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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - IMPRENSA
A imprensa santista

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Uma análise da história da imprensa santista no início do século XX foi feita em palestra de Álvaro Augusto Lopes, proferida em 11 de setembro de 1958 no IHGS e publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, em seu primeiro volume (dezembro de 1959, Santos/SP), páginas 49 a 60 (ortografia atualizada nesta transcrição - exemplar no acervo da Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio de Santos - SHEC):
 


Trecho inicial da palestra publicada

 

CONFERÊNCIAS

O Jornal do meu tempo

Alvaro Augusto Lopes

(Palestra proferida em 11/9/58 no

 Instituto Histórico e Geográfico de Santos)

Tenho para mim que a imprensa, com o progresso adquirido, tornando-se indústria de publicidade - perdeu bastante do seu encanto, algo do seu romantismo aventuroso de antigamente. Nisto não vai nenhum desprimor para o ofício dos que ora escrevem para o respeitável público, através das colunas volantes do jornal. os velhos costumam julgar o seu tempo sempre melhor, em cotejo com os que vieram depois.

No que se refere à arte ou técnica de informar e orientar a opinião coletiva - acredito não incorrer na pecha de VELHO caturra, ao afirmar que, no tempo em que me iniciei nos segredos dessa profissão, havia mais afoiteza, mais temeridade em ser jornalista, porque então havia combate, entre princípios antagônicos, havia luta sem quartel entre as folhas, apostadas em defender uma causa qualquer, sem a tolerância necessária, mas com vivo espírito de renúncia.

Os jornais apareciam, com um programa solene impresso no frontispício inaugural, dispostos a tentar a sorte. Vinham cortejar o aplauso das multidões, bafejando as vaidades populares, com a vivacidade algo subserviente, que hoje ainda se encontra nos adeptos da ideologia comunista. Surgiam para a glória de alguns anos - talvez alguns meses - agitando bandeiras logo descoradas, travando furibundos "entreveros", com aquele ar assomadiço dos cavaleiros da Idade Média, que a irreverência de Cervantes reduziu ao mais irremediável ridículo.

Ser jornalista, naquele tempo, beirava jogo de azar (sem alusão) - assumia assim o aspecto de empreendimento arriscado - lançar "cara ou coroa" - com o fito de alcançar notoriedade muitas vezes maligna e pouco duradoura. O jornal era "bico", isto é, emprego marginal, um "biscate", para melhorar o orçamento doméstico. Entrava-se nele - consoante frase dum escritor francês - com a condição de sair dali o mais depressa possível. Era uma passagem, um estágio, para muita gente veículo ou escada para subir um, dois ou três degraus na vida social. Um meio de arranjar posição de relevo - emprego público bem aquinhoado.

Os proprietários das folhas sabiam, de antemão, que o negócio era inseguro, estavam empatando capital numa empresa dependente dos imponderáveis do Acaso. Poderia triunfar, adquirir solidez, impor-se ao conceito público. E poderia também desandar, em rotina vegetativa, nutrindo-se de expedientes, do suado fruto de campanhas exaustivas, para juntar o cabedal em futuro distante e incerto - para desaparecer, um dia...

Isto era um mal, evidentemente - mas era também um prazer, um gosto, uma vocação agradável, de que muitos logravam evadir-se, para outros meios de subsistência mais garantidos. Hoje tudo mudou. A imprensa era apenas muda - mas não surda. E até se tornou também "falada" - Deus me perdoe a heresia etimológica! - irradiada, ilustrada pela imagem ao longe, nas maravilhas da televisão, ou seja, "televisionada", na forma do pedante neologismo...

Relembremos aqueles bons tempos dos "velhos" de agora, mocinhos esperançosos de então, com certo pendor para Don Quixote que hoje se extinguiu...

