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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-09)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 91 a 95):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

9

Urgia voltar à América. As saudades apertavam. Viajando, por mar, o Poeta, a bordo de gigantesco e moderno transatlântico, singrou as ondas bravas da foz do Rio Tejo. Ao passar pela Torre de Belém, avistou Lisboa. Estava no mês de abril.

A linda sultana lisboeta, vestida de branco alvíssimo, sob azulado céu e sobre sete outeiros que dispersavam ondulações verdes além dos seus muros, provocava o sonho, recordando a Martins Fontes os seus irmãos: Camões, Bocage e todos os poetas e escritores provençais, clássicos, românticos e realistas, e depois a História cujos heróis se levantavam dos túmulos e repetiam as façanhas em terras ignotas e nos mares nunca antanho navegados, cantando fados à guitarra, em noites de luar, em que exprimem todo o sentimento da raça.

Martins Fontes, Troveiro e Cavaleiro do Amor que levava à sua dona o rosicler famoso que tem a cor do leve luar, da rosa e da neve, inebriava-se ao saborear o lirismo dos poetas portugueses da época provençal e clássica, os quais dignificaram o sentimento do amor até as culminâncias do sublime. O gosto pelas quadras populares resultava da admiração por esse delicado, simples e profundo sentimento que traduzem do apaixonado povo de Portugal.

À maneira dos trovadores medievais, Martins Fontes conservou o tom da época e as formas arcaicas da língua nas poesias de amor em que subsistem termos antigos, ouro de vinte e quatro quilates, como os avaliou o poeta Agenor Silveira, a fim de não alterar o caráter do lirismo provençal, cujo fundamento único é o Amor.

Através de nove séculos, a nacionalidade portuguesa mantém esse lirismo de contínua melancolia, ora arrebatado e heróico, ora pessimista, sofredor e resignado, submergido em longo idílio sentimental, de que a realidade da vida muito a custo consegue despertar, para retornar ao devaneio eterno.

Este sentimentalismo transmitiu-se aos brasileiros por intermédio dos colonizadores que eram troveiros e soldados, e cantavam e combatiam pela expansão da cultura portuguesa na América.

E nas velhas medidas dos cantares de amigo, dos cantares de amor, das tenções de escárnio e maldizer, Martins Fontes exprimiu o lirismo da raça lusa. E como rimador à moda clássica da antiga métrica francesa, brindava em rimas rútilas a uma princesa bela, dona Leonor, flor de lis de Portugal, cujos olhos guardavam o negror das noites tristes e o esplendor do sol de Nice, e cujas mãos são alvas como a neve, lírios brancos da nobreza e da gentileza que se espelha numa florzinha.

São conselhos à menina Briolanja para que não perca na vida o tempo de amar, porque o desgostaria ver um rosto lindo murchar como uma rosa. É o monólogo ao seu coração, pedindo-lhe moderação no cantar que aos olhos da jovem amada podem se tornar ridículos tanto arrebatamento e tanta loucura, mas o seu coração ficava surdo e continuava cantando como doido, sem refletir nem descansar, porque quem ama nunca envelhece.

São os seus indiscretos olhares para a mulher formosa que deixa contemplar todos os encantos tentadores, capazes de perder a cabeça dum santo. É uma linda rapariga que vai em busca do país onde os amantes são constantes, terra essa que não existe. Agora, uma serenata ao luar, chamando a amada que dorme indiferente aos noivados da Natureza: as flores, as aves, as águas, as pedras, os minérios a se amarem para a perpetuação do Ser. Depois, um cantar de amigo em que uma dama, freira dum convento, lastima a triste sorte de viver encarcerada à espera de morrer, sem afetos nem carinhos, enquanto é moça e bela, tendo por distração única o firmamento onde as estrelas e as borboletas fogem e voam livres, alegres.

