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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
História da São Paulo Railway (4)

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Pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, ainda incompleta a construção da Via Anchieta (que só tinha então uma pista inaugurada), a ferrovia dominava o transporte entre a capital paulista e o porto santista, o que era registrado nesta matéria publicada pelo jornal paulistano O Diário, de 26 de janeiro de 1939 (ortografia atualizada). Exatamente o mesmo texto, e algumas das fotos, foram também publicados nesse mesmo dia pelo jornal santista A Tribuna, em sua edição comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos, com o título São Paulo Railway:
 


Trecho da matéria publicada em O Diário, em 26/1/1939

Empreendimentos que honram o Est. de São Paulo

Dados retrospectivos da construção da São Paulo Railway

ESCALANDO A SERRA DO MAR

Por coincidência, faz precisamente cem anos que os brasileiros, reconhecendo a necessidade inadiável de conseguir, para a província de S. Paulo, uma saída para o oceano, submeteram à apreciação do famoso engenheiro Robert Stephenson um anteprojeto referente à construção de uma estrada de ferro através da Serra do Mar, pois a Serra constituía um enorme entrave ao progresso dessa promissora região, que despertava para o surto da civilização.

Robert Stephenson era filho do grande George Stephenson, inventor da primeira locomotiva e construtor da ferrovia que liga Manchester ao porto de Liverpool e que é a precursora das estradas de ferro, no mundo.

Esse projeto era, porém, prematuro e foi, por isso, abandonado, tendo sido adiada a conquista do grande obstáculo da natureza.

Vinte anos mais tarde, aproximadamente, quando se encareceu a necessidade, vários brasileiros, à cuja frente se destacava a figura inolvidável do Barão de Mauá, obtiveram concessão do Governo para a construção de uma estrada de ferro, no local. A linha projetada devia ligar Santos a São Paulo, rumando daqui para Noroeste, com destino ao importante centro de então que era Jundiaí.

O Barão de Mauá não perdeu tempo. Ordenou logo os necessários estudos e exames do trecho compreendido entre Jundiaí e o alto da Serra do Mar. Esta parte do trabalho apresentou relativa dificuldade, mas a descida para o litoral, pela encosta daquela colossal Serra, foi considerada impossível para uma ferrovia. E não se podia transpor a Serra, contornando-a pelos flancos, porque não havia passagem. Contudo, a Serra do Mar precisava ser transposta. A construção de uma estrada de ferro que galgasse a Serra à altura de 800 metros exigia tal perícia dos engenheiros que só poderia ter sido adquirida através de excepcional experiência.

O Barão de Mauá solicitou, então, à Inglaterra - berço das estradas de ferro - esclarecimentos sobre a possibilidade da construção em apreço. O maior técnico em assuntos dessa natureza era, na ocasião, James Brunlees, conhecido engenheiro ferroviário.

A sua primeira dúvida sobre a projetada São Paulo Railway foi devidamente apreciada pelos seus concessionários. Era referente ao custo. O contrato oferecido pelo Barão de Mauá esboçava uma ferrovia de bitola larga (um metro e  60 centímetros) através o traçado mais curto entre Santos e Jundiaí e estipulava que o custo total da empresa, incluindo a escalada da Serra, não deveria exceder a soma de £ 2.000.000 (N.E.: dois milhões de libras).


No alto da Serra: trem saindo de um túnel, entre os 4º e 5º patamares.
Note-se o túnel na linha Serra Nova (na Serra Velha, vista à esquerda, não havia túneis)
Foto publicada com a matéria em A Tribuna e O Diário

Brunlees veio examinar a Serra, achou que uma estrada de ferro podia escalá-la por um custo dentro dos limites estabelecidos e aceitou o contrato.

Surgiu, em seguida, para ele, outro problema: descobrir um homem que, pela sua indubitável competência, estivesse em condições de desincumbir-se galhardamente da tarefa. A escolha recaiu, afinal, num homem que havia adquirido os seus conhecimentos técnicos com o próprio Brunlees: Daniel Makinson Fox. Este jovem engenheiro, pois contava apenas 26 anos de idade, conseguira, à custa dos seus próprios esforços, uma sólida reputação. Além disso, adquirira considerável experiência na construção de estradas de ferro através das montanhas do Norte do País de Gales e das encostas dos Pirineus.

