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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-I-13)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 111 a 115):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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I – CAVALEIRO DO AMOR

13

As praias paulistas são lindas e inigualáveis, são formadas de plainos unidos e curvas infindas, verdadeiros frutais solitários à beira-mar, avenidas, velódromos alvos e firmes. Ao longe, por trás de ilhéus e rochedos, cruzam-se paquetes e barcos à vela. A areia branca, subindo as rampas, circunda coqueiros e forma desenhos, marinhas e painéis. As praias são alegres e sonoras. Ali encontramos pitangas, ameixas, uvaias, amoras, cajás, carambolas, cajus, cambucás, araçás, abios.

No litoral, jazem as riquezas virgens de São Paulo, no futuro. Silêncio. A gente praiana bendiz, longe do mundo, esta vida. As tardes são maravilhosas, mas as noites, pelo seu mistério delirante, inspiram. Deviam dar-se às montanhas e praias santistas, onde as tangerinas são saborosas, os nomes de sábios, artistas, poetas e santos.

Martins Fontes se criou e viveu nestas praias, dormindo entre avencas, murtais e samambaias, como os pescadores, seus amigos diletos. As canoas trazem nomes galantes – A Flor das Queimadas, A Flor do Farol. As redes de arrasto secam estendidas. Quando ele morresse, queria que o sepultassem exposto, desnudo, no seio da areia, defronte do mar…

Os caiçaras do litoral paulista acolhem todos que venham, pelo mar, donde vierem e para onde forem, dão hospitalidade sem indagar o nome, e, no comunismo do seu pobre teto, dão a farinha e o peixe. A esta hospedagem, Martins Fontes agradecia deixando em paga a saudade ou versos de amor e lírios escarlates, fulvos de sangue e sol.

Nas praias paulistas encontram-se maravilhas que quem as viu uma vez, jamais há de esquecê-las. As itatengas da selvática Garapocaia que badalam ao sol, pedras que cantam aos embates das vagas, emitindo sons de tintinábulos ou redobrar de sinos. Em noites de lua, essas litofonias causam a sensação admirável da miragem de campo santo, onde chora a cantiga plangente do mar. E ouvimos as itagengas a troarem, desde o Zabumba ao Mongaguá, perto de Itanhaém. Os indígenas, quando se aproximava o inimigo, convocavam as tribos dos arredores batendo nessas rochas sonoras, calhaus sinfônicos que, assim, reagiam contra a invasão estrangeira nos templos florestais do Brasil.

A Praia Grande, junto ao barranco do Mongaguá, à meia-noite, ao luar, causa espanto. O monte do Itaguera avulta. A cascata do Mambu se acende. As árvores e bancos de areia parecem sombras esguias. A esplanada da praia se distende como um túmulo raso, em cuja extremidade se abre a porta do "Palácio Terrífico do Nada". O luar, ali, amedronta porque a sua faixa irreal e móvel sobre as ondas do mar lembra o caminho que nos leva ao caos insondável.

De madrugada em Itaipu, os pássaros cantam, acompanhando o toque de alvorada no quartel do Forte. Aos primeiros arpejos de luz, a araponga estridula, o sabiá cantaroleja. E sob essa orquestra surge, como dilúvio de ouro, o Sol, por trás da Ilha Porchat que existe em Santos, entre o Guarujá ao Norte e a Praia Grande ao Sul.

Martins Fontes se considerava nascido para pastor na Ilha Porchat verde e aromal. Se o tivesse sido, tomaria o amavio que lhe escaldasse a boca, e vaguearia por vales e vergéis, tocando flauta ao som do mar, cantando a beleza das ninfas e das rosas, com entusiasmo voluptuoso, e, como Fauno, forte, feliz, amoroso, seria tal qual um dia de sol de setembro no Brasil sob o céu azul do José Menino, único azul que o satisfazia.

O céu da sua praia lhe aplacava o anseio da sua paixão perpétua de subir até lá por escada de ouro e contemplar, no espaço, os multimilhões de miríades de sóis, assim como se sentia escravizado à terra natal por efeito do feitiço das águas de Itororó.