Passa Leonoreta formosa e branca; passa Dom Galaor proclamando a sua intrepidez como Cavaleiro da Arte e Príncipe do Amor; passa Eurives contando o sonho que teve com um cavaleiro donairoso e lindo; eis a filha de Dom Brandoivas em colóquio amoroso com o seu amado cavaleiro, enquanto o pai dormia sob pressentimentos que ela desfazia, fazendo-lhe crer que sonhava; finalmente o cantar dum troveiro pedindo às flores do prado, à água da fonte, às brisas aladas, às lindas aves se viram passar a sua amada e bendissessem Guiomar; e uma elegia lastimando a morte de Dom Dinis, rei-trovador.

No período clássico, vai Martins Fontes encontrar o lirismo popular nas poesias de Luís de Camões, o poeta máximo do sentimento amoroso e do bucolismo dos portugueses, ao qual também foi buscar inspiração a poetisa inglesa Elisabeth Barrett Browning; e a paixão transcendente nas cartas de Sóror Mariana. Elisabeth Barrett para justificar os sonetos de amor que dedicou ao poeta Roberto Browning com quem se casou depois, realizando o mais venturoso sonho da sua vida, considerou-os traduzidos ou trasladados da literatura portuguesa, a única que possuía os poetas líricos que melhor traduziram a paixão humana em sublime e delicado êxtase.

No mesmo sentido, o lirismo de Martins Fontes se evidenciava nos seus estados de melancolia e de saudade, ou quando externava, em verso, sentimentos de ternura e bondade, ora relembrando passado venturoso, ora enaltecendo a graça das mulheres belas.

Lembrava o lirismo viril de Luís Vaz de Camões e de Manuel Barbosa du Bocage, seus inspiradores magnos, e que também o foram de sonetos portugueses de Elisabeth Barrett Browning, a notabilíssima poetisa inglesa, consagradora do amor-doçura dos filhos de Portugal, imortalizadora do amor infeliz de Sóror Mariana em cujas célebres cartas, de simplicidade genial, de clareza clássica, buscou a fonte dos seus pensamentos amorosos.

Há no sentimento desses poetas portugueses, transporte irresistível, aniquilador, de tanta veemência e pujança, que quem o sofreu suporá ser a Morte, quando o nome verdadeiro é Amor! Os artistas árabes, cuja poesia resume a música no suspiro, no beijo ou no queixume, não se comparam aos poetas portugueses. Eis porque o título aromal de sonetos portugueses, quarenta e três lírios montanheses, revela a gratidão de Elisabeth Barrett.

Para Martins Fontes, o amor era a única razão de ser da vida. Ele sempre viveu apaixonado, contudo discordava com o casamento dos intelectuais, porque era integralmente pela liberdade do amor, e o casamento não podia ser senão o que sempre foi: o seu cárcere! Isso não obstou que tivesse sido um grande lírico do amor-sentimento, que prende os noivos por laços matrimoniais eternos.

Muitos discutiam e contestavam o lirismo de Martins Fontes, porque ele próprio, desconhecendo-se tencionalmente, afirmava que era mais artista que poeta, como se quisesse se iludir. Certa vez, fui à casa do pintor Ângelo Guido, que residia na Rua Sóter de Araújo, ouvir a leitura dos versos do livro Yara pelo poeta Paulo Gonçalves. Naquela noite, reuniram-se alguns intelectuais de Santos – Martins Fontes, Mariano Gomes, Archimedes Bava, Cleómenes Campos e outros.

Paulo Gonçalves, o visionário sonhador duma arte brasileira baseada na doutrina do filósofo nacional Farias Brito, concordando que era mais lógico seguir a mentalidade dum grande pensador do que acompanhar a evolução econômica dum povo -, confidenciava-nos, lendo os seus maviosos versos, as torturas do amor inquieto por aquela que ele sonhava com angelitude, pureza e harmonia inalteráveis, e que não o merecia porque ele não foi quem ela sonhava.

Os dolorosos queixumes do poeta, consolando-se entretanto a recordar os amores infelizes de Dirceu e Marília, amarguravam os seus irmãos de ideal que lhe ouviam, em silêncio profundo, as preces do seu coração desgraçado, cujo encantamento terminou com a lenda das rosas.

