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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-05)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 57 a 66):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

5

Antes de partirmos para as abstrações da vida e do infinito sonoro e colorido, iremos assistir a cenas de amor, espetáculos dramáticos que o amor prepara com o fito de avaliar o caráter da espécie humana. Atinge-se ao delírio da imaginação com o poder de criarmos figuras satânicas e carnavalescas que simbolizem um ideal.

Como numa lanterna mágica, vamos vendo e ouvindo: Era uma vez… um jardim azul em flor onde, entre flores, ela desabrochou; um vergel verde e dourado onde ela frutificava; um lago prateado de água cristalina onde se espelha uma estrela menos formosa que ela; um amante que, em tudo, via a imagem da mulher nua, e que se queixava ao amigo.

Poeta e adivinho, que contraíra a doença ou mal incurável, a enfermidade da vontade de casar, achando talvez preferível o internamento num hospício; uma cena entre Roxane e Cirano, no outono, à tarde, quando toca um sino do Convento, e ele declara que nunca a amara, devendo ela se resignar como se fosse viúva; outra cena, entre Romeu e Julieta, no balcão, esquecidos de todos, num enlevo de amor; um noivado chinês que dura a idade de uma flor, do lírio e do pássaro que nasceram juntos e no mesmo dia emurchecem; um poeta que, seduzindo uma odalisca num harém, foi condenado à cegueira pelo sultão, consolando-se porque beijou a beleza; outro poeta, em galanteios a uma duquesa, pedindo-lhe beijos.

E assistimos depois a quadros vivos da comédia do Amor.

Certa vez, no tribunal de Deus, don Juan era julgado. O choro das crianças abandonadas e das mães que ele seduziu, condenava-o ao inferno. Ele, porém, não se arrependia e cinicamente se ria ainda, mas as mulheres suplicaram perdão para o amante porque na vida impura elas só podem amar a quem as faz sofrer.

Satan, um dia, levantou para o céu o olhar triste e, vendo Eloá, que lhe sorriu, chorou idealizando o amor, porque não podia amar. O Poeta, também, se lhe comparava, e, infeliz, sentia a mesma dor, sofria, como esse Prometeu, a agonia infernal de nunca ter amado e não poder amar.

Havia uma linda princesa que todos conheciam como insensível ao amor, jamais amara alguém. O Poeta a viu e se apaixonou por ela. Fez-lhe versos em canções, baladas, sonetos, hinos e salmos. Nada a comoveu. Ele procurou vê-la na intimidade para desvendar os seus hábitos. Viu-a nua, na suprema beleza. Cabelos de ouro, pele alva. Depois, viu-a entrar no cemitério, de noite, ao luar, onde ia comer a carne dos defuntos, e em seguida mudar-se em flor, em rosa. Então, o Poeta, estupefato, compreendeu que ela era a Natureza, deusa madrasta do nosso amor.

De madrugada ao luar, Cristina não conciliava o sono. A mãe a interrogou:

- Por que chorava? Que dormisse!

Ela lhe respondeu que o noivo estava morto e sepulto. Queria chorá-lo para se consolar. Nisto a mãe adormeceu. Era meia noite. Bateram levemente à porta e uma voz baça chamou por Cristina. Era o noivo que deixou a sepultura para vê-la. Beijaram-se. Conversaram durante a noite toda, até o amanhecer, quando os galos começam a cantar. Ele se despediu, entre lágrimas, para voltar à campa fria, pediu que ela sempre sorrisse. Cristina o animava. A vida é viagem curta na terra e será melhor se amarem corajosamente. Nisto, ela resolveu acompanhá-lo ao túmulo. Ambos encaminharam-se ao cemitério e desceram ao sepulcro onde vão noivar na morte.

São três horas da tarde. O ar é azul em Paris. Uma linda princesa sentada num banco de jardim ouve a um Poeta. Ambos, após recitar versos, beijam-se…

Na mata do Brasil, à beira dum rio, uma rapariga canta o seu amor, chamando pelo amado que vive em tormentos e indeciso. Ela, cansada de cantar, adormeceu no bosque…

A morena se embala na rede, ao sol do verão, desnuda-se e cerra os olhos, fantasiando o que esperava, mas abre os olhos e não vê nada…

No cemitério, sob um crepúsculo azul, Ele esperou a amada, vestido de sedas roxas e enjoiado de ametistas. Ela chegou à meia noite e ambos se deitaram e para sempre dormem juntos.

