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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão"
Martins Fontes (8)

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Martins Fontes foi colaborador da revista paulistana A Cigarra, que em várias edições apresentou seus versos. Estas são as publicações (revistas preservadas no Arquivo do Estado de São Paulo - acesso em 24 e 25/10/2011 - ortografia atualizada nestas transcrições):
 

A Cigarra - Ano 2/nº 33 - 30 de dezembro de 1915 - páginas 29 e 30:


Imagem: reprodução da página 29 com o texto original

À memória do meu queridíssimo Annibal Theophilo – versos inéditos
No Jardim da Morte

Tudo era branco, de um pallior funéreo,
De uma alvura de nácar e marfim.
- Era silente, como um cemitério,
Esse fantástico jardim.

Ao luar, de livor opalescente,
No silêncio tristíssimo e profundo,
Toda a paisagem, tenebrosamente,
Dava a impressão de um outro mundo.

Pelas álgidas áleas solitárias,
Cheias de imóveis, lúridas visões,
Viam-se imensas filas de araucárias,
De salgueiros e de chorões.

Era terrível o silêncio! Tudo
Calmo, sem cor, sem brilho, sem matizes.
E havia no jardim, gélido e mudo,
Flores de todos os países.

Rosas, violetas, scilas e gloxínias,
Uma profusa e branca floração
De magnólias, opúncias e glicínias.
E hemerocales do Japão.

Ao perfume dos cravos e verbenas
Misturava-se o incenso dos jacintos,
Nas alamedas, claras e serenas,
E de soturnos terebintos.

Dos ciprestes pendiam as orquídeas
E, nos canteiros do jardim sem som,
Em festões floresciam as irídeas,
E os crisântemos de Nippon.

Na lisura das límpidas piscinas,
Em esguias e fuscas pinceladas,
As sombras espectrais das casuarinas,
Se desenhavam espelhadas.

Nessas paragens ermas e sidérias,
Espiralavam-se os repuxos no ar,
Como longas e brancas valisnérias
Desabrochadas ao luar.

Nas ruas, nas clareiras, nos gramados,
Por todo o parque, os grupos dos amores,
As estátuas dos grandes namorados
Apareciam entre flores…

Entre moitais de acácias e de aspérulas,
Dentre silvedos e madressilvais,
Ao luar do brancor das madrepérolas
E de nivores de edelvais…

Nem o som de meus passos se escutava
E, no horrível pavor dos pesadelos,
Como quem fala em sonhos, eu falava
Tendo eriçados os cabelos:

- Flor da mágoa e do sonho, o meu delírio
Acaso lembrarás, certa manhã
Que te beijei, como se beija um lírio,
Ó minha noiva, ó minha irmã?

Pela doçura do teu grato aroma,
Suporto a angústia de viver na terra,
Meu amor é o cristal de uma redoma
Que, ó Rosa Mística, te encerra.

Se os tristes versos do meu pobre idílio,
Ouvir consegues de onde estás, talvez
Possas dar-me a ventura, neste exílio,
De ver-te ao menos uma vez.

E eis que mal terminara a minha prece,
Quando, diante de mim, ao luar de opala,
Ela, em veste seráfica, aparece,
E docemente assim me fala:

"Neste elísio remanso imaginário,
Eu te esperava há muito, sonhador,
Este é jardim da Morte, o milenário
Jardim dos Poetas e do Amor!"

"Aqui, através de todas as idades,
Vêm encontrar-se os corações dispersos:
Recordando os amores e as saudades,
Ao som dos beijos e dos versos."

"À luz da lua, romanesca e pálida,
Vinda dentre os jasmins e os resedás,
A eterna voz inspiradora e cálida,
Dos namorados ouvirás."

"Dá-me o teu braço, e à sombra destes ramos,
Num destes velhos bancos assentados,
Evoquemos o tempo em que sonhamos,
Vendo e escutando os namorados."

"Ouve": - Um dia em que líamos a história
De Lancilloto, conversando a sós,
Notei a tua palidez marmórea,
E a comoção da tua voz.

- E quando o cavaleiro no reconto
Beija a rainha, súbito paraste:
E, em meio da leitura, nesse ponto,
Trêmulo a boca me beijaste.

Quando Francesca os seus amores trágicos
Terminava, Julieta apareceu:
E eu pude ouvir, sonhando, os versos mágicos
Da serenata de Romeu.

- Espera, meu amor, vem longe a aurora…
- Devo partir, não tarda a luz do dia…
- É o rouxinol, Romeu, que ouves agora…
- Julieta, escuta: é a cotovia…

- Ouve, Romeu: é o cântico fatídico
Da cotovia anunciando o sol…
- Não, meu amor, quem canta ao luar fluídico,
É a doce voz do rouxinol…

Não se sabia, ouvindo-se essas frases,
Sentindo-se esses versos odorantes,
Se o perfume saia dos lilases,
Ou se da boca dos amantes…

Eles paravam nas penumbras lívidas,
E nas sombras fundiam-se depois…
Ou se animavam, como estátuas vívidas,
E iam e vinham, dois a dois.

Os brocados e as sedas dos vestidos,
Reproduzindo os trajes seculares,
Eram de níveos e brumais tecidos,
E rendas feitas de luares…

E à lua, de uma alvura de camélia,
Divisavam-se pálidos perfis,
De angelicais figuras como Ofélia,
E de noivas como Beatriz,

E era lendário tudo o que se via
Nessas estâncias ermas e secretas!
Doces paragens da melancolia,
Reino fantástico dos poetas!

Eu olhava, num êxtase beatífico,
A realidade sobrenatural!
Como se fora esse jardim mirífico,
Uma paisagem musical…

Nisso, aquela que amei na terra, outrora,
Como a ventura nos meus olhos visse,
Piedosa e pulcra, numa voz sonora,
Saudosamente assim me disse:

"Para viver neste jardim romântico,
É necessário praticar um bem:
Deixar na terra a música de um cântico,
Que purifique a alma de alguém."