O seu conhecimento do espanhol, adquirido nos Pirineus, facilitou-lhe depois aprender e falar com facilidade o português.

Convidado a ir a Londres, onde lhe expuseram o plano, Fox concordou em vir a São Paulo examinar a projetada linha. Ele nunca estivera no Brasil e anos mais tarde relembrava com freqüência a divertida viagem feita pelo Oceano com destino a Santos. Mas aqui começaram as dificuldades. À primeira vista, a Serra do Mar produziu-lhe duas impressões. Em primeiro lugar, pareceu-lhe que seria demasiado pedir ao homem, ou à máquina, que fizesse uma estrada de ferro dominar aqueles gigantescos rochedos. Em segundo, que mais de £ 2.000.000 seriam necessárias somente para se obter a escalada da Serra, à parte a construção de uma estrada no trecho costeiro, entre Santos e o sopé da Serra, bem como outra correspondente no planalto.

Fox, contudo, iniciou sem mais demora a sua tarefa. Fez, em Santos, cuidadosas investigações sobre as condições locais da Serra do Mar, mas apenas obteve informações de pequeno valor. Descobriu, entretanto, que se tratava de um dos lugares mais úmidos do mundo. Na Inglaterra, no máximo, talvez já tivesse observado cerca de 25 cm de chuva em 24 horas. Na Serra, a chuva caía à razão de 19 cm em 1 hora e 1 quarto. O aguaceiro que desabou sobre Londres, em 1935, atingiu 65 cm. A Serra já tem recebido cerca de 550 cm de chuva num ano. O solo é composto de uma mistura de granito e cascalho solto. Não se podiam abrir cortes, nem furar túneis, com auxílio de explosivos, sem provocar a queda de verdadeiras avalanches de terra. A chuva ajuda os movimentos de terra, sem que seja preciso o emprego de pólvora ou dinamite.

Além dessas dificuldades, Daniel Fox não tinha cartas topográficas. Havia, portanto, necessidade de se tornar explorador. Mas não bastaria explorar a região. Era preciso estudar um meio de a estrada de ferro atingir o cimo da montanha pela rota mais curta e compatível com um declive razoável. Em engenharia ferroviária, um declive de mais de 1 por 40 é considerado quase impossível, demasiadamente rigoroso para permitir um trabalho normal.

Tudo isso o jovem Fox levou na devida consideração, enquanto fazia os preparativos para internar-se na densa e tropical mataria que cobria os íngremes flancos da Serra. As árvores da floresta erguiam-se soberbas naquelas horríveis  rampas, escondendo ao brilho rútilo do sol a emaranhada e abundante vegetação que cobria toda a Serra.

Fox recrutara um bando de nativos e, a machado e facões, a turma desbastava o caminho através da floresta virgem. Cercado de animais selvagens, grandes cobras, insetos e febre, Fox desafiava o terror da imensa mataria, não uma vez apenas, mas continuadamente. Mês após mês, o engenheiro-explorador atacou o matagal em diferentes pontos, inspecionando a região inteira, medindo alturas e distâncias com o teodolito e o respectivo baliza, anotando a cada passo os acidentes geográficos que observava.

A despeito de todo esse cuidadoso trabalho, Fox não conseguia encontrar sobre a Serra uma passagem apropriada para a ferrovia, apesar de achar, a cada instante, com abundância, fendas, aberturas e gigantescos vãos ao longo dos flancos da Serra.

Foi quase acidentalmente que ele encontrou a tão desejada rota. Uma manhã, descobriu uma cascata bem acima, na encosta, e enquanto examinava, próximo à crista da montanha, a assombrosa vista que se lhe descortinava, notou que o curso de um vale se dirigia oblíqua e gradativamente em direção a Nordeste. Esse vale era o do rio Mogi. Explorando-o, Fox verificou que conduzia ao alto da Serra, onde, por uma brecha, correndo em direção Noroeste, dava acesso ao planalto, atrás do cume.


