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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 119 a 229:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[12] A Pedra da Feiticeira

Em 1850, a atual Rua Senador Feijó era um simples caminho largo, a sair da Rua do Rosário, passando pelo depois Largo Mauá e hoje Praça José Bonifácio, dobrando na altura da atual Sete de Setembro, para a esquerda, para quebrar novamente para a direita na continuação da Rua da Matriz, depois Braz Cubas, entroncando-se por fim no Caminho Velho da Barra, junto ao Rio dos Soldados, hoje Avenida Campos Sales.

A velha e conhecida chácara de d. Angelina era o último reduto habitado da cidade, com seu vasto solar a cavaleiro de uma laje imensa. Partia desse caminho, no ponto em que ele já rumava direito para o Caminho Velho, e seguia, toda ensombrecida de folhudo arvoredo, até a encosta acidentada do Monte Serrate, onde numerosos pedrouços se aglomeravam, altos e largos, recamados de limo e folhagem velha, formando a barreira natural que trancava a passagem e fazia fundo da atual Senador Feijó naquele ponto.

Para além da velha chácara de d. Angelina, a primitiva floresta, respeitável e virgem, continuava como a duzentos anos atrás.

A chamada "Pedra da Feiticeira", que era um dos grandes pedrouços sombrios do núcleo descrito, ficava justamente na base do Monte Serrate, pouco para dentro do encontro do caminho com a barreira natural da chácara de d. Angelina, vinte metros além do pequeno beco que hoje lá existe, pomposamente chamado "Rua Tiro Naval" e pouco distante das "Duas Pedras", onde havia uma cachoeirinha, que alguns anos mais tarde seria aproveitada pelos moradores. O "buraco da Velha", assim chamado pelo povo, ficava-lhe a cem metros, cosido ao talude granítico do morro, e era uma lapa natural - hoje quase totalmente destruída, sombreada pela erva de São João, a lhe cair do alto em festões e bambolins.

Ambos esses nomes tinham uma origem simples; vinham de uma velha, enfeada talvez pelo mau trato, edição nova das velhas bruxas da lenda, que vivia naquele canto triste da cidade, segregada de qualquer contato social. Era uma velha desgrenhada, extravagante, que envergava sempre uma bata de algodão, já de várias cores e escarificada pelo uso, mantendo à cabeça, à guisa de chapéu, ora um esparavél de palha amarrado a barbante, ora uma carapuça vermelha, semelhante à dos escravos.

Ninguém sabia quem ela era; nem os próprios delegados, naquele tempo pessoas de respeito da própria cidade. Era uma desprezada, no sentido mais amplo da palavra, por displicência social, por nojo ou ainda por medo ou superstição de toda gente. Ninguém a via à luz do sol; a velha só aparecia à noite, quando poucos se aventuravam a olhá-la furtivamente, em sua passagem arrastada, à luz indecisa dos raríssimos lampiões daquela Santos colonialíssima, de tão pitoresco atraso. Raras pessoas, contadas entre as mais humanas e despidas de superstições,podiam se gabar de ter visto a velha de perto e de lhe ter dado um pão, uma esmola.

Dizia-se que d. Angelina, a senhora da "Chácara", descendente da antiga fidalguia da cidade, mulher de tanto conceito, era quem de fato sustentava a velha bruxa; e que a mulher era bruxa todos o afirmavam, porque a fama já vinha de longe, jurando muitos que a haviam visto em seus bruxedos sobre a pedra famosa, horas mortas, a saltar sobre o fogo, descabelada, a grugrulhar palavras cabalísticas, aspergindo água e cinza sobre as labaredas. Mas era muito ver, para quem nem de dia chegava lá perto... entretanto, diziam...

Quem era porém, verdadeiramente, a feiticeira santista? Por que razão a protegia d. Angelina? Retrocedamos quarenta anos.