Os dois namorados, Ele e Ela, foram, num domingo, aos araçás. A mãe dela não queria, mas foram. Beijaram-se. Para Ela os araçás estavam maduros, apesar de verdes na árvore, tão vermelha tinha a face.

Agora é uma serenata, em noite de inverno, ao luar, sob a janela da amante. O Poeta a chamava para que ela ouvisse um triste ritornelo. Da janela florida pendia uma escada de seda. Ele passeava entre as sombras dos arvoredos no jardim, trazia chapéu de plumas e armadura nupcial de Lohengrin e a guitarra que cantava como um rouxinol. O luar tinha a claridade de um dia ensolarado. A Via Láctea fulgurava pela noite bela. Havia perfumes de flores. Ele lhe pediu, ternamente, que lhe abrisse a janela, porque não demoraria a alvorada. Nisto, sobe a escada e salta o parapeito. Assim termina a melhor página do romance do amor.

Havia no Oriente um espelho mágico do Ideal que aformoseava tudo quanto se lhe refletia. Deste modo era o corpo da amante onde a imaginação do poeta se espelhava, irradiando brilho sobrenatural. Houve um lírio que tinha espinhos como a alma dela, mas do cálice saía fino aroma que inspirava como um sonho, no entanto a mulher é a flor das flores, a suprema flor.

A luz, ao crepúsculo, morre triste. Uma estrela, entre névoas, tremeluz. A brisa do outono lembra um manto de neve e de veludo. A sombra, recalcando o pranto, vai explodir em soluços. A treva se adensava. Ambos, de mãos enlaçadas, trocavam frases de amor. Nisto, a lua surgiu e ficaram cismando se o perdão para a dor vinha da lua ou dos corações.

Numa luta de indígenas, Indaiá caiu prisioneira de Taxaua Inó que a queria por mulher. Mas ela não o quis. Então ele a libertou, desde que fosse seu escravo, para, ao morrer, poder beijar-lhe os pés.

Numa terracota, velhíssima, encontrada em Vila Rica, vê-se o quadro representando o diálogo entre uma criada e um marquês espanhol que se entusiasma pela desenvoltura da serva da fidalga que procurava.

Um vendedor de pérolas e outro de rosas, ao verem certa mulher formosa, elogiaram-lhe: um, os dentes lindos como os seus colares; outro, comparando-lhe a pele do rosto às sedosas flores do cesto. No entanto, ela vivia amargurada porque aquele a quem amava apaixonadamente nunca lhe notara esses encantos.

A noiva passa a primeira noite de amor. Ela se entrega louca e insulada. Num beijo fundem seus beijos. E passa a febre. Ela se torna santa e, na transubstanciação do amor, vive agora embalando um berço.

O Deus Amor ruge como o temporal, sopra, sibila, abrasa, devasta. A borboleta de asas de ouro se aterroriza e tenta escapar, mas o vento a arrasta, e desmaia e sucumbe sem resistência. Ele a tortura. Ela implora paz e o Deus redobra a sanha. A luta é árdua. Rolam no chão, e depois se erguem e sobem ao azul onde unido0s fulgem entre as estrelas gerando os mundos na amplidão.

Agora uma cena antiga à Watteau. Num jardim do século XVIII, à noite, ao luar, damas e cavalheiros de cabeleiras empoadas passeavam, entre galantarias, reverências, sob o rigor do cerimonial aristocrático.

Um gentil-homem conduz uma mulher moça, formosa e pura, agasalhada na friagem da noite, mas nada adiantava porque a febre e a tosse lhe consumiam o encanto. A algidez dos luares alvejava em seu rosto; o fulgor das estrelas ardia em seus olhos…

A flor dos ranchos, por quem todos se apaixonavam, dormia na rede que se embalava ringindo as cordas no ranger dos ganchos. Juçara repousava durante a sesta, mas o sangue se lhe acelerava e não dormia, antes, sonhava que se entregava loucamente nua.

Quando a viu num jardim, certa manhã de março, vestida de azul, muito linda, pressentiu-lhe na voz e no olhar o vislumbre da promessa de um beijo. Havia neve. Amanhecia. O perfume dos lilases se evolava. Uma rola arrulhou. Ele saudou – Bom dia. A luz surdia como flor abotoando entre folhas de hera. Martins Fontes relembrava esta cena muita vez no seu duplo sorriso de Primavera e de Amor.

