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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 21 a 29:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[03] Bertioga

Enquanto existir n Brasil a memória da sua primeira colonização, Bertioga não será esquecida; e Bertioga, que era a Termópila, lembra, na história da Capitania de São Vicente, aqueles seis espartanos lendários que a defenderam, barrando a passagem dos antropófagos.

Nenhuma obra de brasilidade e nacionalismo será completa, enquanto os brasileiros e todas as regiões não conhecerem as peculiaridades heroicas de cada Estado de seu país, enquanto essas peculiaridades histórias não forem divulgadas, como feitos comuns de um mesmo povo, para comum orgulho contemporâneo.

Em verdade, tanto devem interessar aos brasileiros os feitos rio-grandenses, como os feitos paulistas, mineiros, baianos e amazonenses, porque todos eles foram praticados debaixo do mesmo espírito de salvaguarda brasileira e se destinaram igualmente à preservação do Brasil; a ausência desse interesse será sempre um sintoma de desagregação, porque ele pode coexistir perfeitamente com esse outro sentimento desculpável e até mesmo justo - que é o regionalismo; pode e deve, porque um é o princípio do outro, e ambos integram o homem da terra no imprescindível culto da Pátria.

Por São Vicente e com Martim Afonso processou-se o primeiro amanho social da brutalidade brasileira. A madrugada nacional despontou indiscutivelmente ali, na virgindade daquela marinha, onde as duas primeiras sementes da civilização - São Vicente e Santos - foram atiradas, germinaram e floriram, produzindo a Capitania que devia abranger um dia quase a metade do território do Brasil e que hoje é o rico e florescente Estado de São Paulo.

Tudo está feito agora; definitivamente conformado, segue o país seu destino de grande nação, dotado de todos os progressos conhecidos, de todos os adiantamentos científicos, de todos os recursos, para uma futura liderança mundial. Porque, pois, não recordar as passagens marcantes da sua infância e os vultos veneráveis daqueles que se imolaram para que sobre o seu sangue e suas cinzas se levantasse o monumento nacional?

***

Cerca de 1550, quando o aumento dos elementos colonizadores em Santos e São Vicente, até então distribuídos pela redondeza das duas vilas, trouxe a necessidade da ocupação de toda a ilha de Guaíbe ou Santo Amaro, Bertioga começou a fazer parte integrante da vida santista e colonial, não debaixo do ponto de vista agrícola porque a expansão ainda não exigia as suas terras virgens, mas debaixo do ponto de vista estratégico dentro da necessidade de defender o que estava feito da sanha dos tamoios.

Os antropófagos tupinambás, já irritados contra os colonizadores pela ascendência que lhes notavam entre guaianazes e tupiniquins, e que lhes ia permitindo a posse cada vez mais ampla da terra, viviam então açulados contra os portugueses, e começavam as sortidas contra eles, descendo do alto do litoral, da distância de Ubatuba e Maiembipe (ilha de S. Sebastião), em expedições de quarenta, cinquenta e mais canoas de guerra.

Bertioga era então o limite Leste da colônia e a porta de entrada dos expedicionários. Os tamoios ou passavam por ali ou não passavam. Jamais investiram pelo mar grosso, contornando Santo Amaro para cair sobre as duas vilas; sempre avançaram pelo rio Bertioga, que saía naquele ponto e era o caminho fácil e rápido para ambas. Necessário era portanto que se barrasse aquela passagem aos atacantes.

Foi quando surgiram os Bragas, Diogo, o pai, e seus cinco filhos, Diogo, André, Francisco, João e Domingos, mamelucos, frutos dos amores americanos do português.

O reino não previra a importância possível da Bertioga; a colônia não tinha ainda recursos para realizar as fortificações necessárias àquele ponto; restava o heroísmo dos moradores.

Datava de 1547 a primeira casa forte erigida no sítio pelos incansáveis irmãos. Durante aqueles três anos, eles, alguns tupiniquins amigos e mais alguns portugueses montaram guarda à pequena barra, repelindo inúmeras investidas tamoias. Em 1550 houve uma descida tremenda, Setenta canoas de guerra, cada uma comportando de quinze a vinte guerreiros, desceram contra a Bertioga; comandava-as Aimberê, o gênio mau da tribo. O resultado foi a destruição de Bertioga, o incêndio do reduto fortificado e a matança quase geral dos defensores.

Como demônios, os bárbaros de Aimberê surgiram de todos os lados, insinuando-se pelas árvores, disfarçando-se nas rochas, coleando pela areia, e abafaram aqueles quarenta ou cinquenta heróis do reduto. Só escaparam os Braga e mais alguns portugueses, os outros foram trucidados, esquartejados e comidos à vista dos fugitivos.

