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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-12)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 107 a 111):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

12

Idealizamos um tema que, cheio de harmonias, dizia Martins Fontes, conseguisse a plenitude protofônica, multiplicando-se no céu os clarões multicores da feitiçaria. Nesta orquestra, sonharemos desvendar-se, por milagre, o sobrenatural da Terra. E este sonho é o Estado de São Paulo através dos incêndios da beleza. Beijemos, pois, a Terra natal, a gleba familiar, a pedra limiar da nossa Casa, porque assim beijaremos os mortos cuja cinza se transforma em fores, para que revivam todos, fraternais, pelo nosso afeto.

São Paulo é filho de Anchieta, e se compara à brancura do luar, da espuma, açucena, jasmim, lírio, neve, e à leveza da pomba. Anchieta viveu e sonhou em Itanhaém, em cujas praias escrevia versos de amor. Conta a lenda que estas praias são tão cheias de conchas quantas as areias do mar e estrelas há no céu.

A terra paulista canta, fascina, exurge, resuscita. Os cafezais estão em flor. A florada no sertão, ao surgir da madrugada, torna bela a paisagem. Parece o luar, durante o dia, prateando os roseirais. É tanta a brancura das florações que os vales dão a ilusão dum bosque de neve em flor, e as encostas dos montes de cachoeiras rolando cheias de espuma. O cheiro do jasmim tonteia, enfeitiça, embalsama.

Os poetas devem imitar estas flores, amando como elas. Nascendo em São Paulo, recebe-se a graça de saber amar. São Paulo se glorificava nos campos, rios, montanhas, pelo seu tesouro, pelo seu trabalho, pelo amor e desvanecimento dos seus filhos em serem paulistas de há quatrocentos anos. A alma dos bandeirantes, indomável e imortal, ressuscita.

Martins Fontes se orgulhava dela e queria morrer ouvindo os seus dolentes cantares, sonhava num perpétuo enlevo por ela, e julgando-se incapaz de servi-la como devera, ao menos a amou quanto pôde. O Estado de São Paulo, nas suas lutas pela liberdade e pela democracia, desde a madrugada, sob o orvalho cobrindo os cafezais, trabalha e lavra as terras. Quando o dia desperta para a vida intensa, os trens iniciam suas carreiras loucas, as fábricas rumorejam e fumegam, a multidão burburinha na labuta diária. Nas escolas e nas academias, templos da ciência, estuda-se.

Durante o dia, São Paulo não repousa da faina multifária e nobre das suas mil forjas, nem se apercebe dos lindos poentes em sonhos de arte inéditos e inigualáveis.

E pela noite, sob o Cruzeiro do Sul, sob as estrelas cintilantes e a lua, o trabalho prossegue porque os paulistas são um povo de operários, os obreiros da gleba, que em vinte anos centuplicaram a glória do Brasil.

E à mãe paulista, ao seu torrão, à sua terra, Martins Fontes deu-lhe o pão do seu corpo, o vinho do seu sangue em que se encerrava a candência brilhante do Brasil. Ele falava com saudades do São Paulo romântico, saudades que lembram os "flamboyants" vermelhos e belos da mocidade eterna. São Paulo garoento das morenas de cabelos negros que lhe inspiraram muitos sonetos, em cujos versos elas estão retratadas para que pudessem pensar, lendo-os, que ele amava a qualquer uma delas, sendo impossível tratar-se de outra, aquela que ele cantava, sem mencionar o nome, indiscretamente.

O luar batia no Rio Tietê. A serenata soluçava até de madrugada, adormecendo as flores amorosas. A lembrança do velho São Paulo da saudade azul lhe perfumava a vida. Do Cemitério da Consolação saía um vulto, pela noite morta, e caminhava de rua em rua, até que, sobre as lajes do vetusto aprisco franciscano, tombava e morria: - era a Estudantina.

E as ruas de São Paulo! A rua de São Luís, que é arborizada de jacarandás, formando sombral violáceo quando refloresce, deveria se chamar Rua da Saudade em Flor.

As frutas e as flores de São Paulo! A jabuticaba, fruta sem rival, que Martins Fontes adorava porque no sabor ele sentia o gosto da terra paulista. A malva-rosa de essência encantadora, superior a certas flores de aromas embriagadores e inspiradores, tanto alegra uma choupana como um palácio.

No lar de Martins Fontes, outrora, a malva-rosa encantava o seu amoroso ninho, entre avencas e parasitas na sala de jantar, no corredor e à janela. O perfume dessa flor dentro dum livro, marcando uma poesia, era equivalente a um juramento de amor. Assim se fazia antigamente.

Também a paçoca paulista, noutros tempos das bandeiras no sertão, era o alimento único que resistia todo o tempo da campanha. É feita de farinha socada no pilão e considerada superior ao pão, e que se come com banana ou café. Com a paçoca, pôde o paulista penetrar e conquistar o sertão brasileiro.