Até onde alcança a minha memória, o panorama da imprensa de Santos, nos primeiros anos da minha infância - ali pelas alturas de 1905, quando aqui cheguei garoto de calças curtas - dá-me a idéia de pequeno campo de arraial, onde apenas duas facções jogavam as cristas, na RINHA da competição mais feroz. A luta política, arrastando consigo o ódio pessoal também político - o pior dos ódios - tornava os jornais de Santos lavadouros de roupa suja - dos outros. Estavam divididos em campos opostos irreconciliáveis: os simpatizantes do senador José Cesário Bastos e os partidários de Azevedo Júnior (Antônio da Silva), antigo negociante de café, que em seu redor, sob o título de Partido Municipal, reunia a grande coletividade ligada ao comércio do café, então sem competidor no mundo inteiro.

Do lado do velho político estadual, vergôntea do vigoroso tronco do "jequitibá" oligarca, chamado Partido Republicano Paulista, terçavam armas com penas aparadas e rijas, os jornais seguintes: Cidade de Santos, fundado por Alberto Sousa; Diário de Santos, do dr. L. Ribeiro Isidoro de Campos; A Vanguarda, do bacharel Silvino Martins, e parece-me, O Jornal, de Vicente de Carvalho, que teve pouca duração.

No lado contrário ficava apenas A Tribuna, de Olympio Lima, espírito ágil de panfletário, embora sem grande cultura, que se cercava de perfeitos exemplares de jornalistas, no feitio da época - tais como Alberto Veiga, Urbano Neves, Valentim de Morais, Manoel Pompílio dos Santos, Aquilino Amaral (de quem fui vizinho, na Rua Bittencourt), Vicente Pires Domingues, amigo de meu pai, e outros.

Naquele tempo, antes da morte de Olympio Lima, em 1907, a polêmica feia e  malcriada era o "prato de resistência" do jornal que desejasse aumentar a venda avulsa. Insultos e sátiras crivavam o adversário, através de colunas espessas em NEGRITO escandaloso. Os "destampatórios" começavam na primeira página, considerada "de honra", na primeira coluna, em que pontificava o grave "artigo de fundo"; e acabavam em linguagem de carroceiros, nas seções escusas da matéria paga, espécie de quintal de despejo da imprensa de outrora.

O artigo de fundo era maciço e denso como a Serra do Mar, versando assuntos sérios mais diversos, desde o problema da canalização das águas pluviais até o mistério da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, na Semana Santa, obrigava a tarja lutuosa e epígrafes em latim litúrgico: - "RESURREXIT... NON EST HIC" etc. ...

Com a queda do "Cesarismo" - termo usado pejorativamente para causticar os adeptos do dr. Cesário Bastos - através de eleição local memorável, em que venceu o recém-formado Partido Municipal, verdadeiro "TOUR DE FORCE" para o tempo, A Tribuna, já nas mãos de Manoel do Nascimento Júnior - que o adquiriu aos herdeiros do seu fundador, menores tutelados de José de Paiva Magalhães, pela quantia de dezesseis contos de réis, grande para a época - ergueu-se para a posição de "órgão oficial" do partido vencedor, oráculo da palavra de ordem dos políticos municipalistas, da Câmara e do prefeito de Santos. Essa posição invejável manteve - sempre fustigada pelos outros jornais - até a derribada de Washington Luís, em outubro de 1930, quando lhe atearam fogo às instalações da redação e arquivo (salvantes apenas as oficinas), algumas dezenas de getulistas encobertos.

À frente do Diário de Santos, o mais encarniçado antagonista da folha oficial, estava o então jornalista Tito Lívio Brasil, bacharel com banca de advocacia, espírito alegre, amante da boa cerveja que se vendia no balcão do "Borsen Hall", à Rua XV de Novembro, o que lhe valeu o irreverente epíteto de "Tinto Lívido Barril", que lhe atirou um confrade, o Afonso Schmidt, militante nas hostes municipalistas.