Aspecto da estrada da São Paulo Railway, no alto da Serra
Foto publicada com a matéria em O Diário

DOMINANDO A SERRA

Parecia ser esse o único caminho que poderia conduzir ao alto da Serra do Mar, mas a inclinação era de cerca de 800 metros na curta distância de quase 10 quilômetros. Isso significava um declive absolutamente impraticável para a instalação de um caminho de ferro cujas locomotivas só podem trafegar em rampas suaves. A adoção do sistema de zig-zags para a via férrea projetada foi rejeitada por causa do custo. O sistema de cremalheiras não havia sido, até então, suficientemente aperfeiçoado para permitir uso prático.

Só lhe restava uma alternativa. Fox decidiu, então, adotar um sistema que havia dominado obstáculos de toda ordem nos primitivos dias das ferrovias britânicas. Quando, após 15 meses de árduos trabalhos, retornou à Inglaterra, demonstrou a Brunlees que era possível fazer com que os trens escalassem a Serra por meio de cabos.

E esses cabos, que de fato transpuseram a Serra do Mar, têm sido a alma da São Paulo Railway por mais de meio século.

Fox propôs que a rota para a escalada da Serra deveria ser dividida em 4 declives com o comprimento de 1.781, 1.947, 2.096 e 2.139 metros, respectivamente, tendo cada um a inclinação de 8%. No final de cada declive, uma extensão de linha de 75 metros de comprimento, conhecida pelo nome de "patamar", seria construída, com uma inclinação de 1,3%. Em cada um desses patamares, deveriam ser montadas uma casa de força e uma máquina a vapor para moverem os cabos.

A proposta foi aprovada por Brunlees, tendo-se organizado uma companhia a fim de explorar a linha que ia ser construída.

A primeira tarefa intentada pelos construtores foi a abertura da ferrovia, de Santos a Piassagüera, ao pé da Serra. Eram 20 km a vencer, porém nos 13 primeiros, em virtude da natureza do terreno, que era pantanoso, foi necessário proceder-se ao seu aterramento. Além disso, Santos é separada do continente por um braço de mar e, portanto, uma ponte de 150 metros foi construída para a ligação. Dois rios deviam ser transpostos, exigindo o rio Mogi uma ponte com três aberturas em arco de 20 metros cada um, e o rio Cubatão outra ponte com quatro aberturas de 23 metros cada.

Parecia que os 20 km vencidos tinham apresentado toda a espécie de obstáculos possível, mas era apenas uma pequena luta diante da titânica batalha dos declives que viria a seguir.

Os engenheiros tinham, para guia, as anotações e os mapas que haviam sido cuidadosamente preparados por Daniel Fox. À medida que os cortes iam sendo feitos, a pás e picaretas, surgia, para a luz do sol, o solo áspero da Serra do Mar, na forma de pequeno sulco que se perdia na imensidade da cordilheira coberta de espessa e secular floresta. Não constituía objeto de cogitações o uso de explosivos em virtude da natureza traiçoeira do terreno. A escavação de rochas por meio de cunhas e pregos de aço, batidos ao sopro rítmico de vários britadores, era um trabalho estafante. Alguns cortes atingiram cerca de 30 metros de profundidade.


Vista parcial dos planos inclinados da serra, com as duas linhas férreas
Foto publicada com a matéria em O Diário e em A Tribuna de 26/1/1939
e republicada em A Tribuna em 26/3/1944

Não obstante a impossibilidade do uso de explosivos, muitas seções da linha foram abertas por meio de desmoronamentos que, nos seus efeitos, eram verdadeiramente similares ao resultado que se obtivesse com o emprego de explosivos. A chuva, só, era suficiente para destruir o leito já preparado para receber a linha. Havia apenas um remédio contra essa anomalia. Era guarnecer o leito, nos pontos vitais, de paredes maciças de alvenaria, cuja altura variava de 3 a 20 metros.

A água era, algumas vezes, sabiamente desviada, e um caso interessante ocorreu depois de aberta a linha. Um corte ficou completamente tapado em virtude de um desmoronamento. Após a remoção preliminar da terra, por turmas de operários, a torrente oriunda da montanha foi habilmente desviada nessa direção e ali usada para remoção dos escombros. Apenas as maiores e mais pesadas pedras ficaram, as quais foram, então, usadas para a construção de possantes escoras.

