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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 76 a 86:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[08] No tempo da contratação

O ano de 1710 foi um ano de sustos para a vila de Santos. Não havia mais capitães-mores; o último fora José de Godoy Moreira, que ali, na vila paulista, aguardava ainda a chegada de Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, o primeiro capitão-general da nova Capitania de São Paulo e Minas.

Santos era então um presídio fortificado, de quatro companhias de infantaria paga, e tinha por governador militar o mestre de campo José Monteiro de Matos, homem calmo e ponderado, espírito chocarreiro, de certa cultura filosófica, que vivia pelo menos vinte anos adiante da época.

Todo o litoral da Capitania estava empobrecido pela loucura das minas, que vinha empolgando a mocidade e atraindo capitais e aventureiros, carreando enfim vida e atividades para os sertões centrais, onde o ouro e os diamantes surgiam às onças e aos arráteis. Santos só servia para sustentar de gêneros toda aquela gente que a abandonava abandonando a lavoura pela miragem da riqueza fácil.

Tudo que nela havia era pouco para seguir serra acima, comprado pelos que não olhavam preço. O resultado estava se vendo; a não ser os poucos negociantes, ninguém possuía dinheiro, e muitos já nem podiam comprar os gêneros mais necessários à sua alimentação.

O regime das trocas vinha imperando; os próprios artigos de consumo serviam de moeda e um alqueire de farinha de mandioca valia então 400 réis - um alqueire de arroz 720 - um de feijão 280 - um de milho 200 - uma arroba de toucinho 500 - uma medida de aguardente 160 - um porco cevado 50 e assim por diante.

Mas havia um produto que era como ouro, tão caro estava - era o sal - precioso como ele só, e ultimamente cobrado a 1$280 por alqueire com mais 400 réis do imposto de consignação para a Fazenda Real, preço absurdo e insuportável que trazia o povo desolado.

Dois indivíduos de meia fidalguia, fidalgotes como diziam então, tinham vindo havia algum tempo de Portugal, estabelecendo-se em Snatos, onde conseguiram logo da real bondade de el-rei d. João, por injunção política e bom apadrinhamento em Lisboa, o contrato exclusivo do sal na Capitania. Só um deles, porém, aparecia como contratador.

Desde que aqueles homens começaram a exploração do precioso produto, o preço do sal, que era de 480 réis por alqueire, com mais 200 réis do imposto real para sustento da tropa, subiu imediatamente para aquelas alturas - de 1$680 réis; e tudo era resultado da manobra perversa dos dois fidalgotes, embora passasse por emanação direta da administração portuguesa. Mas não ficava aí. Em Santos o preço ficou sendo aquele, mas os fornecimentos para o interior, ainda sob exigência de pagamento antecipado, passaram a ser feitos a preços absurdos, atingindo mesmo 20$000 por alqueire, uma fortuna, sob a alegação de que não vinham de Portugal os suprimentos costumeiros, e de que, por isso, a crise do produto era grande na praça de Santos.

Aquilo era, em linguagem vulgar, "botar a faca no peito" de toda a gente das montanhas, de São Paulo a Vila Rica, que tudo podia encontrar lá mesmo, com algum esforço, menos o sal, e bem se pode calcular a revolta que começou a lavrar entre aqueles milhares de moradores, sertanejos, lavradores, criadores e garimpeiros, contra a exploração da marinha.

Ao cabo de alguns meses o murmúrio era grande nas montanhas. Entre os revoltados e mais atingidos no sertão, estava Bartolomeu Fernandes Faria, um potentado, criador de rebanhos nos campos de S. Paulo e faiscador feliz nos garimpos novos de Sabará. Tinha um exército de gente e uma multidão de animais; precisava do sal para condimento e para o gado, mas não podia sujeitar-se ao preço dos contratadores; duvidava mesmo que houvesse falta do produto em Santos; e assim como ele, muitos outros em toda a vastidão interior das Capitanias reunidas. O resultado não se fez esperar; contando com a solidariedade incondicional de alguns criadores e garimpeiros, Bartolomeu reuniu toda a sua gente, fundiu-a com os reforços amigos, aliciou mais algumas centenas de índios e mestiços em redor, gente afeita à guerra, e, pondo-se à frente da grande coluna de quase dois mil homens, a pé e a cavalo, marchou para Santos.