No tempo em que A Tribuna, sob a direção competente dos irmãos Manoel e Antônio Nascimento, progredia de vento em popa, a folha do Tito Brasil, mal impressa, vegetava em visível decadência, até que, em princípios de 1920, com a aquisição de novas máquinas, foi transferida para um "consortium" ou sociedade anônima, à cuja testa apareciam os nomes de alguns advogados do foro local, entre outros, José Luiz de Jorge, Lincoln Feliciano, Virgílio dos Santos Magano, Nilo Costa - trocando-se o nome pelo de Comércio de Santos, sempre em oposição ao Partido Municipal. O dr. Nilo Costa, antigo procurador judicial da Prefeitura, desaviera-se com seu irmão, pelo lado materno, cel. Joaquim Montenegro, vereador com funções de prefeito, então designado pela Edilidade.

Sem caráter partidário, à margem da disputa pelo penacho, em que os jornais cotidianos então porfiavam, de maneira violenta, iam surgindo periódicos de menor porte, dedicados ao culto ingênuo das letras, vivendo a existência efêmera de tentativa logo malograda. Assim, em 1907, apareceu o Verso, invenção de Gonçalves Leite, Custódio de Carvalho e Fábio Montenegro, inteiramente redigido na linguagem das Musas, de que não escapavam sequer os anúncios e as notícias sociais!

Em 1912, um novo semanário, A Via Lactea, alusão ao livro de Olavo Bilac, então na bérra, congregava os mesmos poetas do Verso, a que se juntaram alguns mais, inclusive o memorialista de agora, ainda na adolescência dos dezesseis anos. A redação era nos fundos da farmácia de José Knudsen, generoso Mecenas das letras municipais, ajudando-as pecuniariamente, e ficava na Rua de São Francisco, esquina da Rua da Constituição. No local, salinha estreita, cheia de frascos de drogas, se organizavam tertúlias incipientes de ESPERANÇOSOS escritores, tais como A Torre, A Caravana, mais tarde transferidas para o antigo Largo do Rosário e outros sítios, onde se extinguiram de inanição...

Havia também uma revista ilustrada, de feitio social, noticioso e literário, A Fita, que se estampava mensalmente, sob a direção de Laércio Trindade e M. Pompílio de Santos. A este último, filho de Sergipe, aqui radicado longo tempo, devo o estímulo para o pecado de escrever, quando lhe levei, num sobrado da Praça da República, as primeiras colaborações em prosa, para aparecer em letra de forma. Era ilustrada a revista pelo lápis travesso de Astolfo Correia, filho do estimado médico baiano dr. Assis Correia, e em sua página de papel acetinado se imprimiam versos humorísticos de Octacílio Gomes e "Dr. Zégue-Dégue", pseudônimo de Pedro Aralhe, filho do médico e futuro vereador oposicionista dr. Guilherme Aralhe.

Posteriormente, A Fita foi substituída por A Nota, sob a responsabilidade comercial de Alberto de Carvalho, mais tarde ainda dando lugar a A Flama, fundada por S. Galeão Coutinho, na qual também colaborei. Nos começos da guerra de 1914, fiz parte da redação de O Riso, outra folha humorístico-literária de estampa periódica, dirigida por Leovigildo Trindade, filho de Laércio Trindade, então já falecido, fazendo blagues a respeito dos trágicos episódios verificados na Europa, sob a megalomania de Guilherme II e seus bigodudos marechais-de-campo.

Na redação de A Tribuna, brilhava Alberto Veiga, com seus artigos espessos e circunspectos, de tamanho enorme, a atulhar colunas e colunas, dizendo os malévolos que era preciso esconder-lhe o tinteiro, para que desistisse de alongar seus trabalhos! Militavam também seu filho, Otávio Veiga, Santelmo Corumbá, José Barbosa Júnior, ambos nortistas, Francisco Paino, J. Costa Lopes (com suas chistosas Notas da Vila), M. Furtado de Oliveira, na seção esportiva. Por ali passaram Euclides de Andrade, que em São Paulo usava o pseudônimo de Epandro; Luiz Paes, Menotti del Picchia, Francisco Patti e outros mais. Era redator-chefe, em 1920, o ex-aluno de jesuítas, José Maria Gonçalves, homem de grande cultura, que assinava artigos políticos em resposta aos do Comércio de Santos, de autoria de Bruno Barbosa, redator-secretário a quem substituí algumas vezes, até 1924.