As muralhas que servem de escora, na Serra do Mar, acarretaram o emprego de, aproximadamente, 230.000 metros cúbicos de alvenaria. Em alguns lugares a impressão que se tem é de que se trata de verdadeiras fortificações. E a comparação não é imprópria se considerarmos que durante todo o ano esses revestimentos são incessantemente patrulhados: grupos de homens especializados fiscalizam os caminhos que ligam pontes, escoadouros, viadutos e os íngremes declives. Inúmeras veredas correm ao longo da via férrea.

A Serra tem um solo em que não se pode confiar. A consistência do terreno não permitiu que as obras avançassem senão gradativamente, em virtude de movimentos constantes de grandes massas de terras, acompanhados de quedas de barreiras, as quais não consentiam que se ultrapassassem os limites prefixados para uma construção muito lenta.

Ao primeiro alarme de deslocamento ou desvio de terra, a turma de conserva da via permanente desce à seção ameaçada e reforça com mais alvenaria a parte fendida.

Foi mister tomar providências para enfrentar os efeitos das pesadas chuvas. Não se podia permitir que vastas e contínuas torrentes de água corressem pelos grandes declives em prejuízo do caminho. Pois do contrário, em poucas horas, o leito seria levado para baixo. Por isso, extensas áreas da enorme Serra são controladas pela mão do homem. Barrancos de concreto protegem parte das linhas; outros lugares são conservados altos e secos com o emprego de canos de aço que conduzem a água a tanques e reservatórios, ou, então, para bem longe das linhas, a fim de garantir a mais completa segurança.


Panorama da serra, mostrando o viaduto do segundo plano inclinado
Foto: jornal A Tribuna de Santos, publicada em 26/1/1939 e em 26/3/1944

Houve um caso em que aos construtores se deparou uma abertura de cerca de 65 metros de profundidade e com mais de 215 metros de largura. Era mais um dos problemas típicos que diariamente Daniel Fox tinha de enfrentar. Essa abertura foi primeiramente medida com o auxílio de cabos - o cabo de aço que tudo conquistava e que estava destinado a transpor a Serra muito breve.

Por meio de estacas e cordoalha içou-se para longe aquele delgado cabo, e vigas de ferro de enormes torres foram assentadas, uma a uma, nas suas maciças bases de alvenaria. Fizeram-se depois onze aberturas em arco ligando as pontes, as quais conduziriam ainda mais longe, em direção à meta final, aquela maravilhosa estrada de ferro.

Assim, por meio de pontes e viadutos, transpondo riachos e abrindo cortes, os quatro grandes declives ligaram o vale com o alto da montanha, assentando o caminho para o comércio do Brasil com as terras de além Atlântico.

A despeito de todas as dificuldades, os engenheiros e seus auxiliares conseguiram reduzir o tempo do contrato, que era de oito anos, de cerca de 10 meses. Esse excelente trabalho dos construtores valeu-lhes uma bonificação do Governo brasileiro, de £ 43.750.


Interior da Casa de Máquinas Fixas
Foto: jornal A Tribuna de Santos, publicada em 26/1/1939

A construção da estrada do alto da Serra a S. Paulo, e daqui a Jundiaí foi satisfatoriamente completada, apesar de todas as dificuldades encontradas e causadas pela necessidade de se fazerem cortes, aterros e de se construir grande número de pontes.

A São Paulo Railway com seus cabos inclinados sobre a Serra foi aberta ao tráfego em 1867.

O grande volume de embarques de café e o crescimento espantoso de cidades do Interior do Estado, aliados à enorme procura de mercadorias de procedência européia e do resto do mundo, exigiam uma forma mais rápida de se escalar a Serra - exigiam outro caminho através da barreira de pedra do litoral brasileiro.

Assim, em 1895, os engenheiros ferroviários começaram a construção de uma nova linha sobre a Serra do Mar. Essa linha corre hoje, paralelamente à velha, entre Piaçaguera e Alto da Serra.


Trecho da matéria publicada em A Tribuna, em 26/1/1939

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