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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CANAIS
Uma paisagem canalizada (2)

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Na década final do século XX, formou-se forte polêmica em torno da idéia de se cobrir os canais santistas para criar uma nova pista ou espaço de estacionamento de carros. É a ela que se refere esta crônica publicada na seção AT Especial do jornal A Tribuna de 23 de março de 1997:


Inauguração do Canal 1, em 27 de agosto de 1907
Foto: jornal A Tribuna de Santos, 23/3/1997

A importância dos canais na paisagem santista

"Os canais fazem parte definitiva da paisagem santista e são imprescindível fator de equilíbrio na estrutura urbana"

Narciso de Andrade (*)
Colaborador

Como um médico empunhando o bisturi para salvar vidas humanas, o engenheiro cortou as carnes da Cidade então doente e curou seus males maiores. O ambiente local era terrível e a ilha tinha um renome trágico no conceito internacional. Pelos idos de 1858, o médico alemão Robert Avé-Lallemant fez uma viagem pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo, tendo publicado o relato com as impressões sobre os locais visitados.

Esteve em Santos: elogiou a beleza da paisagem que, logo à entrada, lhe pareceu notável. Caminhou mais e a coisa mudou de figura.

...Por mais graciosa que seja a paisagem que se afasta do alto do Monte Serrate, jamais se lhe pode atribuir o conceito de região salubre. Ao contrário, forma uma caldeira com todos os ingredientes com os quais o sol tropical pode guisar uma multidão de matérias infecciosas.

...Do outeiro se avistam, embaixo, em quase todos os pátios e hortas, lugares pantanosos, fossas sujas, poças de água estagnadas.

Para concluir: Primeiro é preciso que Santos seja castigada pelo seu crime contra a saúde pública, antes que mereça libertar-se do flagelo da febre amarela e antes que um médico viajante possa dizer qualquer coisa de bem da cidade.

Era um tempo ruim quando até a água para o santista beber corria a céu aberto. Era preciso eliminar as seqüências dramáticas de moléstias epidêmicas, os surtos tenebrosos de febres e pestes narrados até hoje em epitáfios do Paquetá.

E foi aí que a engenharia atacou o problema e resolveu, em lance magnífico de ousadia e competência, sangrando a terra infeccionada e livrando-a da grande miséria das epidemias. É isso que representam, antes de mais nada, os canais devidos à genialidade e ao espírito precursor do engenheiro Saturnino de Brito. O resto é História e todo santista conhece.

De repente, volta à baila a velha e desgastada idéia da cobertura dos canais. Ora, qualquer um sabe que os canais fazem parte definitiva da paisagem santista, são imprescindível fator de equilíbrio na estrutura urbana da Cidade, sobrecarregada de uma arquitetura vertical inadequada ao solo que a sustenta. E, como disse o arquiteto e professor da nossa Faculdade de Urbanismo, Maurício Azenha Dias, cobrir os canais é uma idéia assustadora. De fato, é assim que eu estava - assustado.

Felizmente, no dia 7 deste mês, encontro neste jornal o artigo precioso (é a palavra exata) de Gilberto Mendes, que é músico de renome internacional e santista apaixonado, colocando as coisas no seu devido lugar: Cobrir os canais é oficializá-los como esgotos. Cobrir o problema. Ninguém vê, ninguém fala mais no problema. É a lei do menor esforço, a aceitação de nossa incompetência em limpá-los, bem à maneira do Terceiro Mundo.

Mas o que se pretenderia seria cobri-los para transformá-los em vias expressas? O Gilberto também analisa esta colocação, exemplificando com o sempre correto exemplo inglês que chega a proibir a construção de prédios novos com garagens para evitar o afluxo de automóveis ao centro. Mas isso é Londres, isso é civilização. Correto, amigo e companheiro da velha Comissão de Cultura dos anos sessenta.