E o Poeta, Cavaleiro do Amor, como um bandeirante, gostava de viajar pelo sertão. Ficava horas a fio à janela da casa de fazendeiro, construída sobre o vale, olhando a paisagem pura e triste, a sonhar. Entrava depois em levitação, acalmando dores íntimas. Sentia na paisagem a presença do grande cantor da vida sertaneja, Ricardo Gonçalves, e vozes do coração o obrigavam a uma linguagem mística que, no céu, talvez se igualasse à dos anjos.

Entardecia. Havia milhões de pirilampos a fulgirem. Silêncio melancólico. Martins Fontes não tinha crenças religiosas, mas, por atavismo, murmurava a Ave-Maria como se sua mãe nele rezasse.

Exaltando as maravilhas da natureza e a alegria da terra farta, entristecia-se quando se lembrava que nas Fazendas viviam donas infelizes que se casaram sem amor com homens ricos e cruéis, o que o levou a penar no amor livre. Isso não obstava a que lamentasse a mediocridade de algumas mulheres. Cerva vez, em São Paulo, num domingo, foi ao Teatro-Jardim ver o espetáculo popular que constava de guignol, rinha, tourada, box, luta-romana e futebol. A peça terminava em pancadaria e facada, sendo muito aplaudida. Pois à saída uma senhora disse ao marido que nunca passara um dia tão feliz!

Voltemos à paisagem paulista. Os rios de São Paulo. O Rio Paraíba, na flor da idade, era ardente e fazia prodígios. Como rapaz estroina e solteiro, inunda estâncias, destrói na passagem os barrancos, cobre o balseiro de linhos e flocos níveos. O rio se curva, se encrespa, galopa e salta. Forma quadros nos sítios onde atira a espuma das águas, enchendo-o de lótus, verbenas e copos-de-leite. Desencabrestado, rasga as neblinas da sonolenta mata virgem e entra no vale de beleza inigualável, onde o rio amansa.

O vale se enflora de orquídeas, musselinas, rodriguézias e veludinas; enche-se de sombras sonoras e de ninhos de pintassilgos, gaturanos e beija-flores. A selva se fertiliza. O rio evoca, nesta solidão, debruado de prata e dormindo ao luar, a boemia louca de outrora.

O Rio Tietê, para Martins Fontes, era um índio velho, feiticeiro e profeta, de barbas brancas e cajado na mão, que vive, por baixo de pontes, ao fundo dum antro, falando sozinho. Martins Fontes, durante muitas noites, ia à Ponte Grande e, provando-lhe da água, falava ao rio da sua valentia.

Tietê lhe contava a história do Estado de São Paulo, com voz trêmula, acaipirada e dolentes, mesclando termos tupis e palavras de nagô. Então, relembrava antigos fatos: João Ramalho e Tibiriçá, os Guaianás, a tapera negra onde Bartolomeu da Silva penava, e muitos outros episódios da Bandeiras e das Monções.

Tietê foi testemunha dessa epopeia quadrissecular. Como Pagé, Patriarca ou Monge, escravizado à gleba, o rio sacia, alimenta e abastece a gente paulista, com as farturas que se encerram em seu leito, e a quem os Poetas todos vão pedir a bênção.

E que maravilha a misteriosa lagoa da Serra dos Itatins, perto de Iguape, entre vergéis, que é de ouro que orna e cerca o arvoredo circunvizinho. A lagoa ilude os aventureiros que querem lhe roubar o ouro. São ludibriados. Nada encontram porque o solo se desfaz, o céu fica tempestuoso e o ar cheio de névoas. Esse ouro somente é dado a quem é virtuoso e desinteresseiro…

Há na vida de Martins Fontes o caso paradoxal da sua revolta contra os dominadores do torrão natal, da terra paulista, durante os dias trágicos de julho a setembro de 1932.

Sem trair a sua ideologia, solidário com os conterrâneos, esse povo de operários, na arrancada libertadora, Martins Fontes exaltava ao mor da Terra em que nascemos, concitando-nos a beijá-la em reverência aos mortos. E ao mesmo tempo animava a mocidade de São Paulo a defender a honra paulista, porque ser paulista era ser grande no passado, era morrer sacrificado pela terra, era rezar pelos Evangelhos de Rui Barbosa, era ser traído, era ser vencido, caindo de pé.

Confrangido, olhos no Cruzeiro, ele contemplava o luar em fios de prata. Entrincheirava-se, sob a metralha, no covil fundo e lôbrego, como soldado paulista. Não era possível separar São Paulo do Brasil. A cada estouro de morteiro da brutal guerra civil, Martins Fontes pensava no Rio de Janeiro que era o Brasil todo a quem, pelo rádio, dirigira notável e emocionante carta aos cariocas; odiava o militarismo e lutaria até morrer.

