquês de S. Vicente, que se lê à página 132 de sua obra Apontamentos do processo criminal brasileiro, § 222, em que este ilustrado escritor, tratando da matéria, diz: "quanto ao réu, não há dúvida em que deve atender-se à sua escusa, não só quando fundada, mas ainda quando duvidosa".

Todas essas judiciosas considerações foram baldadas e o requerimento de Charles Jones, apresentado na véspera da sessão do júri, foi pelo juiz indeferido.

Não ficou aí o procedimento arbitrário do dr. juiz de direito de Santos!!

No dia do julgamento, segundo consta do Diario de Santos, tendo o réu alegado estar doente e pedindo o adiamento do julgamento, o dr. juiz de direito levou o catanismo ao ponto de nomear médicos para o examinarem!! (N. E.: catanismo parece ser referência a Marco Pórcio Catão, político romano que viveu de 234 a.C. a 149 a.C., sendo conhecido como Catão o Velho ou o Censor. Foi escritor, tribuno, questor, pretor, cônsul e censor em Roma, distinguindo-se pela defesa conservadora das tradições romanas e pelo incentivo que deu à guerra com Cartago, opinando que esta deveria ser destruída, para segurança de Roma).

Organizado o conselho de jurados, o réu ainda uma vez reclamou o adiamento, não só por se achar doente, como também por não ter comparecido seu advogado, e não desejar ser defendido por outro> Mas o presidente do tribunal, tendo os olhos vendados, prosseguia às cegas, desprezando o sagrado direito de defesa!

É fato virgem nos anais judiciários submeter um processo a julgamento, sem estar devidamente preparado e contra a vontade do acusado!

É preciso que o juiz, que assim procede, ou ignore completamente o espírito da lei, ou ache-se tão apaixonado que não possa livremente raciocinar.

O que perdia a justiça adiando o julgamento de Charles Jones, quando ele continuava preso?

O receio de que com o tempo pudesse dissiparem-se as prevenções? De que talvez aparecessem provas que enfraquecessem as da acusação?

Mas, quer numa, quer noutra hipótese, só tinha que lucrar a justiça; porque a verdadeira justiça exclui a ideia de vingança, procura a calma e a reflexão para deliberar; dá toda a amplitude do direito de defesa, para que suas decisões sejam a expressão genuína da verdade.

A confiança que deveria inspirar a justiça do pedido do acusado, as terminantes disposições da lei, os julgados dos tribunais e até os precedentes do dr. juiz de direito de Santos em identidade de caso, faziam crer que seria adiado o julgamento e que, em uma cidade importante, onde há um foro adiantado, não era de esperar que se violentassem julgamentos, e o juiz despisse a respeitável toga do magistrado para envergar as repugnantes vestes do carrasco!

Eis porque, apesar de incomodado, como me achava e me acho, com sacrifício de minha saúde, não duvidaria comparecer ao tribunal do júri no caráter de advogado do acusado para profligar as irregularidades e abusos que, na calma e em nome da lei, eram cometidos em flagrante atentado aos direitos do meu constituinte.

Felizmente Charles Jones protestou por novo julgamento, a que será necessariamente submetido em face dos arts. 462 e 463 do regulamento n. 120 de 31 de janeiro de 1842, e poderei nesta ocasião sustentar todo o seu direito e justiça.

S. Paulo, 18 de setembro de 1884.

O advogado,

João de Sá e Albuquerque.

Doze anos depois, já no regime republicano, o sucessor desse jornal paulistano, O Estado de São Paulo, publicou em sua primeira página o decreto com o perdão a Charles Jones, na edição de 17 de novembro de 1896 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página de 17/11/1896 com a matéria, no Acervo Estadão

Decreto n. 404, de 15 de novembro de 1896.

Perdoa ao sentenciado Charles Jones o resto da pena a que foi condenado.

O presidente do Estado, tendo em vista a petição de graça do réu Charles Jones, e

Considerando que já cumpriu ele doze anos de prisão, mínimo da pena do código vigente para o crime que praticou;

Considerando que, segundo informa o tribunal de justiça, o impetrante, no presídio de Fernando de Noronha, onde se acha, tem procedido de modo irrepreensível, revelando por seus atos completa regeneração;

Considerando que o mesmo se verifica pelos atestados do diretor e de todos os empregados daquele presídio;

Considerando que a favor do requerente há o fato de, em abril de 1892, para salvar os habitantes do referido presídio da penúria em que se achavam, ter-se ele oferecido a fim de ir ao continente em busca de socorros, chegando até o Recife e regressando quando ser-lhe-ia fácil evadir-se;

Considerando finalmente que o presidente do estado de Pernambuco, ao enviar a petição referida, aludiu à abnegação e à conduta que o tornam digno do indulto que solicita:

Resolve perdoar o sobredito réu Charles Jones do resto da pena de trinta anos de prisão celular em que foi comutada a de galés perpétuas que lhe impôs o júri da comarca de Santos em 14 de março de 1885.

O secretário de estado dos Negócios da Justiça assim o faça executar.

Palácio do governo do Estado de São Paulo, 15 de novembro de 1896 - Manoel Ferraz de Campos Salles - Carlos de Campos.

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