"Basta às vezes um verso apaixonado
Para fazer chorar. E o teu amigo
É aquele que, ao julgar-se interpretado,
Na tua dor, chorar contigo."

"Esse ignorado irmão, talvez teu êmulo,
Chorará de amargura e de prazer,
Quando sentir, maravilhado e trêmulo,
O amor que assim te fez sofrer.'

"Vai. Volta ao mundo. Faze versos. Pensa
Que, apesar do amargor da tua sorte,
Neste jardim, um dia, em recompensa,
Hás de viver depois da morte."

"Este é o jardim da lenda! O sempre flóreo
Jardim do Amor, que faz do Poeta um Deus!!
E já que a vida é um sonho transitório,
Volta de novo ao mundo. Adeus."

E a imagem dela como um anjo alado,
Foi-se diluindo no luar. E, absorto,
Eu tombei sobre a terra desmaiado,
"Tal como cai um corpo morto."

Martins Fontes.


Imagem: reprodução da página 30 com o texto original

A Cigarra - Ano 2/nº 34 - 19 de janeiro de 1916 -  página 14:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Colaboração especial para A Cigarra

Religião

Creio que Deus foi inspirado
Pelo ideal de um grande amor:
E, como um poeta apaixonado,
Fez a mulher e fez a flor.

Fez, completando a obra divina,
Para ser justo em seu mister,
Da rosa, a carne feminina,
O lírio, da alma e da mulher.

Vivem na terra confundidas
Essas imagens ideais:
E, sendo em tudo parecidas,
São tão diversas sendo iguais…

Pois nem o lírio, nem a rosa,
Tem esse encanto singular,
Essa expressão maravilhosa,
Que há no sorriso de um olhar…

Oh! A mulher é incomparável!
Não tem um símile sequer!
É indefinível e adorável!
É mais que a flor, porque é mulher!

Ela é a suprema inspiradora!
Ela é a suprema adoração!
E a criatura, e criadora,
Ela é maior que a criação!

Martins Fontes  - Santos, 1916.

A Cigarra - Ano 2/nº 35 - 31 de janeiro de 1916 -  página 24:


Imagem: reprodução da página com o texto original

Especial para A Cigarra
I - Harmonia

A Via Láctea pelos ares,
Em vagos brilhos prematuros,
Derrama os polens estelares,
Dos mundos rútilos futuros.

Mesmo nos pontos mais escuros,
Aonde não chegam os olhares,
Hão de existir outros Arcturos,
Devem arder outros Antares.

E enquanto, fúlgida e funérea,
A Noite augusta se levanta,
Sinto que a essência em que palpito.

Sendo uma parte da matéria,
Ínfima embora, esplende e canta
Como essa Lira do infinito!

II - Desarmonia

Certas estrelas coloridas,
Estrelas duplas são chamadas.
Parece estarem confundidas,
Mas resplandecem afastadas…

Assim, na terra, as nossas vidas,
Nas horas mais apaixonadas,
Dão a ilusão de estar unidas,
E estão, de fato, separadas…

O amor e as forças planetárias,
Trocando as luzes e os abraços,
Tentam fundi-las e prendê-las…

E, eternamente solidárias,
Dentro do tempo e dos espaços,
Vivem as almas e as estrelas…

Janeiro de 1916 – Martins Fontes.

A Cigarra - Ano 2/nº 36 - 18 de fevereiro de 1916 -  páginas 24 e 25:


Imagem: reprodução da página 24 com o texto original

Colaboração especial para A Cigarra
A Samuel Ribeiro – fevereiro de 1916
Sonata Apaixonada

Ó Mar! Poeta do Amor! Meu velho e triste amigo:
Venho, secretamente, em palestra contigo,
                    Falar da nossa dor…
Porque, pulsando em mim teu coração de oceano,
Só tu compreenderás o desespero humano,
                    De viver sem amor…

Amas, meu pobre Irmão, com o mesmo ardor com que amo,
Choras, como eu também, que, em segredo, reclamo
                    A bênção de um olhar…
Dessa que é, como a lua, indiferente e fria
E que jamais calculará nossa agonia,
                    Porque não sabe amar.

A perene oração que consagras à lua,
É inútil porque – ó Mar! ela não será tua…
                    Nem ao menos sequer,
Tão distante de ti, teu suplício adivinha…
Porque ela é como alguém que nunca há de ser minha,
                    Sendo estrela e mulher!

Quando, abrandando a voz dos teus fundos pesares,
Vês, ao longe, brilhar na planície dos ares,
                    A fímbria do seu véu.
Esperas, a fremir, que ela apenas desponte,
E tentas, a galgar os degraus do horizonte,
                    A escalada do céu!

E eu também, como tu, se por acaso a vejo,
Num doce olhar que sai dos olhos como um beijo,
                    Na mesma adoração,
Creio, e com que temor, e com que sobressalto,
Que este infinito azul é tão puro e tão alto,
                    Que foge à nossa mão…

E é por elas que nós, em noites perfumadas,
Cantamos, loucamente, as eternas baladas,
                    Sob os flóreos balcões…
Eu, tão cheio de ideal, tu, tão cheio de orgulhos,
Confundindo no amor os versos e os marulhos
                    Dos nossos corações…

Por ela, a entesourar fortunas e fortunas,
Escondes nos parceis, nas sirtes e nas dunas,
                    Teu fausto nupcial!
E vais buscar na foz as riquezas dos rios,
Que trazem dos sombrais, remotos e bravios,
                    A glória florestal!