Em 1810, na vila religiosíssima de então, um escândalo terrível abalara a sociedade. Uma viúva, de excelente moral e bom conceito, mãe de dois filhos crescidos e oriunda por sua vez de gente importante, havia cedido à tentação de um militar de passagem para a Campanha do Sul. Moça ainda, estuante de vida, ela cedera à imprevista paixão, e prevaricara (naquele tempo era um grande crime; hoje é brincadeira, distração de esposas que não têm o que fazer), acabando por abandonar os filhos e desaparecer de Santos, seguindo o mesmo rumo do militar.

Uma história trivial para os nossos dias, mas a sociedade da época condenou-a em definitivo, faltando apenas entulhar-lhe a casa de sal, como se fazia ainda em 1600. Nunca mais se soubera em Santos daquela transviada. Seus dois filhos, cuidados como indigentes pela única tia viva, haviam herdado o estigma do crime que não praticaram. A filha, natureza sensível, com o tempo, moída de humilhações e desgostos, acabara por contrair moléstia insidiosa e falecera aos vinte e cinco anos. O filho, porém, natureza forte, o "seo" Antoninho, como o chamavam, era agora despachante da Alfândega, e, embora com cinquenta e dois anos, um solteirão impenitente. Vivia só, com uma preta velha deixada por sua tia, numa pequena casa da Rua S. Francisco de Paula, estimado por toda gente e cercado de conceito.

Uma íntima reminiscência talvez, tornara-o sempre taciturno, mantendo-o arredio da sociedade e refratário ao amor, aos "partidos" que não lhe faltaram. Pertencia à mais importante das classes comerciais da cidade de então, mas nunca se valera disso para fins sociais e jamais tivera um confidente entre os seus muitos amigos, a quem confiasse um pouco daquelas tristezas que conservava. Podia estar rico, bem rico, mas, grande parte do que ganhava, dava em esmolas ao povo, à Misericórdia e ao Convento de Santo Antônio, que era o santo do seu nome, escondendo quanto lhe era possível a mão doadora, como se estivesse a resgatar perante uma memória, uma culpa qualquer, que os anos mais e mais encobriam e apagavam.

A preta velha, a tia Lina, que o acompanhava desde menino, bem que de vez em quando lhe lançava uma exprobração medrosa:

- Pruquê qui nhõnhõ Antonho num guarda mai u qui ganha?

E "nhônhô Antônio", temendo trair-se diante da negra, naquela mágoa que guardava desde a infância, agravada pela morte da irmã tantos anos depois, dava-lhe uma resposta qualquer, evasiva quase sempre, contornando o assunto.

Naquele ano de 1850, em agosto, correu em Santos a notícia de que o "seo" Antoninho estava muito mal, às portas da morte. Sua casa e sua porta encheram-se de gente. o despachante da Alfândega piorava de momento a momento e pouca esperança havia de salvá-lo.

Uma senhora parou de coche à porta da casa dele; o porte senhorial, a cabeça branca e nobre; era d. Angelina, a dona da Chácara solarenga. O povo se descobriu, respeitoso, à sua passagem. Entrou.

Momentos depois, d. Angelina chamava de parte a negra velha de "seo" Antoninho, dizia-lhe umas palavras em tom de recomendação, e saía, de volta à chácara.

À noite houve um alvoroço à porta do despachante; corria que seu estado se agravara muito, e vários populares tinham visto a bruxa da "Pedra da Feiticeira" penetrar na casa dele, em companhia de d. Angelina.

- A feiticeira! A feiticeira está lá dentro!

Os comentários fervilhavam lá fora, e o vozear do povo crescia com o crescer da gente que se acumulava com a notícia.

Muitos populares, gente simples em geral, que ali estavam por amizade ao protetor dos humildes ou por simples curiosidade, benziam-se de momento a momento.

- Credo! Cruzes! A bruxa da pedra!

- Nossa Senhora do Monte proteja "seo" Antoninho!

Realmente, a velha bruxa entrara naquela casa; entrara quando ela, por manobra de d. Angelina, estava quase deserta, e pela mão da veneranda matrona santista. Mal podia andar e mal falava, trêmula, desvairada, afogada em pranto convulso.

