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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
A primeira barbeira de Santos

 

O jornalista do antigo jornal A Hora Santista deixa evidente seu espanto, misto de admiração, ao entrevistar a profissional pioneira no ramo de barbearia em Santos. A matéria foi publicada na edição de 4 de abril de 1959, páginas 6 e 10, e os recortes foram guardados pela família durante meio século, como conta seu filho Reinaldo, que enviou cópia da reportagem a Novo Milênio em 26/5/2010: "(...) a notícia de que dona Dorothéa foi a primeira barbeira de Santos, segundo este jornal, estava guardada numa gaveta por mais de 50 anos, surpreendeu até a mim, filho que sou dela. Hoje ela está com 78 anos de idade e se lembra quando chegou em Santos vinda do interior paulista. A publicação desta matéria é datada de Sábado - 4 - 4 - 59. Pois é, o Macuco ainda era a Bacia do Macuco e Santos era bucólica e tinha outros ares". Este, o texto publicado em 1959:

Com atenção e esmero, Dorothea escanhoa o rosto de um dos barbudinhos da Bacia do Macuco

Foto publicada com a matéria

 

Figaro... Figaro

É barbeira, sim senhor!

 

Jovem interiorana exercendo a profissão de barbeiro num salão de bairro - Caso inédito em nossa cidade - Muito procurada pelos "barbudinhos" da Bacia do Macuco - Viúva... e muito respeitada pelos fregueses

O mundo atual sofreu radical transformação no que concerne à atividade humana. Assim é que o chamado sexo frágil, hoje em dia, se ainda não o deixou de ser, logo perderá essa denominação. Em todos os ramos das atividades humanas, vemos homens e mulheres, lado a lado, ombreando-se na ingente luta pelo pão de cada dia. Nas artes, nos ofícios, nos estudos e até mesmo no esporte, é comum vermos o sexo feminino incursionando decisivamente nas posições onde até bem pouco tempo era tabu a sua presença.

Alçando-se a essas posições que eram exclusivamente masculinas, as mulheres obrigaram os homens a uma preparação mais esmerada, para nesse incomum cotejo de forças poderem manter os privilegiados lugares que sempre, através dos tempos, ocuparam.

Nas artes, é inumerável o contingente feminino que ocupa os mais destacados postos. Na literatura, então, nem se fala. Nos esportes a mulher tem o mais destacado realce em nossos dias. Não mais se comenta qualquer competição esportiva entre mulheres. O que os nossos avós jamais poderiam pensar, hoje encaramos com a mais fria naturalidade. Vemos mulheres competindo em natação, em bola ao cesto, volibol, atletismo, tênis, futebol e até na brutal luta-livre.

Nas profissões liberais, exceção da engenharia, que desconhecemos, a mulher encontra-se ao lado do homem desde os bancos universitários. Na política a mulher entrou decisivamente, travando grandes debates nos plenários, levando os homens muitas das vezes a atitudes quase que irracionais para poder conter o vigor das línguas femininas quando em defesa dos interesses dos seus eleitores.

Não faz muito tempo, vimos em nossa cidade, uma senhora dirigindo um pesado caminhão de transportes rodoviários, um serviço reconhecidamente pesado, que bem poucos homens têm disposição para enfrentar.

Assim é que, divagando sobre a intromissão feminina nos mais variados setores da vida humana, tivemos conhecimento de um fato interessante, digno de atenções, pelo ineditismo da atividade em que se ocupa uma jovem.

Dorothea - É esse o nome da jovem. Bonito nome - Dorothea Gomes - à primeira vista, dá impressão do nome de alguma colunista social, ou dum nome de origem histórica, de mulher destinada a transformar o mundo. Mas, não se trata disso. Ela trabalha como oficial de barbeiro no Salão Chave de Ouro, sito à Av. Siqueira Campos, 107, um pequeno salão muito limpo, de propriedade do lusitano Antonio de Almeida.

Ela não está destinada a transformar o mundo. Transforma, isso sim, os fregueses que mais parecem os barbudinhos de Cuba, nas faces mais apresentáveis a um salão de festas.

Fomos encontrá-la em plena atividade. Com a devida licença do mestre Antonio, ela parou de trabalhar e passou a nos atender com a máxima solicitude. Esqueceu até o freguês todo ensaboado na cadeira, originando um solene protesto do mesmo.

Sua história - Dorothea, de boa estatura, lindos cabelos, o sorriso mais simpático do mundo, tem os olhos duma cor indefinível. Um misto de castanho esverdeado. Conversa muito bem. Embora a profissão, possui bem acentuado o encanto e a delicadeza feminil. É viúva. Nasceu no Interior, em Novo Horizonte.

Mais tarde sua família mudou-se para Valparaíso, onde ela se criou. Estudou, se fez moça, namorou, tudo que uma moça interiorana faz ela também fez muito naturalmente. Sua vida não foi um mar de rosas. De família pobre, logo cedo ela começou a trabalhar na lavoura, na cultura do arroz e outros gêneros, a fim de poder ajudar seus pais na manutenção do lar muito numeroso.