Na tua aspiração, fabulosa, insensata,
Reproduzes o luar nas espumas de prata,
                    E o céu nos mesmos tons…
Pões um astro a brilhar em cada grão de areia,
E deixas cada concha equoreamente cheia
                    De prismas e de sons!

Tu, nas brancuras, das maretas e madrias,
Acendes faiscações, como nas ardentias,
                    De minúsculos sóis…
Derramas a granel por sobre as tremulinas,
Escravonetas, esmeraldas, turmalinas,
                    Prasios e grã-mogóis…

Eu, nas palavras, nas estrofes que burilo,
Faço o verso radiar como um crisoberilo,
                    No qual se reproduz.
Entre as combinações das sílabas preciosas,
Variando os semitons das vogais primorosas,
                    A harmonia da luz!

Há séculos, minaz, sofres esta amargura,
Há dez anos, secreto, este amor me tortura,
                    E assim vivemos nós:
Das lágrimas da lua as pérolas tu fazes,
Como eu, rimando, laço a música das frases,
                    Do som de sua voz.

Por sua indiferença é que tu te revelas,
Duplamente leão e chacal nas procelas,
                    Prometeu – Caliban!
Louco e rouco, a bramir nos crespores das folas,
Regougante e feroz, te espedaças e rolas,
                    Numa cólera vã!

Porém se, na borrasca, entre o vento e a salsugem,
Quando os teus vagalhões em rebombos estrugem
                    Num fragor de calhaus,
Um náufrago, ao morrer, o seu nome implorasse,
Talvez a invocação desse nome acalmasse
                    Os teus instintos maus…

E embalando esse corpo ao som de cantilenas,
Levá-lo-ias, feliz, às paragens serenas
                    Do teu seio sem fim…
Fá-lo-ias dormir no remanso das praias,
Ou na cidade de Is, ou na gruta das Naias,
                    De pérola e marfim!

Porque tu, que és brutal muitas vezes, no entanto,
Em plena calmaria, abafando o teu pranto,
                    Bem diverso tu és:
Glauco, o manto talar humílimo roçagas…
E vens, rojado ao chão, no rastejo das vagas,
                    Para beijar-me os pés…

Enfim, já que é perpétuo o teu amor profundo,
Faze versos, Irmão… Espalha pelo mundo
                    Teu grande coração…
- Porque dizer em verso o que a nossa alma encerra,
É o consolo melhor que existe sobre a terra.
                    Para nós, meu Irmão!

Martins Fontes.


Imagem: reprodução da página 25 com o texto original

A Cigarra - Ano 4/nº 64 - 18 de abril de 1917 -  página 35:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Inédito para A Cigarra

Sonho de um dia de Primavera

 

Quando eu morrer, quero somente

Ter uma campa toda em flor...

Que haja um rosal sobrevivente,

Que imortalize o meu amor...

 

Porque o meu último desejo

É que esse túmulo risonho,

Tendo o silêncio para o beijo,

Seja um recanto para o sonho...

 

Para que um dia uns namorados,

Vendo esse ninho encantador,

Entre os seus ramos perfumados,

Venham falar do seu amor...

 

Essa é a homenagem mais querida

Essa é a ventura mais secreta,

Que pode ter a alma florida

E apaixonada de um poeta...

 

E já que a morte não me assombra,

Desiludido sonhador,

Basta-me apenas ser a sombra

Abençoada de um amor...

 

Das recompensas gloriosas,

Essa é a mais íntima e sincera:

O amor não vive, como as rosas,

Um dia em cada primavera...

 

Tudo se acaba neste mundo...

A vida é apenas uma flor...

Mas no infinito de um segundo,

O amor é sempre o eterno amor!

Martins Fontes.

Ao luar,

em surdina.

A Cigarra - Ano 4/nº 66 - 19 de maio de 1917 -  página 19:


Imagem: reprodução da página com o texto original

Versos inéditos para A Cigarra

Canção Discreta

 

Guarda em segredo, só contigo,

Um certo nome de mulher,

Que não se diz nem a  um amigo,

Seja o melhor que se tiver.

 

Nem a uma flor, nem a uma estrela

Digas quem é o teu amor,

Que poderão comprometê-la

Tanto as estrelas como a flor.

 

Quando dormires, sê prudente:

Pensa que alguém te pode ouvir:

Durante o sono, de repente,

Fala-se às vezes sem sentir...

 

Mesmo na extrema despedida

Não o confesses a ninguém:

Sendo indiscreta como a vida,

A morte ilude-nos também...

 

E eu, que aconselho este impossível

De o não deixar nem perceber,

Constantemente, irreprimível,

Tenho o desejo de o dizer...

 

Por mais que o queira ter secreto,

Sinto-me trair-me o coração...

E é porque devo ser discreto,

Que não termino esta canção.

Martins Fontes - Maio de 1917.

(Ao luar,

em surdina).

A Cigarra - Ano 4/nº 86 - 28 de fevereiro de 1918 -  página 39:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Verão - Martins Fontes

Nunca é demasiado tarde para se falar de uma bela obra, dessas que deixam os eu traço permanente de luz. O Verão de Martins Fontes é desse número. Pode-se ler e reler-se. Ontem como hoje, das suas páginas exala-se o mesmo perfume de primavera em flor. Em cada uma há todo o brilho do sol veranesco que ilumina, aquece e fecunda. Em todas a mesma riqueza de cores outonais, com os seus ouros fulvos e a melancolia doce dos seus poentes vermelhos.

É uma obra realmente extraordinária, vibrante, forte, cheia de sensações. Palpita nela a alma de um poeta de elevado estro, poeta que é um moço de rija enfibratura, sonhador um pouco e, no fundo, temperamento ebuliente de ação poeta que é sobretudo um ourives da forma, um sedento de beleza rítmica, um apaixonado de sonoridades musicais.