Mal alojado, em prédio térreo da Praça Mauá, onde hoje se acha a loja "Etam", o jornal dirigido por Nilo Costa se ressentia da falta de material moderno. Mas possuía corpo editorial escolhido, com rapazes do tomo de Afonso Schmidt, Correia Júnior e Paulo Gonçalves, que se completava com outros igualmente adequados ao ofício, como Paulo Moura, Perillo Prado, J. Gomes dos Santos Netto, Alberto de Carvalho e A. Stockler de Araújo.

Ingressei ali em 1920, pela mão de Paulo Gonçalves, que foi ao Norte e depois se retirou para São Paulo, onde ajudou a fundar a Folha da Noite, de Olival Costa, e, metendo-se em política, engendrou com alguns sonhadores o romântico "Partido da Mocidade", natimorto - aventura temerária que lhe valeu agressão física de morubixaba, parente do deputado e futuro governador, Carlos Campos, autor da ópera A Bela Adormecida do Bosque!

Naquele tempo realmente só existiam em Santos, além do jornal bem feito de Nascimento Júnior, o Jornal da Noite, de Mário Amazonas e major Souza Filho, a Gazeta do Povo, de Mariano Scarpini  e dr. Cyrillo Freire, e o Comércio de Santos, que era o baluarte opositor contra o situacionismo. Os dois primeiros vespertinos mencionados não tinham o ardor combativo do último, inclinados a obter o apoio popular.

Pouco antes se imprimira O Dia, de Paulo Filgueiras e Rangel Pestana, com grandes ambições de sobreviver, dotado de boa aparelhagem material, sumindo porém dentro de breve espaço de tempo. Assim, A Tribuna e o Comércio de Santos prolongavam sozinhos o duelo, que durava desde 1906, quando o Partido Municipal ascendera ao domínio político da terra santista.

No jornal oposicionista colaboravam advogados de renome, como J. De Jorge, Martim Francisco o Terceiro, Heitor de Morais, Ariosto Guimarães e outros. Havia, ali dentro, muita ojeriza contra a polícia local, representada pelo delegado regional, dr. Ibrahim de Almeida Nobre, e o sub-delegado em comissão, José Baccarat, comissário de café, ambos às voltas com as greves na Companhia Docas e nos serviços de construção civil, inspiradas pelo comunismo incipiente. A ordem, no jornal em tela, era atacar, até o presidente da República. Os redatores, imitando Bruno Barbosa, que se incumbia do solene artigo-de-fundo, escreviam diariamente cinco ou seis "sueltos" - o jornal era todo feito À UNHA - contra todos e tudo: a Companhia Doca,s a Companhia City, de Bernardo Browne, os serviços da Prefeitura etc. Era permitido criticar todo o mundo, exceto o "glorioso Exército" (sic), a Colônia Portuguesas e a Igreja Católica.

Coube-me redigir a seção Notas de um Repórter, na ausência de Paulo Gonçalves, espécie de vazadouro de reclamações em estilo apurado, a seção de teatro, conferências, concertos musicais e crítica de livros. Afonso Schmidt compunha crônicas e contos, mais tarde reimpressos em livros, e fazia versos humorísticos na seção intitulada Farpas e Setas.

Quando, em julho de 1924, deflagrou a revolução de quartéis, na Capital sob o comando de Isidoro Dias Lopes, a nossa folha tomou posição a seu favor, de forma velada, pois a cidade permanecia em poder de forças legais. Finda a luta, com a fuga dos insurretos, a polícia prendeu Nilo Costa, Bruno Barbosa e Gomes dos Santos Netto, este simples repórter policial. Durante alguns dias o jornal permaneceu vigiado, sob ameaça de fechamento, sem direção efetiva, da qual me incumbi "TANT BIEN QUE MAL".