Diz a lenda, e em segredo Martins Fontes acreditava nas bruxas, desde o tempo da infância quando ouvia enlevado as histórias da Carochinha, que, como o Anhangabaú, a água de Itororó contém sortilégios infernais, assim como a horas encanecidas da noite o saci-pererê põe mandinga nas fontes dos Pilões, descerrando e purificando os mananciais, cuja linfa, ao descer a Serra de Paranapiacaba, inunda o Cubatão e rola no Saboó. Quem é tentado a beber a água do Itororó que possui, radiante, o milagre de dar saúde e conter alegria, jamais poderá viver fora de Santos. Assim aconteceu a Martins Fontes.

As borboletas, em Jurubatuba, amontoam-se na cascata. O sol reluz. A selva se espelha na água do rio. As borboletas, aos milhares, pelo rio acima, bailam tanto que até parece o vento a derrubar folhas, emaranhadas, como pétalas soltas de chuva que, em repuxos contínuos, em lugar de tombar, subisse em ondas.

E os beija-flores do Guarujá! Martins Fontes adorava os beija-flores que refletem os coloridos das pedras preciosas. No Guarujá, de abril a junho, quando o Pitangal fica verde-gaio, surgem os colibris, ao sol, enchendo a floresta de rebrilhos, como estrelas no céu.

E as garças! As garças de nevadas penas, no mês de abril, aparecem vindas do sul. Voando, ao longe, não se sabe se são espumas ou carneiradas do mar, ou garças a alvejar. As garças, aos volteios, repousam, cansadas, nos grotões como flocos de algodão. Vemo-las em Santos, no outeiro do Mar-Casado, junto dum banhado no Perequê. À beira dos precipícios, erguem-se numa perna só. Elas vivem entre algas, nos pauis, sem manchar as pernas e as asas, e são por isso um símbolo paulista. Toda a gente se deslumbra quando, a caminho do Perequê, contempla as águas do Mar-Casado. Os caiçaras contam que, na maré vazante, se vai a pé ao ilhéu, e que quem vê as águas juntas, será feliz no casamento, mas se as encontra separadas será infeliz. Martins Fontes confessou que apareceu lá na ocasião do afastamento das águas e por isso sofreu o efeito da vazante do mar no Perequê…

Os pescadores das nossas praias ficam alerta quando as gaivotas vêm dos confins do alto mar entrando pelo Monduba. São as anunciadoras da fartura que dará conforto às cabanas onde a criançada pula de contente. O peixe e as sardinhas são aos milhões, a granel. As gaivotas revoam e cantam, do alto, no azul, as grandezas do mar.

Também, nas ilhotas dos Alcatrazes, dentro das grutas, há águas medicinais, há minas lendárias de mercúrio e prata. A água da Ponta do Cavernão e a do Sino não servem para cozinhar feijão nem para fazer café, não cozinham nem se misturam. Enfim, deslumbrava a Martins Fontes a riqueza do litoral do Estado de São Paulo.

De todos os arredores de Santos, Martins Fontes preferia a Bertioga. O conjunto de acidentes da natureza, naquele recanto do litoral paulista, forma admiráveis e lindíssimas paisagens. A comprida ilha de Santo Amaro, situada entre o oceano Atlântico e o continente, começa ali em alto monte com matas verdes e virgens, onde o rio Bertioga deságua em larga foz.

O lugar da Bertioga se constitui de extensa e intermitente fila de casas numa única rua, à beira-mar, até o Forte que marca a fronteira entre o rio e o oceano. Além do Fortim colonial da Bertioga, como sentinela secular do pequeno povoado, desvenda-se a praia formosa que se some bem longe, até se perder de vista noutro recanto de igual beleza – Indaiá. O chão arenoso e róseo tem a tinta que roseia a escumilha do Indaiá. A espuma das ondas se acumula no seio das conchas e, quando lhe dá o vento, voa, parecendo um enxame de borboletas que se irisa ao sol de Indaiá, sob o balanço da aragem, rebrilhando no ar, pirilampejando.