De la Musique encore el toujours la musique, dizia Verlaine.

Que tos vers soit la bonne aventure

É parse au vent crispé du matin

Qui va fleurant la menthe et le thym

Et tout le reste est litterature.

e Martins Fontes, fiel ao preceito do grande mestre, espalhou assim, nas duzentas laudas da sua obra, versos que são melodias, gorjeios de ave e orquestras de flauta e mar, sem preocupações de literatura nem curvaturas a escolas.

A Cigarra - Ano 5/nº 90 - 30 de abril 1918 -  página 17:


Imagem: reprodução da página com o texto original

Como os poetas amam a Pátria

Disse-o Martins Fontes, o fulgente poeta do Verão, com a sua linguagem de opulências asiáticas, na conferência realizada no Conservatório no dia 15, tendo a ouvi-lo um numeroso e seleto auditório, em que se notava o sr. presidente do Estado que, todos o sabem, é amigo da arte e apreciador da boa literatura, como bom prosador que já demonstrou ser.

Como os poetas amam a pátria? - mas é mais do que todos, porque a pátria é uma das modalidades do amor e o amor é para eles a própria essência da sua inspiração, o íntimo enleio da sua arte, a razão de ser da sua existência. Tudo nela se consubstancia e se resume: a ligação real com as coisas, a afinidade com a terra, a comunhão com as árvores, os rios e as montanhas, com o sol, com a luz e com o ar.

A profunda e visceral união  ao passado, ao presente e ao futuro, a família que se estremece e a mulher que se adora - tudo quanto há de bom e de belo, porque a pátria é a espiritualização de todos esses amores. Ora, os poetas sabem amar melhor, mais intensamente, e por isso mesmo são mais capazes de amar a sua pátria.

No seu coração cabem todas as pátrias da arte e da beleza. Atenas, Florença ou Paris, mas o lugar privilegiado, mesmo para os que não se julgam dignos da pátria celeste, da cidade de Deus, de Santo Agostinho, é o torrão natal em que o seu berço floriu e que mais tarde cresce, enchendo toda a vastidão do seu país, da sua nação, da sua terra.

E Martins Fontes, nessa frase que é um tilintar sonoro de cristais, produtores de orquestras de sons e estrelejando catadupas de luz, mostra-nos, nesse rumo de ideias, como os poetas, amando a arte, amando o amor - não é pleonasmo, não -, amando a mulher e amando a humanidade, amam acima de tudo a sua pátria.

E fala-nos dos nossos grandes artistas, dos nossos grandes homens, das belezas incomparáveis do nosso solo que ele conhece, tão bem, por se ter embrenhado na floresta virgem e ter auscultado o arfar ingente do coração do Brasil e, numa linha destacante, carvoa-nos o perfil desse baiano, de negro vestido, todo ele retraimento e isolação, não conversando com ninguém, nunca deixando perceber a cor da sua voz, arrancado ao seu mutismo sombrio e à sua misantropia quando, por um artifício ingênuo, lhe dizem mal da sua terra.

E, diante dos nossos olhos, na glória luminosa das gambiarras, refulge e revive e repalpita essa quente e entusiástica figura de Castro Alves e da mocidade acadêmica do seu tempo, disputando nos teatros as glórias literárias e os sorrisos das artistas formosas.

Aí Martins Fontes declama com a maestria de Coquelin ou de um Brazão, a ode admirável do poeta augusto, que é bem um símbolo da alma brasileira, feita de bondade e de compaixão por todos quantos sofrem.

O remate dessa palestra interessantíssima que se ouviu num religioso silêncio, apenas entrecortado por aplausos sinceros e vibrantes, foi um soneto de Bilac, peroração magnífica a um exórdio que fora um verso de Victor Hugo.

Mas o que mais impressiona em Martins Fontes é esse extraordinário brilho da forma e a ciência impressionante da maneira de dizer. Todo ele é animação, entusiasmo, vivacidade - alma de poeta a desfazer-se em som, em luz, em calor e sobretudo em amor -, riqueza e colorido que lembra o fausto régio das flores e das aves tropicais da nossa terra, transparência luminosa do azul do nosso céu ou do verde glauco do nosso mar imenso.

A sua mágica palavra fica no ouvido como um eco de sinfonias beethovianas e nos olhos perpassam, por muito tempo, faiscações de luz, que se imprimem, em iriados traços, nas retinas, quando voltadas à contemplação das banalidades apagadas da vida.

Finda a sua interessante e patriótica palestra recitaram, com agrado, poesias diversas do Verão os srs. Cyro Costa, Eurico de Góes e Réné Thiolier, que foram muito aplaudidos, e Martins Fontes deliciou ainda por longo espaço o auditório com os favos da sua poesia, feita de ritmo e suavidade.

Foi, em suma, uma bela festa de arte que deixou a mais grata impressão e, mais uma vez, consagrou o merecimento inconfundível do jovem poeta que é uma das figuras de maior relevo da moderna história literária brasileira.


Foto publicada com a matéria

Arlequinada, Cena VI - Inédito para A Cigarra:

Serenata de Pierrot

A Hugo Maia

Quem há que, ao ver uma mulher,

Não tem a ideia carinhosa,

De compará-la a uma formosa,

A uma querida flor qualquer?

 

Diz-se daquela a quem se quer,

Que ela é uma flor maravilhosa,

Inspiradora como a rosa,

Ou como um lírio rosicler!

 

Embora antigo, é sempre belo,

Por ser exato, o paralelo.

Justo será quem o fizer.

 

E ainda mais justo quem dissesse:

Que linda flor! até parece

              Mulher!

Martins Fontes.