Dorothea chegou a trabalhar num circo. Era o ponto e, muitas das vezes, fazia pontas nas peças levadas pela troupe circense. Lutou muito a nossa entrevistada. Sua vida, bem contada, daria um grosso romance.

Aprendeu a profissão - Por coincidência, Dorothea, que trabalha com o mestre Antonio, aqui nesta cidade, aprendeu a profissão de barbeiro com um outro Antonio. Só que este era de naturalidade italiana. Conhecido da família, começou por brincadeira a ensinar o ofício a Dorothea, que, após certo tempo, tomou gosto pela coisa e passou de aprendiz a auxiliar direta do fígaro italiano.

Sua mãe, vendo que ela se identificara com o ofício, animou-a bastante, chegando, inclusive, a querer comprar um salão para Dorothea dirigir. Mas, como em toda a cidadezinha do Interior, os comentários desairosos contra a sua pessoa e o ofício que abraçara levaram a moça, inexperiente ainda, ao desânimo, fazendo com que a sua boa mãe desistisse da compra do salão.

A simpática Dorothea e seu patrão, mestre Antonio, contando detalhes da história da entrevistada ao repórter de A Hora Santista

Foto publicada com a matéria

Mudou-se para Santos - Com sua mudança para esta cidade, Dorothea encontrou a princípio uma certa dificuldade de adaptação. Foi copeira, arrumadeira, exerceu outros ofícios, mas era infeliz, nada lhe dava certo.

Até que um dia, lembrando-se do ofício aprendido com o seu antigo mestre, falou com seo Antonio, do Salão Chave de Ouro, o qual acedeu em deixá-la trabalhar em experiência no seu estabelecimento. Com muita paciência, seo Antonio foi-lhe tolerando certas falhas e com sua experiência de longos anos, fez com que Dorothea se aperfeiçoasse no metier.

No começo, quando ainda era novidade, ela sentia-se constrangida quando ouvia qualquer comentário dos fregueses, ou quando outras mocinhas e curiosos transeuntes a avistavam dentro do salão, em atividade, e sorriam. Com o tempo ela acostumou-se e hoje não dá a mínima importância.

Mas que foi difícil, isso nem resta dúvida. Ela pensou que em Santos tinha encontrado as mesmas tesouras que a fizeram quase desistir da profissão no interior. Hoje, completamente à vontade, Dorothea, com seu sorriso largo e bonito, confessa-nos estar encantada com os santistas em geral, pelo modo gentil de tratamento, pela compreensão e, em particular, do pessoal da Bacia do Macuco, que ela muito adora pela forma sempre correta e respeitosa com que a tratam.

Para o mestre Antonio e para os colegas ela não pode nem encontrar palavras que pudessem expressar todo o seu agradecimento e simpatia pela pronta e desinteressada colaboração que os mesmos sempre lhe proporcionaram.

E... o futuro? - Dorothea diz que não sabe porque abraçou a sua atual profissão. Podia muito bem ser cabeleireira em salões femininos, mas, sinceramente ela diz que não gosta disso. Como não aprecia também o seu ofício. Curioso.

A navalha, instrumento cortante, de tortura em mãos pouco hábeis de certos profissionais, de perigo em mãos inescrupulosas e vingativas, nas finas e macias mãos de Dorothea transforma-se em carícia para os másculos rostos dos seus felizes fregueses. Ela faria, por certo, sucesso em qualquer salão de 1ª classe, no centro da cidade ou nas praias. Ela, porém, diz que jamais pensou ou pensará em deixar o mestre Antonio e os seus bons fregueses da Bacia do Macuco, que ela tanto adora.

Viúva, logo pretende casar-se novamente. Está noiva. Seu noivo não implica de forma alguma com o seu ofício. Diz ela que quando conversam esquecem por completo o seu inédito mister.

Espera, se possível, mesmo depois de casada, continuar no seu atual serviço, mesmo porque, as coisas do jeito que juscelinamente vão, deixam qualquer mortal receoso de enfrentar o futuro.

Há que se lutar pelo pão de cada dia. A vida a dois dá bem. Mais tarde, logo vêm a três e o quatro, e o "mar não está prá peixe". O negócio é ganhar dinheiro.

Finalizando, a nossa curiosa reportagem, Dorothea pediu-nos para anotar o seu palpite para o jogo de hoje à noite entre a nossa seleção e a congênere da Argentina. Embora não aprecie muito o futebol, Dorothea afirmou que o Brasil será o Campeão na noite de hoje. 3 a 1 para os nossos rapazes é o seu prognóstico. Queira Deus que ela esteja certa. (N.E.: o jogo, realizado em Buenos Aires pela Copa América 1959, terminou empatado em 1x1).

Imagens: reproduções das páginas das 6 e 10 de A Hora Santista de 4/4/1959

No dia seguinte à entrevista, a reportagem de A Hora Santista entregou a Dorothea cópias de três fotos então produzidas:

 

Fotos: A Hora Santista. Reproduções enviadas a Novo Milênio em 12/6/2010

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