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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[14])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 98 a 101):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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XIII - Boca madura

Do meu quarto escutei prima Emerenciana abraçando e beijando as crianças no terreiro. O primo foi guardar o forde na garagem. A voz do Anastácio, abobalhada, perguntou se subia com os embrulhos. Embrulhos de Zuca, provavelmente... (Seus vestidinhos de andar em casa, suas camisinhas, os chinelos cara-de-gato que eu conhecia, os modestos objetos de toalete, um estojo de costura talvez...)

- Como está bonito o Córrego Fundo com a casa nova do engenho!

Era a voz juvenil, com entonações ondulantes. Não quis espiar à janela. Reservava-me para a surpresa de dar com Zuca face a face, na sala de estar; de tomar da sua presença uma posse direta e leal.

Os cachorros faziam festa, latindo, aos pulos de encontro à prima.

- Ó Anastácio, que faz esta lata de leite na porta da garagem? - gritou meu primo.

- Creio que foi o Tomé, coronel!

- O Tomé, o Tomé! Ora o Tomé! Leve isso para dentro!

Os passos da prima e de Zuca subiram a escada. Corri ao espelho, passei a escova no cabelo, ajeitei o nó da gravata. E saí com ar distraído de quem não espera granes novidades.

- Então, prima, como foi de baile?

- Ah, não sabe o que perdeu!

As crianças subiram atrás, rodeando Zuca. Disfarcei a emoção com que a esperava, perguntando:

- A sua afilhada veio?

- Esta aí... atrás de mim... Olhe ela.

E apontou para Zuca, que entrava.

Veio para mim de mão estendida, sem embaraço algum. Seria a mesma do hotel da Estação, de chinelos, à porta da cozinha, com o ar esquivo? Seria a mesma do curral, ofertando-me o copo de leite, vestida de chita vermelha?

Não, era a Zuca do beijo do laranjal, dos cravos atirados ao carro com a cumplicidade da noite... Era a Zuca do sorriso malicioso, disfarçado aos cantos da boca miúda, toda ela modéstia e graça num vestido branco de moça da cidade, sob um largo chapéu de palha que lhe protegia do sol a pela morena e fina... Era uma Zuca que continuava do campo mas deixava transparecer uma alma rica de impulsos escondidos, ignorados da família, do noivo, da madrinha...

- Foi o senhor que assinou para mim o "Jornal das Modas Femininas"?

- Fui. Gostou?

- Gostei. Obrigada.

Sentou-se na cadeira de balanço, pôs o Robertinho no colo, passou o braço pela cintura de Isaurinha...

- Essas crianças não o aborreceram muito, primo? - perguntou Emerenciana.

- Nem um pouco. Você sabe que elas não me aborrecem nunca.

Primo Boanerges, com um jeito de homem estrompado, entrou vagaroso, apalpando os rins com as mãos vigorosas.

- Derreado, primo? Dançou muito?

- Trabalhei, isso sim. Você sabe, o presidente da Câmara, numa noite como a de ontem, não tem descanso.

Zuca estava de costas para mim na cadeira de balanço. Aproximei-me dela com a sensação de contemplá-la pela primeira vez. O cabelo negro era repartido no meio por uma risca fina e branca. Os braços queimados de sol envolviam Robertinho, amorosamente. Naquele instante era a mãe de amanhã, ensaiando o gesto de embalar. Parecia feita para a fecundidade, com os seios fortes que lhe empolavam a blusa. Voltou para mim a cabeça e riu com infantilidade. Os dentes pequenos descerravam-se mostrando a ponta da língua úmida, como certas goiabas verdolengas que a gente abre descobrindo com delícia a polpa vermelha e madura.