Por fim, a pedido da esposa do diretor, que era sobrinha do presidente Campos Salles, fui à Capital interceder, sozinho, pela libertação dos detidos, sabendo-se que o nosso chefe estava em solitária, no Rio de Janeiro! No antigo Paço do Governo, expus meu intento, em nome da aflita senhora, ao oficial de gabinete do governador Carlos de Campos. Este bondoso e obeso chefe de Estado não se dignou de me receber, pessoalmente, fazendo-me esperar um dia inteiro, até as 17 horas, quando o mesmo auxiliar me veio dizer que os presos seriam soltos breve - o que realmente ocorreu, um ou dois dias depois.

A certa altura, ali passou a trabalhar certo jornalista, muito conhecedor da profissão, mas no velho estilo da bordoada grossa. Não tardou a provocar polêmica brava com A Tribuna, a propósito de certo empréstimo de dois mil contos de réis, que pelo então prefeito teria sido aplicado diversamente do estabelecido em lei municipal. Foi na época do Natal de 1924 - um Natal tristíssimo para os que mourejavam na folha, e viviam como pequena família, em boa camaradagem, não obstante a escassez de recursos.

A situação era defendida por Alberto Sousa, então funcionário duma secretaria do Estado, que publicara, em 1922, os dois volumes de Os Andradas, por incumbência e conta da Câmara de Santos (N.E.: a obra é na verdade composta por três volumes). Na forma do costume, iniciada nas primeiras páginas, durante alguns dias, em forma polida e acadêmica, eriçada de algarismos e citações documentadas, a discussão em pouco tempo degenerou em troca de doestos pesados, ultrajando a honra pessoal de cada um dos opositores, isto é, o dr. Alberto Sousa e Nilo Costa, que tomou conta do caso, aproveitando para ajustar contas com o irmão e o chefe Azevedo Júnior. Foi posto de lado o assunto inicial da contenda, isto é, o empréstimo infeliz. Ameaças de agressão mútua espalhavam terror na cidade, onde os contraditores eram pessoas conhecidas e afeiçoadas. Alberto Sousa contratou um capanga notório, o Láláu, para lhe proteger as costas, quando transitava pelo centro urbano, vindo da capital de trem.

A temperatura psicológica se aquecera ao rubro. Um dia de manhã, no interior da Casa Tem Tudo, do cel. Amarante, na Rua do Rosário, Nilo Costa vergastou com um chicote o escritor S. Galeão Coutinho, que se metera na briga por vontade própria, havendo grande estrago na louça do estabelecimento. Nos jornais, a  linguagem explodia em estranha virulência. De um lado, Alberto Sousa invadia a vida particular de Nilo Costa, em artigos dos quais um se intitulava Escorchando um suíno. De outro lado, o antagonista replicava, sob a epígrafe: Esmagando percevejos.

Evidentemente, a questão, começada em termos de algarismos e operações bancárias, tornava-se bastante suja e mal cheirosa... Quando se esperavam desforços físicos de resultados sangrentos, personalidades de relevo, na praça cafeeira e nos meios sociais, promoveram entendimento, um "Tribunal de Honra", entre os desavindos, logrando encerrar, duma vez, o triste e quase ridículo episódio...

Isto foi em fins de 1924. Já Ibrahim Nobre e José Baccarat haviam sido exonerados da polícia local, a pedido, mas sob pressão dos jornais contrários, por motivo de espancamento brutal de populares, por policiais, quando aqui chegaram os aviadores lusitanos Sacadura Cabral e Gago Coutinho, ao termo do "raid" aéreo Lisboa-Rio. Instalado na Praça da República, ao lado do antigo Santos Hotel, embora melhor do que na Praça Mauá, o jornal de Nilo Costa, depois daquela briga tremenda entrou em franco declínio. Os pagamentos dos salários eram feitos irregularmente, por meio de "vales" aleatórios.