Homem experimentado, Bartolomeu Faria não desceu pela Estrada do Mar; seguiu por Santo Amaro e saiu na praia da Conceição, encaminhando-se para São Vicente e daí para Santos, sem encontrar resistência alguma e sem produzir alarmas.

A conduta de Bartolomeu já revelava os seus bons propósitos; o paulista não queria combate, não queria morte, não queria saque, queria apenas sal, sal, elemento imprescindível de vida, e por isso cobria muito maior distância, com muito maior trabalho, quando o seu exército podia passar por onde entendesse sem maiores receios.

Quando Bartolomeu entrou em Santos era de madrugada, e pouquíssima gente aparecia por onde ele vinha, contornando os morros, até chegar ao Valongo, a Santo Antônio e, pouco mais adiante, à Rua de Nossa Senhora da Graça, e, finalmente, à do Sal, onde ficavam, como bem dizia o nome, os grandes depósitos da Capitania, explorados pelo cinismo impune dos dois fidalgotes lusitanos.

Distribuída sua grande força pela rua e pelas redondezas, era de esperar que Bartolomeu arrombasse as portas e arrancasse de lá todo o sal de que precisava, sem pagá-lo, como bem merecia a exploração dos contratadores, mas nada disso fez; o paulista mandou que fossem chamar os homens do Contrato e seus caixeiros, e avisar ao provedor da Fazenda Real para que mandasse para lá seus fieis recebedores, pois tinha vindo para comprar muito sal e nada queria dever à Fazenda do sr. d. João. Avisava também a todos que nada temessem, mas nada tentassem contra ele, porque trouxera uma força de dois mil guerreiros armados, que valia por seis mil e contra a qual nada poderia a guarnição da Praça.

Assustados pelo aviso e pelo matutino da hora, compareceram todos os chamados, e durante horas procedeu-se à contagem dos alqueires de sal que enchiam, um a um, os cassuás armados ao lombo das mulas e os sapiquás dobrados aos ombros dos carijós. Tudo pagou Bartolomeu, como tinha prometido, à razão do preço oficial, de 1$280 por alqueire, pagando também à gente do provedor Timóteo Correia de Góis os 400 reis do dízimo da Fazenda, e, feito isto, dirigiu-se aos dois contratadores, advertindo-os da má ação que vinham praticando e de que, se continuassem a exploração, um dia ele voltaria ali para enforcá-los e incendiar-lhes as casas. Foi a única violência do bandeirante, e em seguida, com sua voz tonitruante, ele deu ordem de marcha à sua poderosa coluna.

Já havia então muito povo à sua passagem, vencidos os primeiros receios de violências e depredações. Todos vivavam a correção de Bartolomeu Faria e a lição dada aos contratadores. A maioria da gente, porém, ali estava mais para ver os cavalos que Bartolomeu trazia do que para outra coisa, pois em toda a vila jamais se vira um cavalo até aquele ano.

Assim que se viram livres do bandeirante de serra acima, depois de terem suado frio durante algumas horas na previsão de castigos que a própria consciência autorizava, os contratadores deitaram a correr, Rua da Praia abaixo, para a casa do mestre de campo José Monteiro.

Admirado de o perturbarem àquela hora calma do almoço, o mestre de campo atendeu-os, perguntando-lhes se tinham visto assombração, tão apavorados eles estavam:

- Muito pior, sr. mestre de campo! Muito pior! um assassino do planalto.

- Um assassino?... Onde?... Como?...

- Ora, sr. mestre de campo... um bandeirante... com um exército... assaltou nossos pobres depósitos de sal! Vamos, sr. mestre de campo, traga a sua gente... prenda-os!