Continuemos em nossas visões amorosas. Ao luar, um gondoleiro, remando no rio, cantava à mulher amada que, depois do amor, adormecia em seus braços, fazendo-lhe esquecer todas as dores. E o gondoleiro continuou a cantar enquanto ela sonhava.

Certa noiva dum poeta, no salão de jantar, desmaiou como um lírio, e todos ficaram sem saber porquê. Todos se esforçaram pela reanimar. Ele guardou a impressão de vê-la estremecer, desmaiando como uma açucena ao luar.

Numa sexta-feira, o mendigo em que o Poeta se transformou, pedia esmola, e uma linda moça, simpatizando com ele, deu-lhe uma flor. Sábado não a viu. No domingo, porém, deu-lhe um beijo que lhe consolou a saudade, considerando que era esse dia o domingo da ressurreição.

No Paraíso, Eva se mirava no espelho da água entre flores e viu outra mulher linda com as mesmas formas. Mostrou-a a Adão, criticando-lhe a formosura. Nisto, Adão corre a agarrar a outra, mas também viu outro seu semelhante que tentava agarrá-la, ao que ele grita que ela é sua e a queria só para si.

A água do rio disse: - a brisa me delicia; toda me arrepio á sua tremura; sonho ao roçar-lhe a fineza da friagem; qualquer contato se transforma em carícia de amor; retrato a ave e o lírio, e anseio de ver espelhar-se em mim a redondeza de um braço, um rosto.

Ele sonhou que viu mil mulheres à venda e todas nuas, em bazares, provindas das regiões mais famosas. Elas chegavam em berlindas, faluas, carros, embarcações. Aos olhos ardentes de todos, aqueles corpos róseos semelhavam-se a frutas ou a pêssegos dourados.

No Tribunal, ela confessou que matou o amante por amor e pelo pavor de vê-lo envelhecer, morrer aos poucos, dia a dia, até morrer de todo. Assim foi melhor. Morreu jovem, feliz, compreendendo o dever da amante que lhe poupou o terror que a velhice causa, não querendo que a idade o profanasse, aplicando a eutanásia da paixão.

Dom Rui viu Dona Leonor de Lara rezando o seu missal na capela à Madre do Pilar, e nunca mais a pôde esquecer. Vai sempre espreitá-la da casa do arcediago quando ela aparece branca, fria e fina, loira e linda, fulgindo como um lírio solar, entreaberto na sombra.

Um quadro de Fausto, no quintal de Marta, ao crepúsculo, quando esta ouve uma declaração diabólica de Mefistófeles, e Fausto, responde à dúvida de Margarida de que ele a julgava o sol que lhe aclarou a vida.

Um anão velho toca viola no inverno. É uma canção de amor, cantada sob temporal e frio, lembrando os casais felizes, mas ele canta para pedir um pão.

O príncipe teve tudo: rubis no escudo, riqueza pelo título aristocrático, glórias, honras, aclamações, no entanto só um sonho acalentava – ter um beijo de puro amor.

Certa mulher escreveu a Martins Fontes uma carta em que lhe pedia conselhos e confessava a sua dor porque amava. Martins Fontes sentiu-se honrado e respondeu. Se alguém nunca interpretou a paixão de outrem, não tem o direito de estiolar uma vida. Ela devia seguir o seu próprio destino, ainda que seja infeliz, porque o amor arrebata, possuindo segredos imortais, dominando razões desconhecidas da razão.

Martins Fontes encontrou uma linda mulher, ao sair do teatro. Disse-lhe galanteios de amor. Levou-a para casa. Amou-a. Falou-lhe sempre. E ela somente sorria. Perante o seu silêncio, ele insistiu em perguntas. Ela, ante aquela súplica, começou a chorar porque era surda e nunca ouvira uma declaração de amor.

Numa ourivesaria lapidavam pedrarias a granel. Certa mulher procurou o lapidador e queria uma pérola e não pedras. Mas a pérola se recusou a ser dela porque o seu coração nunca foi sincero, preferindo então voltar ao mar a servir de ornamento à pérfida.

Dom Gil de los Guapos, Grande de Espanha, tocador de guitarra em Granada e toureiro em Leon, considerava-se rei dos galãs e se gabava das suas aventuras amorosas e de toureador, das quais escapava por artes de dois talismãs que eram os olhos da amante que lhe inundavam a vida de bênção de amor.