Eu lutava por sustentar mãe e dois irmãos menores, trabalhando de dia, como contador, em firma atacadista importadora de gêneros alimentícios, tendo por ajudante o jovem Durwal Ferreira, meu amigo e presidente do Instituto Histórico Santos. À noite, sacrificava o meu repouso merecido, a redigir laudas e laudas, para encher espaço do jornal, sempre a se debater com falta de "matéria". Despedi-me de Nilo Costa com "bilhete-azul" às avessas, dizendo entre outras coisas: - "Relógio sem corda não anda, redator sem paga não produz"... Esta piada me valeu o ressentimento do amigo até longa data. Um dia, depois d 1940, foi procurar-me, na Biblioteca Municipal, e nossas mãos se apertaram "SENZA RANCORE".

Em começo de 1925, sabendo-me inativo, à noite, Roberto de Molina Cintra, redator-chefe de A Tribuna, além de perito na Repartição Técnica da Polícia, chefe de seção dos Correios de Santos e - "EXCUSEZ DU PEU!" - cônsul honorário do Peru, convidou-me para trabalhar na redação da folha oficial, que os inimigos então apelidavam O Paquiderme, aludindo ao seu feitio conservador ou à boa sort, que lhe assinalava a carreira vitoriosa.

Já dali haviam-se retirado Albertino Moreira, S. Galeão Coutinho, Otávio Veiga (que retornaria mais tarde) e Francisco Paino, atraídos por outras ocupações, no Fórum, no comércio ou na burocracia. Empresa bem organizada, em condições sólidas, ali havia a mais estrita rotina, cada redator com atribuições definidas, sem a balbúrdia de O Comércio, onde se era "pau para toda obra", escrevendo desde o comentário político até a notícia policial, a crônica mundana e o jogo de futebol, como às vezes me aconteceu!

Cabia-me agora redigir diariamente dois sueltos e manter a seção Artes e Artistas, além de semanalmente preparar a crítica de livros recém-aparecidos, tarefa esta que se alonga até a data presente. A luta política entre os jornais da terra, não mais se fazia entre A Tribuna e O Comércio, pois este havia passado a outros donos, com a saída de Nilo Costa. Fora adquirido por uma sociedade limitada de ações, sob a responsabilidade comercial de Daniel Ribeiro de Morais e Silva, advogado, filho do ex-prefeito Belmiro de Morais, e Martinho Camargo, comissário de café. A folha agressiva de outrora morigerara-se, defendia o P.R.P. debaixo da direção do advogado e professor Nicanor Ortiz, mais tarde substituído por Júlio Barata e Gomes dos Santos Netto.

No seu lugar de oposicionista se colocara A Praça de Santos, antigo boletim comercial de informações que, sob a direção de Rafael Correia de Oliveira, depois deputado federal, combatia o situacionismo com veemência, desde 1925. A luta deste órgão contra A Tribuna restringia-se às questões doutrinárias, não entrando no terreno de retaliações pessoais.

Em 1928 houve dissidência entre o Partido Municipal e o governo do dr. Júlio Prestes, por motivo da exclusão do dr. Samuel Baccarat, na chapa oficial de deputados estaduais. Acompanhando os correligionários comandados por J. Carvalhal Filho, A Tribuna passou a censurar o ato dos próceres perrepistas, no mesmo tempo em que A Praça de Santos lhe ia no encalço, estanhando o dissídio, em linguagem elevada, mas violenta. Havendo Molina Cintra seguido para Araxá, em companhia da esposa enferma, tive a honra de o substituir, no posto principal, escrevendo alguns artigos dessa campanha, durante cerca de um mês. Todavia, dentro em pouco, cessou o desentendimento, voltando tudo à situação anterior - pois naquele tempo ninguém suportava o ostracismo demorado.

Como a folha de Nascimento Júnior, pelo seu feitio, se abstinha de forçar a nota, empregando tom discreto, em seu comentário político, alguns de seus redatores e auxiliares - Molina Cintra, Perilo Prado, José Figueira, Antonio de Oliveira - fundaram a Folha de Santos, em 1928, a que ulteriormente se associaram Francisco Paino e Jaime Franco Junot.