Para quem tem o olhar voltado para a oferta de beleza dos recantos de uma cidade, os canais de nossa terra sempre foram contemplados com carinho e admiração. Lembro-me do cineasta Carlos Ortiz, em busca de lugares próprios à locação de seu filme Alameda da Saudade, 113, inspirado em história do folclore santista sempre contada pelos dançarinos das inesquecíveis tardes e noites da Humanitária. Aquela história da garota que marcou encontro com o namorado para depois do baile e, como chovia, levou a capa do companheiro, que foi encontrá-la no dia seguinte, em cima da campa da Alameda da Saudade, 113. Se bem me lembro, o filme captou bem o clima romântico da história. E, para tanto, muito contribuiu o local escolhido, justamente o Canal 3.

Para mim a coisa ferve mais porque eu, menino, brinquei muito em canais, peguei lagostins que minha mãe se recusava a fritar, peixinhos coloridos, só não consegui nunca atravessar correndo os canos que os cruzam de lado a lado. Vamos limpar os canais, vamos cuidar deles com carinho, respeitar sua presença no mapa da Cidade: em vez de cobri-los, como diz o Gilberto, vamos tombá-los.

Acredito nas boas intenções do senhor prefeito e acho que ele tem espírito de santistidade suficiente para rever sua posição. Sua energia de jovem dinâmico poderá ser melhor aplicada em outros setores. Confiamos.

(*) Narciso de Andrade é poeta e escritor.

Ainda em razão da polêmica proposta da cobertura dos canais santistas, outro artigo, em outro jornal, em data próxima, também criticou a idéia. Foi publicado na edição de 22/23 de fevereiro de 1997 do Jornal da Orla:


Inauguração do canal na então Rua Rangel Pestana, em 1907
Foto: Jornal da Orla, Santos, 22/23 de fevereiro de 1997

Cobrindo de aço a alma da cidade

Carlos Mauri Alexandrino (*)

Paris sem a Torre Eiffel, Nova Iorque sem Empire State, São Paulo sem Ibirapuera, Santos sem canais. Fogem ao meu espírito, entre outras, essas possibilidades. O prefeito Beto Mansur diz que quer ouvir os munícipes sobre sua idéia de cobrir os canais da cidade, transformando-os em vias expressas. Minha opinião, pois, está dada.

Pelo que deduzo do que a imprensa publicou, certamente ele me enquadraria entre os habitantes românticos. Embora não possa negar o rótulo, nem tanto ao mar, por favor. Tenho cansado de bater no velho "não pode" dessa nossa ilhazinha atlântica. Acho que devem haver mudanças, sim. Sempre. Mas também acho que tudo tem limite. Principalmente quando se mexe com causas primeiras, com raízes e fundamentos, com referências, aquilo que a sabedoria africana chamou de "axé".

Os canais de Santos vieram de um poeta, sabia? De Vicente de Carvalho, que foi secretário de Vias Públicas da Província de São Paulo no início de nossa história republicana - logo, "os poéticos canais de Santos" não são apenas uma força de expressão, se assim quisermos entender. Mas Vicente de Carvalho era um romântico irrecuperável, que havia feito barricadas republicanas nas ruas de Santos e dirigido a rebelião que acabou por apear do poder o então presidente da Província.

"Ou se saneia a cidade de Santos e seu porto ou se fecha aquele foco de infecção em nome da saúde pública", disse o poeta-secretário há cem anos contados. Metade da população de Santos morrera nos quinze anos morrera nos quinze anos anteriores, assolada por doenças tropicais. Na primeira fase, a mais grave, sem qualquer apoio do agonizante governo monárquico que pretendeu, com a omissão, dar uma lição "àqueles rebeldes republicanos paulistas". Nossos canais, repare, estão enfiados em nossa história, mesmo na política, como pulgas num cachorro. O poeta, com seu romantismo, ganhou a parada.

Saturnino de Brito era um engenheiro sem meios-termos. Briguento como o diabo. Foi escalado como presidente da Comissão Sanitária, quase com poderes de vida e morte num tempo de muitas delas - "é uma cidade terrível, que arfa de calor como uma caldeira, pestilenta e doentia", escreveu naquela época, em seu diário, o cônsul inglês, Richard Burroughs, que depois seria um dos responsáveis pela construção do Canal do Panamá. Canais, sempre canais!