D. Angelina chegou-se à cama de "seo" Antoninho e disse bem ao ouvido do moribundo:

- "Seo" Antoninho! Sua mãe! Sua mãe está aqui, e quer vê-lo... consente?

Também ela estava comovida, e um aperto amargo na garganta quase lhe embargava a voz.

-Minha... mãe?! - rouquejou o despachante, abrindo grandes olhos surpresos, esboçando um sorriso pálido para d. Angelina:

- Eu... não... tenho... mãe... há tan... tos anos!...

A velha feiticeira surgiu do corredor escuro, ajoelhando-se junto à cama:

- Meu filho! Meu filho Antoninho! Perdoa!...

O moribundo soergueu-se do leito; era emoção demais para ele>

- A feiticeira!... Meu Deus!...

D. Angelina ajudou-o a reclinar novamente a cabeça, intervindo:

- É sim sua mãe, "seo" Antoninho!... É ela! Era por isso que eu a protegia... foi minha amiga desde menina! Ela teve vergonha da culpa e quis sofrer... perto do filho... sem ele saber, para que sofresse mais assim! E ela tem sofrido tanto!... Perdoe-a!

A voz de d. Angelina, embargada de emoção, parecia música, música divina, enternecedora.

Ouviram-se palavras quase indistintas do moribundo:

- E... eu... dei... tan...tas esmolas... à minha pró...pria... mãe!

Subitamente, como se uma inspiração divina o alentasse, "seo" Antoninho estertorou alto, cavernoso:

- Minha... mãe! - e seus braços se abriram, num gesto largo de perdão, para a velha trapeira, desgrenhada.

- Meu filho!

Um grande e último abraço uniu por minutos, mãe e filho, enquanto seus soluços e lágrimas se confundiam no silêncio da sala em penumbra.

A nova estourou lá fora:

- A feiticeira é mãe de "seo" Antoninho!

Ninguém riu ou imprecou. Fez-se silêncio na turba. Todos ali, ou quase todos, haviam recebido benefícios dele, e por isso ali estavam, como era costume quando se queria bem a um moribundo.

Instantes depois, o despachante estava morto. As portas de sua casa novamente se abriram para o povo, mas, antes de alguém entrar, surgiu na soleira a figura nobre de d. Angelina, a única testemunha calada daquele romance começado havia quarenta anos e prestes a terminar. Após ela, vinha a feiticeira. O povo recebeu-a em silêncio, cabisbaixo, respeitoso, e em silêncio viu-a passar, sacudida de pranto, até sumir-se lá em baixo, na esquina do Largo. Já começavam a compreender a estranha tragédia daquela alma.

O caso repercutiu dolorosamente na cidade.

Dias depois, revoadas de corvos denunciavam ao povo o último capítulo do romance. Dependurado a um galho, junto à lapa chamada "o Buraco da Velha", o corpo da ex-bruxa balouçava, apodrecendo ao tempo. Ela não suportara aquela última dor e não quisera sobreviver à sua gente.

***

Estava finda a história da "Pedra da Feiticeira", findo o mistério que a criara na abusão do povo, com o desaparecimento daquela pobre mulher, que só d. Angelina soube quando e como para ali veio, a assombrar o pequeno recanto da cidade, para expiar na mais negra das vidas e das renúncias, no próprio lugar da culpa, um erro ocasional, distante.

Anos depois, quando a cidade precisou alongar seus braços, incumbiu-se a Prefeitura de apagar os últimos traços da lenda, destruindo a famosa pedra, removendo matas e pedrouços e, por fim, a própria chácara solarenga de d. Angelina. A movimentada Rua Senador Feijó varou por ali, e o progresso intenso tripudia agora sobre o lugar. Autos, carroças, ônibus e bondes, veículos diversos, transeuntes, aos milhares, azucrinantes, bulhentos, indiferentes ao passado, estadeiam o século vinte sobre a tradição daquele ponto.

...A velha feiticeira surgiu do corredor escuro, ajoelhando-se junto à cama:

- Meu filho!...

Imagem publicada na página 127