A Cigarra - Ano 5/nº 92 - 27 de maio de 1918 -  página 13:


Imagem: reprodução parcial da página com o texto original

Canção de um certo coração volúvel

A Goulart de Andrade, lembrança do dia 6 de abril

Versos inéditos para A Cigarra

Não é verdade, querida,

Como tu pensas, talvez,

Que durante a nossa vida,

Só amemos uma vez.

 

Nem tão pouco é verdadeiro

O provérbio encantador,

Que afirma ser o primeiro

O nosso maior amor.

 

O que se pode, em verdade,

Conteste-me quem quiser,

É amar com sinceridade,

Tendo mais de uma mulher.

 

Eu tenho amado dezenas

De vezes, com o mesmo ardor...

E o primeiro amor apenas

Foi o meu primeiro amor.

 

Depois dele, até à morte,

Porque eu adoro a mulher,

Será cada vez mais forte

Cada paixão que eu tiver.

 

Em amor existe a crença

De que um só nos faz feliz,

E há muita gente que pensa,

E com franqueza nos diz.

 

Que um amo traz dissabores

Sempre fora do comum:

E, quem tiver dois amores,

De fato não tem nenhum.

 

Foram sempre diferentes

Os amores que eu senti:

Porque as paixões mais ardentes

São diversas entre si.

 

Por um mistério profundo

Das leis sobrenaturais,

Não há dois seres no mundo,

Nem dois amores, iguais.

 

Como a vida é multiforme,

Sendo imutável, porém,

O amor varia conforme

O coração que o contém.

 

Na terra há certos amores

Que sugerem impressões

De vidas anteriores,

Ou de vindouras paixões.

 

Pois é, de todo, impossível,

Tentar de leve explicar

A atração irresistível

Que às vezes há num olhar.

 

A instantânea simpatia,

O amor súbito e fatal,

São vários graus da magia

Dessa atração ideal.

 

Calcule quem tem amado,

Quem por amor já sofreu,

Se já houve um namorado,

Que amasse mais do que eu.

 

Ninguém, no entanto, acredita

No seu pobre coração,

Que duplamente palpita,

Tendo uma dupla afeição.

 

Amo a duas criaturas,

A duas mulheres só,

Pelas quais faço loucuras

Que até mesmo causam dó.

 

São as duas amorosas,

E parecidas até.

Não sei, vendo-as tão formosas,

A mais querida qual é.

 

Quando uma delas me beija,

Penso na outra: que, enfim,

Não sei qual das duas seja

A preferida por mim.

 

Ambas são moças e belas,

E quero-as com tal fervor,

Que não sei mesmo a qual delas

Consagro maior amor.

 

Sei que, um dia, de repente,

Por ambas me apaixonei.

Sei que as desejo igualmente

Isto é tudo quanto sei.

 

Sei também que a dupla chama

Deste amor me faz sofrer.

Muito padece quem ama,

Se é duplo o seu bem-querer.

 

E se um amor, entretanto,

Traz sempre mágoas depois,

Se quem tem um sofre tanto,

Quanto mais quem tiver dois!

Martins Fontes.

(Primavera)

6 de maio de 1918


Imagem: detalhe da página com o texto original

A Cigarra - Ano 5/nº 102 - 29 de novembro de 1918 -  páginas 22 e 23:


Imagem: reprodução da página 22 com o texto original

Profissão de fé

Na última tarde de um outono,

Morta de fome e de fadiga,

Foi que a Cigarra, ao abandono,

Bateu à porta da Formiga.

 

Por uma fresta da janela,

Temendo o frio e a ventania,

Pôs-se a Formiga, com cautela,

A espiar, do escuro, quem batia.

 

Magra, velhinha, embiocada,

De óculos pretos, a Formiga

Viu que, apesar de esfarrapada,

Era uma esbelta rapariga.

 

E ao ver-lhe o rosto, que era lindo,

Ao vê-la pobre e tão formosa,

Foi, sem mais nada, concluindo

Que era de vida duvidosa...

 

E a resmungar, com azedume,

Ia, entre si, considerando:

"- Esta é das tais do mau costume

De viver sempre incomodando."

 

Nisto, segunda vez, na rua,

Batem as palmas; e então ela,

Vendo que a coisa continua,

Fechou, sorrindo-se, a janela.

 

E, numa voz de quem gagueja,

Gritou, fanhosa, em tom zangado:

"- Quem é? quem bate? que deseja?"

E abriu a porta com cuidado.

 

Rota, sem cordas a guitarra,

Sem se humilhar, mas com meiguice,

A pobre e alegre da Cigarra,

Tão linda e loira, assim lhe disse:

 

"- Quereis saber qual o meu nome?

Sou a Cigarra, a flor do estio.

Minha Senhora, eu tenho fome...

Minha Senhora, eu tenho frio...

 

Peço desculpas se incomodo...

Mas permiti que vo-lo diga,

Como padeço deste modo,

Pensei em vós, Dona Formiga..."

 

"- Já sei. Mas tu não tens receio

De andar assim, tarde, a desoras?

Isto é arriscado e muito feio...

Em que te ocupas? Onde moras?"

 

"- Moro nas árvores: suspensa

Entre as ramagens da oliveira,

Na linda terra da Provença,

Canto ao luar a noite inteira!

 

Canto as manhãs resplendorosas!

A luz do sol é o meu tesouro!

Voto um amor fremente às rosas

E um culto ideal aos astros de ouro!

 

Na minha ardência e alacridade,

À hora estival do meio dia,

Canta e corusca a mocidade,

Ferve e incendeia-se a alegria!"

 

"- Basta. Deixemos de parola.

Que queres tu, ó rapariga?

Se o que desejas é uma esmola,

Também sou pobre, minha amiga.

 

A adoração que tens às rosas,

O amor que votas às estrelas,

Como não são coisas rendosas,

Eu não consigo percebê-las.