Era a imprensa vespertina que se galvanizava, sob moldes mais aperfeiçoados, numa época em que a Gazeta do Povo, nas mãos de Francisco Sá, Alberto de Carvalho e Adolfo Galvão, sucessores do dr. Cyrillo Freire, ainda perpetuava o jornal "amarelo", para o leitor amante de sensacionalismo. Folha de Santos, bem feita, material e intelectualmente, era grito de alarme contra a maré-montante do populismo liberticida, que viria apossar-se do país e instalar a ditadura caudilhesca, sobre as grimpas da insurreição militar de 1930.

Com essa folha, destruída em 24 de outubro daquele ano, sob o impacto do vandalismo desaçaimado, a imprensa local perdeu ótimo "fórum" de debates políticos, em que se esgrimiam habilidades polêmicas de jornalistas inteligentes. Com ela se encerrou, em Santos, uma fase de jornalismo de combate, sempre disposto a quebrar lanças por uma idéia, em torneios com endereço aos apreciadores do gênero.

O jornal moderno, quase inteiramente entregue à confecção dos técnicos, não recorre mais ao escriba autodidata e eclético; volta-se de preferência para os temas realísticos. Ao leitor atual interessa mais a notícia - o fato - o acontecimento da véspera. A não ser o esporte, em que existe o espírito de competição, refletido nas colunas da imprensa - o pendor para o "clubismo" com a "mística" da defesa de insígnias e cores - o jornal de hoje não se coaduna com a imprensa VERMELHA ou AMARELA dum tempo em que o público leitor se divertia sadicamente com os excessos de bate-boca malcriado.

Hoje não existe mais anfiteatro para gladiadores ferozes, armados de pena e papel, mas o animatógrafo ilustrado com telefoto, registrando novidades em teletipo. Apesar do progresso imenso da cidade, em todos os aspectos, a imprensa de Santos comporta apenas dois matutinos! Parece que não há precisão de outros mais... Não há por que lutar - os tempos mudaram muito.

Não foi este o jornal consuetudinário, que conheci nos meus verdes anos - agora preparado em maquinismos perfeitos, caracteres nítidos, formato manuseável, com esplêndido noticiário mundial e colaboração recebida de todos os quadrantes. O que me habituei a ler, admirar e desejar nele ser participante - como realmente se verificou - era o jornalão de mais de um metro, impresso em tipos grossos, sem "clichés", a não ser o velhote de "As Rabugices", a instilar humorismo em anedotas não raro picantes. Não era a enciclopédia anônima da atualidade, porém o palco largo, em que se exibiam artistas da pena, à feição de Alcindo Guanabara, João Lage, João do Rio, Félix Pacheco, Júlio Mesquita, Rangel Pestana. Deles remanesceu, em nossos dias, Costa Rego, o mestre inesquecível. Jornal com dez páginas editoriais - escritas em laudas a bico de pena - e apenas duas ou três de anúncios, com seções habituais cuja autoria se proclamava pela assinatura, ou iniciais, e se adivinhava pelo estilo...

Cada jornalista encarnava uma idéia, um princípio, uma doutrina - boa ou má. E cada qual tinha a sua maneira peculiar de redigir, seus "tiques", manias, aparatos de ritual. Poderei enumerar alguns, que observei em longo convívio. Assim, o velho Alberto Veiga - o "Veigão", como o chamavam às escondidas, para o distinguir do filho, o "Veiguinha" - escrevia geralmente de pé, numa estante de guarda-livros, numa sala da Associação Comercial de Santos, onde muitas vezes o visitei, na companhia de Paulo Gonçalves.

Otávio Veiga dava longos passeios, mãos nas costas, cabeça baixa, na sala dos redatores de A Tribuna, compondo versos satíricos sobre assuntos locais, numa seção subscrita com o criptônimo de "Plan". O dr. Nilo Costa não sentava numa cadeira para redigir artigos: ditava-os de pé, ao redator então desocupado - como a mim várias vezes aconteceu - gesticulando, e andando de um lado para outro, erguendo e abaixando a voz, como se dirigisse a auditório invisível (o resultado era um discurso, com frases repetidas, marteladas com ênfase).