Ela, a amante, tinha medo, mas o escuro não deixava que o vissem, mas pularia o muro se fosse surpreendido. Nisto, o eco repete, como se desse a resposta dela, dizendo que tirava uma fruta só, pois a mãe estava doente e não tinha nada em casa. E roubaram beijos.

As estrelas, que eram brancas, ficaram vermelhas porque viram o banho na piscina da Urca quando as moças ululavam – Goal!

A imaginação do Poeta se apurava ao ardor das paixões incandescentes, e vimos que o coração, como um vulcão, irrompeu em fogaréus vermelhos, roxos, da cratera crepitante, esmechando em oiri-chuva a infinita amplidão no dia em que a amante nos seus braços, confessou, num beijo, todo o ardoroso amor. A volúpia se enroscou ao desejo violento do Poeta. A tímida graça da mulher amada, no modo airoso de todo o corpo, dedilhou-lhe a escala epidérmica da carne. Eterizou-se a imagem da amante na linda Fada Bombom que, pelo deslumbramento, o transportavam e sonho à pátria de Colombina, onde ele provou a grajeia da doçura francesa – o beijo!

E errante, o Cavaleiro do Amor e da Beleza vagueava pelo velho jardim abandonado do Bois de Boulogne, em Paris, ao luar, em terça-feira de carnaval, onde assistiu a uma comédia funambulesca em que entravm em cena três figuras simbólicas, fantasiadas: - a Colombina de Watteau, o Pierrot de Willete e o Arlequim de Gavarni. Ele, o Poeta, vendo=os, confessou que também sempre viveu de amor. Desde a infância, a sua primeira poesia foi uma ardente confissão de amor. E na agonia, quando murchasse, na tarde friorenta, a última flor do seu "Verão", o seu último suspiro seria uma balada, um beijo, um ai, uma harmonia de amor.

Do recanto dum parque solitário e arborizado, surge Pierrot toando guitarra e cantando ao luar em louvor a Colombina. Ele é um Pierrot de cor de rosa e preto, de cabeleira empoada e calções de cetim, que esparze a poesia do sonho na ironia da vida, que ama o imprevisto, o raro, o precioso, o burlesco, o ultra-fantástico, o requinte, o romântico, as transparências do ar, dos líquidos e dos corpos, enfim é um poeta que diviniza a mulher, procurando-a ansioso como ideal da beleza eterna e da suprema poesia. Viver na tortura de a ter sonhado e não encontrá-la.

No mesmo jardim, enquanto Pierrot, acabrunhado, vai sentar-se num banco de mármore, aparece Colombina que anda em busca do mesmo Ideal no homem, cantando um rondel ao seu Pierrot. Ela também ama o sensível e o sutil, e, como ele, o seu consolo único ante o pavor de adoecer, de envelhecer e de morrer, seria encontrar a imagem querida num olhar ou num beijo que desse a sensação do sonho, o sabor do ideal. E cai no mesmo desespero. Então Pierrot se aproxima, deslumbrado, perplexo, com a aparição de Colombina. Cortejam-se. Pierrot lhe declara o seu amor, e, como ela é a graça, ela é Poeta que vive a adorar estrelas, em noites de luar.

Colombina ama as flores, às quais se compara. Pierrot lhe recita sonetos, triolés. Colombina lhe pede uma balada em que resuma a sua profissão de fé. Ambos saem do jardim. De trás das árvores onde se escondera desde o princípio do diálogo entre Pierrot e Colombina, aparece Arlequim, diabólico, sarcástico, gargalhando, e que também gosta de Colombina, à qual, depois que esta voltou sem Pierrot, propõe que abandone este Poeta, idealista, sonhador, que, apenas aspire o perfume das flores e a beleza das mulheres, as abandona. Ele, Arlequim, lhe promete amor eterno e um lar confortável. Afinal, a seguir à luta entre o Amor e o Futuro, Colombina, conquanto não ame Arlequim, prefere acompanhá-lo, desprezando Pierrot que enlouquece de dor.

Mas, nesta fantasia, os três terminaram à maneira das comédias de França; de mãos dadas, recitam um rondel em diálogo. Pierrot, que esteve muito doente, escreveu uma carta a Colombina prometendo ir visitá-la, para, de joelhos, beijar-lhe a mão. A convalescença lhe parecia poética, porque era como o renascerm chorando-se infantilmente à lembrança da música, do perfume, do pássaro, da rosa, da seda, verso, doce ou frase.