 

Pelo que dizes, eu suponho,

Pois sou a imagem da prudência,

Que amor, ideal, poesia e sonho,

De nada valem na existência...

 

Deixa-te, pois, destas mamparras,

E vê que, tudo que arquitetas,

São disparates de Cigarras,

São maluquices de poetas.

 

Como o teu mal é passageiro,

- É com franqueza que me externo. -

Posso emprestar-te algum dinheiro,

Para passares este inverno.

 

Porém que dás em garantia

Do que te empreste neste apuro?

Quem, dando-te qualquer quantia

Endossa a letra e paga o juro?"

 

"- Não sei... Assumo o compromisso

De vos pagar logo que possa...

Mas, quanto à letra e aos juros, isso

Não sei dizer-vos quem endossa...

 

Não sei ao certo o que se chama

Ter com alguém conta-corrente...

E eu, entretanto, tenho fama

De ser bastante inteligente:

 

Conheço as regras da unidade

Que, na amplidão da Natureza,

Dão o esplendor da variedade

E da harmonia a grandeza!

 

Ao som das minhas castanholas,

Nos dias fulgidos e quentes,

Na luz, fecundar-se as corolas,

Na treva, abrolham as sementes!

 

Noto, porém, que vos desgosta,

Tudo que digo a meu respeito..."

"- É que já estou pouco disposta

A dar-te trela sem proveito.

 

No estio andaste tu por onde?

Tinhas, acaso, alguma escrava?"

Terna, a Cigarra lhe responde:

"- Só sei cantar, cantei, cantava..."

 

"- Ah! pois se tu não trabalhaste,

Dia por dia, hora por hora,

Se todo o estio só cantaste,

Podes também dançar agora".

 

E zás, sem dó, bateu a porta,

Enquanto, exausta de fadiga,

Tombava em terra, quase morta

A ingênua e lírica mendiga.

 

Voavam ao vento, frio e forte,

As flores murchas, e com elas

Iam, em ronda para a morte,

As tristes folhas amarelas...

 

Foi, a chorar, nessa medonha

Hora trevosa da amargura,

Que ela sentiu quanto envergonha

Pedir o pão da desventura.

 

Viu que as paragens brasileiras

São dos artistas inimigas...

E que há cigarras verdadeiras,

Que nada pedem às formigas...

 

Viu, recordando com tristeza

A sua esplêndida alegria.

Que, na doçura da pobreza,

Há qualquer coisa de ironia...

 

Que as almas puras e bizarras

Sofrem da vida o mal profundo!

E quanto os poetas e as cigarras

São desgraçados neste mundo!

 

Viu que, em verdade, a gente rica,

Que vive sempre acumulando,

À proporção que multiplica,

Mais usurária vai ficando.

 

Viu quanto os ricos são inúteis,

Já que na vida sempre falham:

Como eles têm pretextos fúteis

Para lesar os que trabalham.

 

Eles não vivem de esperanças.

E porque julgam que são nobres,

Desprezam todas as crianças,

Todos os velhos que são pobres.

 

Causou-lhe horror quem sacrifica

Tudo à ambição do mealheiro.

Deu-lhe piedade a gente rica

Que, mais que a Deus, ama o dinheiro!

 

Com os olhos baixos e molhados,

Pôs-se a evocar os seus amores.

Os seus brilhantes namorados.

Os seus queridos sonhadores.

 

E relembrou, curvando a fronte,

Sob o furor do minuano,

Os madrigais de Anacreonte

E de Olegário Mariano...

 

E a soluçar, sem algazarra,

Entre um gemido e uma cantiga,

Foi que a romântica Cigarra

Morreu à porta da Formiga.

 

- - -

 

Caída, à porta da velhice,

A mocidade doidivana,

Conta um Artista que Deus disse,

Ao ver a cena desumana:

 

"- Esta boemia cantadeira

Ponde-me à copa de uma olaia:

Mas a usurária feiticeira,

Em cova lúgubre, enterrai-a."

 

MORALIDADE: aqui se narra

Uma verdade muito antiga...

Mas, quem nasceu para Cigarra,

Não pode nunca ser Formiga.

Martins Fontes.

(Da Primavera, a sair brevemente)


Imagem: reprodução do espelhamento das páginas 22 e 23 com o texto original


Imagem: reprodução da página 23 com o texto original

A Cigarra - Ano 6/nº 126 - "Natal de 1919" -  páginas 93 e 94:


Imagem: reprodução da página 93 com o texto original

O Pão

(inédito) – Continuação do poema Profissão de fé, publicado no n. 102 d'A Cigarra, de 29 de novembro de 1918.

Há muito tempo que nevava.
Há muitos meses que chovia.
O vento, gélido, soprava
Continuamente, noite e dia.

Quais borboletas de platina,
Voavam da neve os flocos no ar.
E parecia, entre a neblina,
Que a luz do sol era o luar.

Inverno. Angústia. Desalento.
A terra dava o aspecto estranho
De um cemitério, amplo e cinzento,
Sob uma cúpula de estanho.

Nessa paragem solitária,
É que vivia, sempre só,
Dona Formiga, a milionária,
De óculos pretos e chinó.

No seu tugúrio inabitável,
Misto de almíscar e de arnica,
Havia um cheiro insuportável
De virgem velha e de botica.

Com o seu terrível egoísmo,
Não dava esmolas, mas também,
Para abrandar-lhe o reumatismo,
Não tinha o afeto de ninguém.

Contando libras, uma a uma,
Passava as horas de vigília,
Pondo-as e fila, em alta ruma,
Num cofre-forte de família.

Mas que valia esse ouro todo,
A essa usurária velha e má?
Que vale ter dinheiro a rodo,
Sem ter o gozo que ele dá?