O tumultuoso oceano ali é verde intenso e bravo. Os montes fecham o âmbito e parecem portais gigantescos. Lugar solitário onde só o mar estrondeia e blasfema. Mornidão. Maresia. O sol queima, rebrilhando na areia. Tudo é verde. O canavial do Camburé, no sítio da Baleia, evapora o cheiro a garoupa. Silêncio. Não se houve ruído algum. A luz envolve a mata, em clarões amarelos. De repente, de longe, um galo solta a clarinada do cócóricó. Ali ninguém devera estar sozinho, mas acompanhado de quem mais ama, apaixonadamente, escondidos entre pitangueiras, araçás, roseiras, sobre o jundu, na calmaria ensolarada do Indaiaçu, com a praia ampla, deserta, ao longe. É um encantamento de luz e simplicidade.

De léguas em léguas, veem-se canoas sob os sapés. Ao sol, secam redes de arrasto. Há bancos de pedra entre frutais cheios de jambo. Os cambucás e abios abundam. Perto, o pouso coberto de era.

Naquela enseada, um Poeta-Pescador, Vicente de Carvalho, fez o Indaiá. Martins Fontes jamais esqueceu o sonho de amor que aí tivera, durante umas férias de vinte dias de enlevo. Os dois amantes aí leram Rosa de Amor na doce calma daquele arredor idílico. Foi possivelmente o último episódio do romance do Cavaleiro do Amor.

Numa noite em que a lua prateava o mar e semeava estrelas pela areia, sentado na praia, saudoso e triste, depois que ela partiu, recordou aqueles dias, quando ela, de largo chapéu de palha, sempre distribuía pão-de-ló com leite aos passarinhos. Na lavoura, pelo receio da invasão dos pássaros, puseram o chapéu dela como espantalho. E os passarinhos voltavam contentes, julgando que a sua amiga voltara. Maria Rosa, moça bonita, cantava ao desafio com os rapazes da vila. No seu cantar, repetia quadras, toadas, glosas, dizendo seus sonhos, seus amores, e confessando que não sabia ler nem escrever, mas somente cantar.

O Poeta também entrava na roda para cantar canções fora da moda, do tempo do Onça – roda da morena, corvanha do caminho ou trovas praianas sobre motivos de Indaiá coberta de flores e de ninhos, onde encontrou aquela que sempre amou. Ela gostava de ir tomar banho no poço da cachoeira quando ainda brilhava a Estrela d'Alva e fazia frio. O Poeta, certa vez, viu-a se despir e mergulhar na água. Foi um delírio. Inspirado, fez versos de amor à Sereia do Indaiá.

Doutra vez, ambos foram à pesca. No alto mar foram colhidos pela tempestade, tendo saído com bom tempo. Chamou os companheiros de pescaria em seu socorro. No mar grosso, sob a fúria do vento Sul, teve receio de naufragar perto da laje dos Alcatrazes. A Gaivota bordejava desarvorada. Então, ele se concentrou, rezou à Virgem da Virgens. Subitamente, o temporal parou e o mar ficou manso. A Gaivota singrou e balouçou no mar suavemente. Passou a Moela, dobrou o Farol. A água era uma seda azul lisa, brilhando. A lua surgiu revestindo a noite de manto de ouro e veludo. O barco onde vinha Maricota chegou são e salvo.

Então o Poeta invocou Nossa Senhora que o fizesse feliz e o livrasse de todos os males, tornando-o simples como a gente santa do litoral. Assim viveu durante os vinte dias em Indaiá. Trabalhava desde a madrugada. Ia à pesca sem receio da chuva e da trovoada. Cultivava frutas. Cantava. Entre coqueiros, flava aos passarinhos com humor de quem nada lhe pesava na consciência. Longe da cidade, viveu com os praianos, desprendido do mundo e feliz.

Depois, Martins Fontes também partiu. Ele quis que o seu amigo Cambeva, índio sagaz, fosse até Santos para ver do Pico do Itupava a cidade de São Paulo, cheia de progresso e opulência, por efeito da eletricidade, com rádio, telefônio, televísio, o Raio X, o automóvel, o avião, coisas diabólicas que dão cabo da paz de espírito. Cambeva ouviu tudo sem falar. No fim respondeu que "seu doutor" voltasse a Santos, porque ele ficava, gostava mais da vida pacata da sua praia…