Martins Fontes não pôde se conter e, quase soluçante, abraçou o corpo meão e franzino de Paulo Gonçalves, beijou-lhe a face magra, encovada e morena. E todos tinham lágrimas nos olhos. Quanto juntos, Paulo Gonçalves, Martins Fontes e eu saímos de casa de Ângelo Guido e nos encontrávamos na Rua Bittencourt, o grande poeta de "Verão" estacou par dizer a Paulo:

- Eu não sou poeta. Você, sim, Paulo, nos seus versos há lirismo, sentimento, melancolia; não passo de artista, burilador de versos…

Dizia-o para louvar muito justamente a Paulo Gonçalves, o poeta das transcendências espirituais.

Voltemos a Lisboa, donde se prosseguiu viagem através do Oceano Atlântico, a caminho do Brasil. Nas proximidades da Ilha da Madeira, o Poeta assistiu a furiosa e retumbante tempestade, durante a noite. Alta serra de água precipitou-se e encharcou o navio, Relampejou e o trovão ribombou. O vendaval, no furor da passagem, uivava nas enxárcias e nos mastros, sacudindo o velame. Gritos e imprecações se confundiam com o rugir do vento. O barco sarilhava desvairado, aos trambolhões, de onda em onda, ora galgando as águas espumosas e revoltadas, ora rolando no abismo, como se fosse para o fundo do mar. E a tempestade cessou com a bonança da madrugada.

Entre céu e mar, durante muitos dias, a imaginação do Poeta alcandorava-se e ia à América do Norte, recordando-lhe da última visita, emq eu pôde admirar as formosas mulheres e os grandiosos museus e bibliotecas. Ele viu no Museu de Nova York um quadro representando um rosto de criança, cor de rosa, que sorria com olhos de azul-lilás de hortênsia, e boca bela e pura, enfim um rosto em beatitude onde se vê o céu por diafaneidade. O seu encanto provinha de que ele venerava a virtude e adorava a inocência. Nesse museu, ele viu um xale fito há mais de um século. Era a luz tecida, obra-prima de delicadeza, névoa de seda colorida, pontilhada de orvalho, e equivalia a uma brisa ao luar.

Depois o México, o vanguardeiro das liberdades populares, que Martins Fontes admirava. Estas liberdades estavam simbolizadas pelos vulcões americanos, sentinelas da Pátria Americana, que, no mistério do tempo, no profundo silêncio, se reuniam em conclave para responder: porque é que viviam em luta e rugiam em convulsões dentro da Terra, do México ao Peru; ao que afirmavam: que faziam Justiça quando os homens se esqueciam de ser justos.

E também pelo vento louco, feroz, da montanha dos Guatemós que sacode, arranca, berra, dá gargalhadas, como um possesso, em furacão, entre raios, retumbos, desesperos, reagindo e lutando inutilmente contra o europeu conquistador da América, para, afinal, desejando antes a morte que a desonra, entrar no solo e se sepultar no coração da sua própria terra.

Recordando-se de tão valoroso país, Martins Fontes citava, com profunda simpatia, a estátua de Guatimozin, de bronze verde, levantada no Rio de Janeiro, em cuja efígie sertaneja palpita o caráter do México e verdeja a pujança da América. Contemplemo-la e amemo-la, aconselhava o Poeta: Guatimozin, endoidecido, impreca, vê o filho embaixo, na campina, sobre um leito de brasas e que lhe grita: - Pai, é de rosas o meu leito! -. Guatimozin faz mira, trespassa com a flecha o coração do filho e se lança no Orizaba para morrer também…

Martins Fontes fez versos sobre tudo que viu e imaginou, mas não se lembrava de ter cantado a Taça de argila, curva e reasa, pintalgada, nos bordos e reversos, de arabescos vermelhos e transversais. Os índios da antiga América fizeram-na de barro e era nela que o Poeta matava a sede.