Planejamento - Saturnino planejou uma cidade nova, diferente das demais, de linhas retas, sem os desvios costumeiros que preservaram, por toda parte, os terrenos dos abastados e poderosos. Ele, não. Não faria concessões naquele início de século. Seus canais riscados sobre o mapa teriam de ser construídos à risca e remodelariam Santos inteira - uma epopéia que se iniciou em 1905, movendo gentes e casas, revolvendo terra em quantidades nunca vistas, usando equipamentos fabulosos para a época. Uma tarefa épica, um filme de Cecil B. de Mille ao vivo.

Foram mais de vinte anos de um trabalho daqueles que não se vê mais - principalmente considerando que, ao final, Saturnino devolveu sobra de dinheiro, com o argumento que nunca mais se ouviu: "A construção custou menos que o previsto". Até nisso os canais têm história única.

De chapéu panamá, elegantemente trajado com o melhor corte de linho 120, em pé sobre a proa de um pequeno barco bem no meio do Canal 1, ereto como um obelisco, o homem recebeu as homenagens dos santistas como quem recebe uma comenda, em 1907.

Dez anos depois, metade da obra pronta, já vencera as epidemias, as disputas políticas, as pressões, e criara, finalmente, sua cidade reta, de rigoroso quadriculado que hoje se vê desde a órbita, nas fotos dos satélites.

Muitos anos ainda seriam gastos na tarefa de dar aos nossos canais a fisionomia que têm hoje - lamentável que tenham perdido os corrimãos originais, de ferro fundido, que lhes conferiam uma agradável dignidade européia. Claro que polir tais peças hoje em dia seria um desperdício de esforço e dinheiro, sem falar da vigilância sobre elas para que não - digamos - se escafedessem nas madrugadas.

Árvores, pilares, pontes foram lançados sobre eles, construindo mais que uma obra, um marco, uma identidade única e irreproduzível. Uma impressão digital. Um mapa genético.

Beleza - Pare em uma das pontes dos canais mais arborizados e olhe para o quase túnel que se abre adiante. Mas olhe com olhos de ver: são de uma beleza simples e gloriosa, radiante. Foi sobre uma delas que Josephine Backer escolheu posar para os fotógrafos. Eram a parada preferida das caminhadas vespertinas de Carlos Gardel, preparando-se para o show noturno do Miramar, na boca da Conselheiro Nébias, a avenida que Saturnino esqueceu.

Impossível imaginar os canais tapados, com carros percorrendo o caminho que é das águas - seu objetivo fundamental sempre foi o de ligar o oceano ao outro lado da ilha, de modo a secar a terra. Devemos boa parte de nosso território à existência dessas velhas vendas cortadas sobre a carne da cidade. Veias abertas de Santos, uma literalidade da idéia de Cortazar.

O que diríamos à estátua de Saturnino ali perto do 1, no jardim da praia? Está lá, de bronze, ainda altivo e vigilante, segurando nas mãos a planta de sua cidade reta cortada de canais, que serviu de base para os estudos do que viria a ser Washington, ela mesma, a capital dos States. O que diríamos, então, à de Vicente de Carvalho ali perto do 4, recostado, de olho na cidade? Canais!

Outro poeta, o chileno Pablo Neruda, chegou a Santos pela primeira vez em 1927, ano em que Saturnino concluiu sua obra. Em 1967, quando veio pela segunda vez, chegou a bordo de um navio chamado Cabo Santa Marta, e escreveu: "Santos. É no Brasil. E já faz quatro vezes dez anos. Antes esse porto era selvático e cheirava como a axila do Brasil calorento". Trata-se de um pequeno texto, chamado "Santos Revisitada". Encantou-se com os canais enquanto ficou aqui. Mas Neruda era um romântico, como todos sabemos.

Os canais estão entranhados em nossas almas tanto como na alma da cidade. Não devem ser subtraídas, as nossas nem a dela. Ser moderno é outra coisa.

(*) Carlos Mauri Alexandrino é jornalista

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