Dona Formiga achou bem triste
Não ter ninguém, nenhum parente…
Quem é no mundo que resiste
À solidão, perpetuamente?

Triste, levava o dia inteiro
A se esfregar com guaiacol
Pois não se compram com dinheiro,
A mocidade, o amor e o sol.

Cheia de reumas e remorsos,
Quis reviver fatos passados,
Fazendo múltiplos esforços,
Por esquecer alguns pecados…

Lá fora, lúgubre, iracundo,
Na noite negra, ao frio atroz,
Galopa o vento pelo mundo,
A uivar como um chacal feroz.

E, ao escutar Dona Formiga
Esse bramir da noite morta,
Pensou na pobre rapariga,
A quem trancara sua porta.

Vendo um fantasma em cada canto,
Sentindo o algor da morte, enfim,
Branca, a tremer, banhada em pranto,
Pôs-se a rezar, dizendo assim:

- "Lembra-me bem como ela era,
A que eu julguei um cão sem dono…
A última flor da primavera…
A folha última do outono…

Senhor, na minha desventura,
À vossa fé sendo infiel,
Com uma ingênua criatura,
Por avareza, fui cruel!

Perdoai-me o crime praticado,
O mal que fiz a uma inocente;
Tirai-me a dor deste pecado
Que me tortura horrivelmente!"

E Deus, do azul, disse à Formiga:
- "Eu só te posso perdoar,
Ressuscitando a doce amiga,
Que tu expulsaste do teu lar".

Nua, marmórea, ao abandono,
Presa nos braços a guitarra
Dorme, a sonhar o último sono,
A loira e lírica Cigarra.

Quebrando a paz do sonho eterno,
Disse-lhe Deus, vendo-a dormir:
- "Cigarra, acorda e, em pleno inverno,
Faze de novo o sol fulgir.

Na tua voz, que a tudo encanta,
Meu coração arde e palpita.
Vamos, Cigarra, acorda e canta!
Querida, vamos, ressuscita!

Abre os teus olhos, minha filha.
Descerra os lábios, meu amor.
Ao teu cantar, que maravilha!
Sorrindo, a terra se abre em flor!

Canta! Ó festiva cantadeira!
Alegre e alada salamandra!
Cálida e clara companheira
Do rouxinol e da calhandra!"

Ainda medrosa, ainda em surdina,
Timidamente, ela cantou.
E a sua música divina
A terra inteira transformou.

Doirando todas as misérias,
A dourejar os próprios lodos,
Fulvo, em raudais e ondas sidéreas,
O sol raiava para todos!

Mágica, estrídula fanfarra,
Qual, por prestidigitação,
Havia, ao canto da Cigarra,
Uma auroral ressurreição!

De asas abertas, rediviva,
A fretenir, no auge da glória,
Era a Cigarra a efígie altiva
Da liberdade e da vitória!

E a luz jorrava em rios de ouro!
E, num orgiástico prazer,
A natureza imensa, em coro,
Louvava o gozo de viver!

Era uma hosana à mocidade!
Um hino homérico à alegria
Tudo, em coral, na claridade,
No euge sinfônico, dizia:

- "Seja bendita a juventude,
No seu luzir primaveral!
Flor da beleza e da saúde,
Símbolo ardente do ideal!"

Vendo esplender o mundo inteiro,
Dona Formiga, deslumbrada,
Viu que, com todo o seu dinheiro,
Ela por si não era nada…

E achou inútil e enfadonho
Multiplicar seus capitais:
- Porque a verdade está no sonho,
Sendo ilusório tudo o mais.

Depois de longo, amargo estudo,
Viu que é cruel a Natureza,
Pois Deus, artista antes de tudo,
Unicamente ama a beleza.

E ela sentiu naquele dia,
Interpretando a criação,
Que para nós a poesia
É necessária como o pão!"

Martins Fontes.


Imagem: reprodução do espelhamento das páginas 93 e 94 com o texto original


Imagem: reprodução da página 94 com o texto original

A Cigarra - Ano 6/nº 126 - "Natal de 1919" -  páginas 69 e 70:


Imagem: reprodução da página 69 com parte do texto original

Quintas-feiras: Martins Fontes

Durante algum tempo, consagrei, por mês, uma das minhas "Quintas-feiras" aos fatos e às letras do Brasil. Volto agora a fazê-lo, porque considero um dever chamar a atenção dos meus leitores e, sobretudo, das minhas leitoras de Portugal para o movimento literário na grande República transatlântica, onde cada dia surgem, numa floração opulenta e deslumbrante, cultores notabilíssimos da língua portuguesa.

Lembram-se, talvez, de eu ter saudado aqui, há cerca de dois anos, com efusão e com entusiasmo, o aparecimento de um grande poeta santista, no instante em que ele publicava o seu primeiro e maravilhoso livro – "Verão". Pois bem: esse poeta extraordinário – Martins Fontes -, glória das letras brasileiras contemporâneas, acaba de lançar no mercado mais duas admiráveis brochuras: uma revelou-m'o como prosador – "A Dança"; outra, em alexandrinos que me fizeram lembrar a policromia ofuscante dos azulejos mudejares, Granada, acabou de convencer-me de que a obra deste moço e glorioso poeta permanecerá, nas duas literaturas, como uma das mais fortes expressões do gênio verbal da raça.

Martins Fontes é um arquiparnasiano deslumbrado de cor, de ritmo e de som. As suas páginas de prosa ou de verso são, ora orquestrações verbais dum poder formidável, ora largas pinturas, frescos murais, grandes mosaicos dourados escorrendo luz num vago tumulto de formas lampejantes. Tem de se ler com lunetas fumadas – como alguém pretendia que se lesse Paul Saint-Victor.