Ele agora se sentia bom porque a sua bondade era piedade infinda pelos que vivem e sofrem no mundo. Na carta a Colombina, fez um círculo e nele depôs um beijo, para, sem se verem, recebê-lo beijando-o também, Colombina reuniu em seus jardins vinte amigos numa festa para encantar a Pierrot. Houve um baile deslumbrante de pura distinção e requinte. Os convidados se revestiam dos mais finos disfarces. A luz, em contraste com o dia de sol e os verdes vegetais, era de tênue tinta, em tons de opala ou de pérola gris.

Esse vesperal azul à Watteau começou ao resplendor do dia e acabou ao nascer do luar, como um sonho, Havia casacas de cetim e sedas raras, transparentes. Colombina cantava, entre rosais, ao som de música espiritual, Os canários brincavam pelo parque, à volta dum corcel, famoso, dos cisnes e dos galgos. Serviam os bombons e os sorvetes em cristais de Veneza, e os vinhos da Champagne e os licores da França em cálices e taças finas. Pierrot, num palco, junto aos caramanchéis, recitava uma canção de Hugo.

Entardecia e esfriava. A luz do sol se diluía em semitons de opala cor de rosa, até que o crepúsculo envolvia a paisagem de sombras e névoas, e uma aragem fraca anunciava o aparecimento da lua. Pierrot dá o braço a Colombina. De repente, no parque, acenderam-se os balões do Japão e as lanternas chinesas. O que é frágil inspira simpatia; o que é vago sugere amor. Adora-se o sonho, abençoa-se a graça. Tudo finda, foge, se esfolha, tal como deliquescência, evanescência…

E Pierrot de Willete morreu. Martins Fones, num arroubo de imaginação, crendo que os seus versos, espalhados, diferentes, são violetas sem valor, ofereceu-os a Willette, e deixou no jazigo uma flor pálida, como se fosse uma lágrima de saudade.

Estas divagações encantavam-no, porque amava o exotismo, o invulgar, o esquisito, o único, o insólito, o imprevisto, como se ele fosse a essência de Satanás, ou Diabo Verde imortal que assobia depois de ter amado muito, saracoteando a gâmbia fraca e tocando flautim, ou tomando a feição de caricatura infernal para idealizar tipos excêntricos, todos vestidos de púrpura, com meias escarlates, de seda cor de granada, como as figuras que pintava Cheret, o Satã da alegoria, fantásticas, feitas com febre, representando a vida a fulgir, a guizalhar, em panos murais, jarros, janelas, portas, postigos, aquarelas, sanguíneas…

São depois as artimanhas satânicas, para seduzir a mulher, e sincero confessa que, com tal colaboração, fabrica o lírico amavio. O diabo lhe apareceu um dia em que soprava quente e abafadiço noroeste A tarde caía empurrada pelas trevas da noite. O céu amareleceu, escarlatinou-se e esmaeceu até escurecer completamente. Duma janela, saía púrpuro clarão, e lá dentro alguém escrevia febrilmente, suava, nervoso, arrebatado.

Efetuava-se a transubstanciação no cérebro de um poeta: - Martins Fontes. Ao lado, humana, estranha figura, envolvida em negra capa, entre labardas, apontava para a folha de papel, e ditava. Satanás concebia e Martins Fontes escrevia. Com sabença, em longas palestras, expôs-lhe as ideias e invenções, ágeis, sutis, que transmitiu aos outros pelo verso esculpido e com a polidura da arte.

Assim apareceu Escarlate, dando à obra de Martins Fontes a feição de fantasmagoria. O amor e o beijo, entre os requintes da gentileza palaciana, sensualizavam-se por influência do Diabo. O Poeta, o apaixonado do esquisito, do invulgar, do exótico, expandia-se pelo mundo real em companhia de Satanás que lhe mostrava as maravilhas do Infernal Reino. Dir-se-ia que o Poeta era a própria essência do incorrigível e tentador Mestre da Vida.

Lembrava-me, quando discorria sobre este assunto, da célebre lenda de Fausto que o gênio de Goethe imortalizou e, no domínio intelectual, participou de todo o cérebro pensador, poeta ou filósofo.