Alberto Sousa exigia, para a confecção dos seus trabalhos jornalísticos - sempre belos e brilhantes, na forma e no fundo - ambiente de calma, silêncio propício à meditação. Fechava-se num gabinete, a sete chaves, rodeava-se de dicionários, livros de consulta, jornais e, naturalmente, do material necessário, que no tempo eram ainda o papel, a tinta, a caneta e o mata-borrão... (a máquina de escrever era luxo de abastados!) De vez em quando, o poeta de Livro dos Amores, sempre elegante, na sua casaca ou fraque preto, com uma flor na botoeira, apertava uma campainha e chamava um "contínuo" para que fosse buscar, na coleção dos jornais, o subsídio informativo de que estava carecendo.

Bruno Barbosa, no Comércio de Santos, chegava cedo, mas conversava até perto da hora de apanhar o último bonde do bairro do Paquetá, onde residia. Gordo, sanguíneo, apoplético, pegava então, bastante afobado, uma dezena de laudas compridas e largas e, como se manejasse pincel suave, em tela de seda, disparava a escrever sem levantar a cabeça ou se deter para refletir. Os artigos brotavam perfeitos e acabados, com poucas rasuras ou emendas. O contrário ocorria com Paulo Gonçalves: - a fumar cigarros intermináveis, a torcer e retorcer um cabelinho rebelde, na testa, ou um botão do casaco preto, com gola de veludo, levava muito tempo até que a frase rendilhada como tapeçaria oriental se formava - lento e lento - borboleta alada a surgir do casulo enovelado.

Entre duas pilhérias, conversando com os colegas, abaixando os olhos míopes bem junto do papel, Afonso Schmidt, com a mesma facilidade com que dava forma a um soneto impecável, narrava ocorrência de "faits-divers", ou uma história fantástica, inventada na hora, que depois fixaria em livros de contos. Correia Júnior era o meio-termo entre a displicência de Schmidt e o apuro de Paulo Gonçalves: metia os ombros na empresa de soltar um suelto ou comentário alusivo, com a paciência de monje beneditino, numa letra miúda, microscópica, verdadeira miniatura a lembrar escrita japonesa, que num palmo de lauda concentrava, como frasco de perfume, o que para outros se exigiria espaço cinco vezes maior!

Especialista em esportes, Alberto de Carvalho, português no sotaque e nas maneiras francas e naturais - soltava palavrões terríveis, antes de abaixar a cabeça e escrever, às carreiras, duras verdades contra adversários do clube predileto, em linguagem asseada, embora contundente.

Rafael Lóssio, meu companheiro da faina sueltista, em A Tribuna - que muitas vezes comigo disputava a primazia do assunto capaz de merecer a aprovação de Molina Cintra, nosso chefe comum - redigia com a velocidade de uma locomotiva a todo vapor, e largava o que produzia nas mãos do encarregado da oficina, sem reler nem olhar para trás. Não corrigia nada, com a pressa de se livrar da maçada diária, e só no dia seguinte é que iria examinar o que tinha gatafunhado, numa letra ágil e nervosa.

Seria longo enumerar aqui os hábitos e processos de cada um dos rapazes de jornal, que tive ensejo de conhecer e privar intimamente, como Stockler de Araújo - este homem já maduro, às voltas com um fabuloso dicionário de sinônimos, que elaborava a horas mortas, depois de findo o serviço, até o amanhecer seguinte; Décio Andrade, o popular "Espião da Esquina", que levava trezentos e sessenta dias a ruminar, sisudo e taciturno, a graça esfuziante que irradiava na época do Carnaval; José Ferreira Coelho, o "Coelhinho", o "Comandante" da Guarda Noturna, redator da seção policial, sempre implacável com "tiras" e rufiões; Costa Lopes, tipo de boêmio alinhado, antigo capitão autêntico de longo curso, a trocar em miúdos a erudição de navegador, aplicada a bêbedos contumazes da terra.

São figuras que se foram para o além da Morte, mas que se me gravaram na retentiva, com a peculiaridade de atitudes e gestos, cuja lembrança gosto de rememorar nos momentos em que bate a saudade...


Frontispício da publicação