- Prender a quem? E porque? De que jeito? Onde é que eu vou buscar cadeia para tanta gente? (Ele já estava bem ao par da exploração dos dois homens e da irritação que lá ia, pelo interior e pela própria Capital, contra a gatunagem dos fidalgotes, e intimamente deliciava-se com o nervosismo dos dois exploradores)... mas, afinal, o homem não pagou o sal? Vocês não estavam lá? Não contaram o que saiu?

- Sim... sim... estávamos... contamos... pagou sim senhor, mas só 1$280 por alqueire...

- E não pagou os 400 réis da Fazenda?

- Sim... sim... pagou, sr. mestre de campo...

- Pois então... ora bolas... foi uma compra regular e não um assalto... por quê vêm aqui me incomodar?

- Mas... mas... sr. mestre de campo, e aquela força? E o medo que nós passamos durante horas, junto daquele bruto?...

- Ahn... ahn! Compreendo! O que impressionou a vocês foi a força, não é? A força foi um símbolo de que o homem usou... porque indivíduos como vocês... só mesmo à força é que se comovem!... Ouviram?... Pois ainda foi pouco!

- Senhor mestre de campo!

Os dois homens estavam abafados... cada vez era um que falava... e mais abafados ficaram ao fim do diálogo com o mestre de campo.

O comandante da Praça fizera um pequeno silêncio e depois continuara:

- Entretanto... é preciso que eles saibam que Santos é uma Praça Militar, que tem a sua guarnição e o seu mestre de campo... vou persegui-los! Fiquem tranquilos!

José Monteiro de Matos pensou foi em salvar as aparências diante do rei, uma vez que os dois fidalgotes, com toda certeza, haviam de dar à língua. Desde que sabia do fato por intermédio de alguém, cabia-lhe pelo menos uma providência, e foi isso que fez.

Os contratantes retiraram-se sorridentes, enquanto o mestre de campo corria para o quartel. Logo soaram as cornetas. Em poucos minutos, a tropa de prontidão, cerca de duzentos homens, marchava a passo largo para o caminho de S. Vicente.

Quando a força santista chegou ao São Jorge, os últimos homens de Bartolomeu Fernandes Faria, como não podia deixar de ser, já haviam transposto o rio, e mais, a ponte estava destruída, impedindo a passagem de pedestres.

José Monteiro fez uma figuração diante dos soldados; simulou um acesso de raiva; subiu à parte mais alta do barranco e gritou para os últimos homens do invasor, que já iam longe e nem mais o ouviriam, talvez:

- Olhem... bandidos!... Se não fosse isto... vocês haviam de ver!

Diante do povo da Vila, a missão dos soldados da guarnição estava cumprida, e diante dos soldados estava cumprida também a dele, comandante; mas, voltando para os Quartéis, mestre José Monteiro soliloquiava sorrindo:

- Sujeito inteligente!... Vem, não rouba... não mata ninguém... dá uma lição a esses fidalgotes ladrões... e ainda deixa uma oportunidade para os militares cumprirem sem risco o seu dever... Esses bandeirantes!...

O bom humor do mestre de campo diante daqueles fatos explicava-se; Santos detestava exploradores como os homens do sal, mas amava os bandeirantes e estava sempre precisando deles para socorro da Praça. Aquela mesma gente de Bartolomeu Fernandes Faria, apenas com outro comandante, três meses depois já estaria de volta à Vila santista para, irmanada com os soldados de mestre José Monteiro, luta contra os franceses de Duclerc e expulsá-los para longe do seu litoral.

Houve 'Te-Deum' em ação de graças na igreja do Colégio dos Jesuítas, com sermão ao fim, que os padres dedicaram ao mestre de campo José Monteiro de Matos. Todo o povo lá esteve, menos os dois contratadores. Já compreendiam eles que a ação de graças era mais pela lição que ambos haviam tomado.

...Admirado de o perturbarem àquela hora calma do almoço, o Mestre de Campo atendeu-os...

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