O imortal poema dramatológico inspirou as mais belas poesias líricas de Martins Fontes. Sentiu-se arrebatado pelo espírito de Mefistófeles e acompanhou-o na imaginação, pela Terra do Sonho e do Amor. O aspecto humano se afeiçoou a uma caricatura de zarcão, emoldurou-se numa casaca vermelha de gentil-homem, pomposo, afetado, e correu aos páramos da fantasia.

Depara o Castelo Encantado, a moradia dos sonhadores, feito de opala, de nuvens fofas como algodão, donde sai, adorada, a lua branca, vestida de musselinas de azul e prata, arrastando a cauda comprida, no firmamento. Nesse Castelo, os poetas, em duetos vários, tangendo a tiorba dos menestréis, desfolham rondós, sonetos, solaus e silvas. Aí, como numa estufa brasilhante, o poeta se comunica com seres etéreos que o arrebatam a violentas paixões.

Na fulguratura do amor, há bocas unidas em beijos longos como a morte. Embriaga-se no perfume das rosas de rubor rútilo. O pensamento se sublima porque atinge o abismo. Encadeia-se a superioridade dos elementos, do Homem ao Cosmos. E Mefistófeles, muito interessado em mostrar ao discípulo a refulgência do Mundo, aponta aos que passam a falar na grandeza maior de cada qual: a Terra, Saturno, o Sol, Sirius, Aldebaran, Arcturus, o Cometa, o Setentrião, o Zodíaco, a Via Láctea, as Nebulosas, o Infinito… Tudo grandioso ante o homem, e perante nós tudo seria uma sombra.

Como nuvens tumultuosas, incandescentes, passam também as caravanas de mártires do amor, e passam continuamente, entre soluços, gritos, hosanas, imprecações e pragas. Satã solta gargalhadas arrepiantes. Segreda afinal ao poeta que ele possui novo invento, com o qual o livrará das torturas desses desgraçados. É um aparelho que permite amar ao longe, destrói o preconceito e liquida com a moral. O diabo, arreganhado e chamejante, explica ao Poeta o que em boa hora inventou: com o rádio e o xilofônio, ao seu alcance, uniu o telefônio sem fio à televisão, para ouvir a voz natural e ter a vista e o tato à distância. Os olhos do Poeta se arregalaram. O Diabo, num instante em passe mágico, mostrou-lhe, perfeito e normal: o "telefilium"!

Sonhos e visões que certas lâmpadas orientais provocam, lâmpadas douradas, enormes, fascinadoras, cujas chamas, ora rubras, ora amarelas, incendeiam janelas, vidrais, portas, de madrugada, ao luar, entre as quais há uma que lhe inspirava amor – Shaharazade – a lâmpada verde do sonho, em torno da qual as mulheres amadas dançavam nos bailes do sabbat, e ante a qual, à noite, no silêncio do jardim, ele rezava, aos seus deuses, a Missa Negra do Pecado, todo carnavalesco, em brados a Lúcifer, para que lhe pusesse sobre a sepultura esta lâmpada, cuja flama louca se erguia em glória a Satanás.

No paroxismo da imaginação, Martins Fontes luta para esquecer o passado, um desejo, um beijo, porque lhe era impossível parar, sob o furor adurente que o lacerava, porque, no auge da neurose, da demência, da febre, se comprazia na ânsia do ineditismo, imaginando o planeta, uma sala de fogo, em festa orgiástica, demoníaca, onde ele aparecesse, a conduzir um cortejo de carnaval, fantasiado de louco, a gritar, a berrar, a rir, desengonçado e possesso, em esgares lunáticos de causar pena…

Seguiam-se os delírios auditivos, olfativos, táteis, visuais e gustativos, em que Martins Fontes atingia ao sublime da inspiração lírica ou romântica. Não se contentava em perscrutar os amores puramente humanos. Ia além. Invejava o amor ignorado das palmeiras; escrevia a história de amor de um lírio e uma andorinha, de um jasmim e uma rosa, da vaga no alto mar e o luar de prata, o colóquio entre o Pinheiro e a Água da Fonte, à tarde, no fim do outono; observava no olhar dos animais as dúvidas que eles sentiam: revolta, amor, piedade, desilusões; elevava o seu panteísmo até o noivado do Poeta e da Terra que, na transfiguração do amor, se beijavam ao luar; ansiava viver junto a uma Giganta quando a Natureza concebesse os monstros, tal como um gato aos pés duma princesa, e ver-lhe a alma se expandir no corpo, compreender-lhe o candor percorrer os seus contornos e dormir à sombra dos seus seios.