Repudiou exasperado o bombardeio aéreo de Campinas pela aviação, à noite, quando a consciência paulista se batia pela Pátria unitária e sagrada. Há um cravo vermelho que se chama "coração de São Paulo", que, no heraldismo, é o espelho das virtudes. Beijando essa flor, Martins Fontes rebatizou Campinas com esse nome – "Coração de São Paulo".

Martins Fontes escondeu o seu desespero num solitário fojo, sepultura entre areias, para fugir dos homens e desertar da vida enojado, onde não houvesse podruras, tal como o sábio e mártir Santos Dumont, ante a criminosa utilização do seu magnífico invento. Assim, longe do mundo, Martins Fontes preferiu ser um enterrado vivo a alguém que apodreceu em vida. Nunca se viu um povo como o paulista, conseguir tanto heroísmo como na arrancada de julho. São Paulo sempre foi pacífico, mas, súbito, levantou-se empunhando um fuzil, e pregou uma guerra santa.

A maior felicidade de Martins Fontes, sentindo-a em toda a pujança, era quando relembrava esses lugares belos do Estado de São Paulo, do sertão ao litoral, das praias perfumadas aos campos selvagens. Os múltiplos poemas sobre a nossa terra, dispersos, de inspiração diferente, formam um grande poema nacional, para o qual o saudoso poeta Heitor de Morais encontrou o termo próprio, sancionado pelo poeta Agenor Silveira – Paulistânia – porque os heroísmos dos paulistas de quatrocentos anos são comparáveis aos dos portugueses de oitocentos anos que Luís de Camões imortalizou em "Os Lusíadas".

Piratininga, Paranapiacaba, Jabaquara, simbolizam o sertão, a serra e a praia, em toda a grandeza e sublimidade das paisagens onde as cores e os sons se combinam magnificentemente.

Vimos do sertão. Encontramo-nos no alto da Serra. O automóvel parou na estrada que conduz a Santos. Sob o sol da tarde, há viva algazarra no bosque, como se houvesse festa. A primavera sorri e vai-se ao bosque ouvir cantar o pintassilgo. A selva esplende, arde a seiva, a água murmureja. Mar e céu, ao longe, envolvem o cenário formidando, e rasgam-se, fundindo a amplidão e dando a impressão de haver luz em catadupas.

Noite. Na Serra ouvem-se imprecações colérias, pavorosas. Coriscos esbraseados rechinam como chicotes de pontas. O frio confrange. A treva amedronta onde as onças roncam. O tufão atroa e a chuva tomba em bátegas. Os ventos se desencadeiam em estertores e os raios estalam, escancarando abismos e grotões. Serpentes de fogo atravessam as nuvens baixas, e a água, em cachoeiras, rola de fraguedo em fraguedo da serra.

A floresta se contorce desgrenhada, ulula aos arrancos, e, encontrando resistência ao seu furor, solta gargalhadas de desespero e loucura. Há por todos os lados sombras que se levantam e, pouco a pouco, tomam vulto agigantado e medonho. São abantesmas do cativeiro: o formigueiro, o tronco, a gargantilha.

Amanhece. Atalhos e desvãos da Serra espantam a negrura dramática que aterroriza. Do alto das serras, vê-se, na várzea, entre bananais, o clarão de uma alvorada – o Paraíso dos negros foragidos – a nobre terra a se espraiar em jardins cheios de flores, entrecortados de serpenteantes ribeiros, até a planícia infinita do Oceano, sempre subindo para entrar no céu: - Santos, a suprema joia do Brasil, o coração da Pátria, a terra que Martins Fontes amava com orgulho.

Desde menino, manteve a esperança de prestar à sua cidade a homenagem do seu reconhecimento. Quis moldar um livro de que escreveu o esboço numa conferência, sobre o modelo comovedor dessa obra incomparável pelo primor da afetividade, pela grandeza moral, pela graça do estilo, joia da raça latina, flor imortal da Itália – O Coração – de Edmundo de Amicis, poema da adolescência que lhe perfumou de saudade a vida inteira.

Dessa terra partiram as primeiras bandeiras; nela viveram Braz Cubas e Anchieta; ali nasceram Bartolomeu Lourenço de Gusmão e os Andradas; lá forjaram a independência e a república; finalmente, foi glorioso cenário da tragédia humana, epopeia de um povo, a abolição da escravatura.

Martins Fontes, quando a desoras atravessava a floresta da Serra, evocava, sob grande emoção, Paranapiacaba aos heroicos irmãos da sua terra, e, tal como os escravos foragidos, beijava a terra da liberdade, essa ninfeia a abrir, Santos, A Estrela d'Alva: - Jabaquara!