O espetáculo não fez esmorecer àqueles bravos. Aqueles gritos e sons bárbaros, as horrissonâncias dos trocanos, o mugido das inúbias, tudo estava esquecido ao fim de alguns dias, e os Braga voltavam ao sítio da Bertioga, reedificando oq ue fora destruído. Tinham agora novos recursos fornecidos pelas autoridades e pelo povo de Santos e São Vicente e tinham novos companheiros, entre índios, portugueses e soldados.

Três meses decorriam da última incursão, e nova investida tamoia se verificava contra a Bertioga. Mais de dois mil guerreiros talvez, sob o comando de Aimberê e Coaquira, vinham com a nova multidão de canoas de guerra. Um aviso correu todo o rio, pondo alerta os agricultores, para a resistência ou para a fuga.

Inúteis porém os novos heroísmos; corridos pela força, os defensores de Bertioga, após muitas perdas, recuaram pelo rio, mas a fúria de Aimberê não lhes deu trégua, perseguindo-os sempre, até Santos e São Vicente, que puseram em cerco e invadiram, com muitas mortes, capturas e depredações.

A grande obra da colonização periclitava diante da violência e da bravura dos tupinambás. Desertavam os agricultores, assaltados pelo terror das novas invasões; paravam os engenhos; dizimava-se e debandava o gado, e a miséria prometia dias negros para a abandonada Capitania.

Só então dignou-se o governador Tomé de Sousa voltar os olhos para São Vicente; mandou primeiro um representante e mais tarde veio ele mesmo inspecionar a região, convencendo-se aí da necessidade de fortificar o sítio da Bertioga. Fizeram uma casa forte no extremo da praia, junto à água; puseram-lhe canhões e lhe deram para oficial artilheiro um alemão - Hans Staden. Meses depois, já em 1551, fizeram obras definitivas, as muralhas de pedra.

Os Braga secundavam Hans Staden e todos obedeciam ao capitão-mor Cristóvão de Aguiar Altero, que superintendia a construção. Pouco depois eram os tamoios rechaçados pela primeira vez diante das muralhas do forte pomposamente denominado - São Tiago.

Mas não era bastante para a confiança dos agricultores. Cogitavam por isso de levantar novo forte de pedra ao outro lado da barra, na ponta extrema de Santo Amaro. Havia ordens do governador geral. Braz Cubas substituía a Cristóvão de Aguiar no governo da Capitania. Capitão-mor e provedor da Fazenda, ele realizou a fortificação que faltava. Em poucos meses estava de pé, na ponta mais alta da barra, o Forte de São Filipe.

Nem por isso deixaram os tamoios de infestar a Bertioga; apenas Santos e São Vicente ficaram mais tranquilas. Numa daquelas sortidas, então mais cautelosas, capturaram o próprio artilheiro, o alemão Hans Staden. O destino agia assim para transformá-lo, mais tarde, no ingênuo e verdadeiro historiador do sítio heroico da Bertioga, com a narrativa dos acontecimentos, da tradição local e do seu longo cativeiro entre os homens de Aimberê.

Em 1554 ainda continuava a sua retenção e é ele quem nos conta o fim dos últimos irmãos Braga - Diogo e Domingos; triste fim para heróis como eles; foram assados e comidos diante dos companheiros Jerônimo e Jorge Ferreira, que foram assados depois, a dois passos do alemão artilheiro.

Desapareciam os Braga, os primeiros filhos conhecidos da terra santista, quando os seus serviços já não eram tão necessários à defesa da grande obra da colonização e podiam ser esquecidos os seus heroísmos espontâneos.

Lá estavam agora, avultando na barra histórica, as sombras dos dois fortes, símbolos de força, erguidos sobre o seu sangue, e Bertioga entrava paa a História, aureolada pelo seu sacrifício.

A fama dos Braga, porém, estava na consciência de todo o povo da marinha. Em 1557 Pascoal Fernandes era feito condestável da Barra e Sítio da Bertioga; era um grande guerreiro, era fundador de Santos, presidira, como tantos outros do seu porte, a todo o desenvolvimento da colônia portuguesa; tinha canhões e soldados ao seu mando, mas o povo nao voltava às suas lavouras; o abandono continuava pelos engenhos e sítios de Santo Amaro e terra firme; é que faltavam os Braga para completar a confiança dos lavradores.

Cinco anos depois persistia o abandono, e só o armistício de Iperoig, realizado em Ubatuba pelos apóstolos Nóbrega e Anchieta e pelo predestinado José Adorno, teve depois o condão de repovoar aquelas terras abandonadas, movimentando Santo Amaro.

Confraternizavam tamoios, tupiniquins, mestiços e portugueses; abraçavam-se as raças em Santos, São Vicente e Piratininga. Bertioga tornava-se uma grande tradição.

...Setenta canoas de guerra, cada uma comportando de quinze a vinte guerreiros, desceram contra a Bertioga...

Imagem publicada na página 25