Quer descrevendo a floresta do Brasil, num poema dos mais belos que se tem escrito em língua portuguesa; quer evocando Granada – a romã entreaberta, ressumante de ouro e de sol -; quer encantando-nos com a sugestão melódica dos grandes ciclos da Dança, como se o víssemos através das vidraças de cores, - Martins Fontes conferencista, Martins Fontes prosador, Martins Fontes poeta, é sempre o mesmo artista superior que pinta, que esculpe, que ilumina, que cinzela, que brinca com as palavras, e que, mesmo quando reflete as exuberâncias da natureza brasileira, sabe manter, com a elegância do espírito e da cultura francesa, esse equilíbrio, essa harmonia, esse sentimento das proporções a que já Leconte de Lisle, seu avô espiritual, chamava – "ma splendide fleur".

Os dois volumes agora aparecidos se completam, como manifestações dum surpreendente virtuosismo literário. São maravilhas de cor e de ritmo. A palavra, tocada pela batuta deste Paganini do verso, freme, dança, ondula, crispa-se, grita, cintila, rutila, flameja – tem uma cor, uma melodia, uma luz, um movimento, uma vibração, singulares.

Na Dança, especialmente, conferência em prosa que está cheia de belos versos ("à surdina da luz, o crespúsculo esplende"; "esta rosa: Rosário! Este rosal: Sorrento"; "é a Lyly Biscuit, musa do velho Sèvres"; "e, absurdo, estridente, um laçarote verde…" etc.) Martins Fontes mobiliza, desarticula, convulsiona as riquezas maternais da língua, nesse misto de neologismo irreverente e de vernaculismo puro que imprime um tão forte caráter à poesia brasileira e, através de cem páginas assombrosas de talento evocador e de esplendor verbal, faz passar diante dos nossos olhos, em sete frisos coloridos, a história animada de toda a orquestrica; as danças gregas, ondulantes, ritmadas a cítaras, a crótalos, a flautas tirrênias, - "canção violeta em lilá menor"; a tarantela italiana batida ao som de cornamusas e de mandolinatas, numa névoa cor de rosa, em pleno rosal de Sorrento – "sinfonia primaveril em cor de rosa maior"; as velhas danças francesas da corte, no século XVIII - "madrigal azul Sèvres, velho tom"; as danças de Espanha, jotas, fandangos, boleros, zambras, peteneras, batidas, nesgalgadas, sapateadas, zangareadas nos pandeiros, nas castanhetas, nos violões – "ópera ultra-escarlate"; a dança ianque da Loïe Fuller – "polifonia policrômica"; as danças líricas de Portugal – "balada branca"; das danças brasileiras – "sonata verde"; - terminando num Magnificat! à língua portuguesa, "maravilhoso instrumento, flauta silvestre, órgão solene, policórdio sagrado capaz de exprimir todas as paixões, todas as sensações, todos os pensamentos", porque Martins Fontes, na prosa multicolorida, polirrítmica, arquiopulento da Dança, como nos alexandrinos incomparáveis dessa página de gênio que se chama A Floresta da Água Negra, quis oferecer-nos um exemplo (soberbo deslumbrante exemplo!) dos efeitos que se podem obter no manejo destro da nossa língua – "de tudo quanto se pode verbalizar em português".

A mesma ocupação o acompanhou na composição do poemeto Granada –o nono da série das "cidades eternas", que Martins Fontes se propõe realizar e que vai dar-lhe um interessantíssimo livro. Que abundância, que exuberância, que vigor de colorido e de expressão na pintura da mourisca cidade das três colinas, com a sua Alhambra dourada, as suas Torres Bermejas, o seu Albavein florido de balcões, de assoteias, de ajimeses, de alicatados de azulejo – e com que poder de visão ele nos mostra, num recanto do Pateo dos Leões, diante do califa de Granada, sobre uma colcha de seda vermelha, o corpo nu de Fatmé, dançando "Pas la couleur, rien que la nuance!" – aconselha Verlaine, interpretando, no Jadis et Naguèra, a poética gagaísta de Rimbaud.

Martins Fontes parece ter definitivamente abandonado a nuance (com que talento ele no-la soube dar, nesse adorável poemeto que se chama Simplicidade!) e trabalha hoje, nas suas largas pinturas verbais, por pastadas de cor viva, álacre, gritante, coruscante, como se as páginas magistrais dos alexandrinos de Granada fossem grandes manchas luminosas de Zuloaga, de Sorolla, dos espanhóis modernos.

Procedem assim, de resto, quase todos os líricos brasileiros, ardentes e hipersensuais, dum objetivismo que lhes permite utilizar prodigiosamente todas as riquezas da língua, vascularizando-as, virilizando-as, transfundindo-lhes energias novas, fazendo-as rutilar em fulgurações que nos dão a impressão do "português ao rubro".

Ainda eu há pouco o dizia ao cultíssimo Henrique de Hollanda e ao cintilante Matheus de Albuquerque, quando eles me deram o prazer de vir tomar uma xícara de chá à minha casa, depois de lhes ler os versos imortais de Martins Fontes, o Bosque Sagrado do esplêndido e vernaculíssimo Leal de Souza, as páginas veementes desse lírico excepcional que é Menotti del Picchia, os poemetos de Olegário Mariano, tão querido das mulheres pela sua sensibilidade, a Dança das Horas, do artista encantador que é Guilherme de Almeida; que consoladora é para nós a certeza de que, seja qual for o destino de Portugal, a língua portuguesa viverá, resplandecerá, perdurará, sagrada e eterna, como órgão de pensamento duma das maiores nações do mundo!

Meu querido Martins Fontes: com que afeto eu o abraço de longe, e com que admiração saúdo mais uma vez em si – poeta eleito duma raça magnífica – a juvenil, a fogosa, a maravilhosa poesia brasileira contemporânea!

Júlio Dantas

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