Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult008m36.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/27/14 11:19:30
Clique na imagem para voltar à página principal

CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-III-05)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 275 a 283):

Leva para a página anterior

Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

Leva para a página seguinte da série

III – CAVALEIRO DO IDEAL

5

A realidade da vida confrangia, aterrorizava o Poeta. Milhares são os que a dor da miséria consome. Um idiota de sobrenome prosaico come finos manjares. Ao ver a multidão de famintos, faz-lhe discurso, dizendo aos mendigos que, se eles sofrem, neste mundo, Deus, no Céu, os recompensará, segundo os preceitos da religião. E os pobres, engolindo a mentira, sentir-se-ão com os estômagos fartos de bons petiscos, assim iludindo a fome com pães da fantasia.

Profunda tristeza fazia chorar o Poeta e lhe afogava o coração. Ele sentia por todos os homens enorme e infinita piedade. À noite, com insônia, parecia-lhe ouvir o ciclone ululante das dores do Universo, e os soluços dos loucos, dos miseráveis e dos velhos nos hospitais. Os cegos, os surdo-mudos, os paralíticos uivam e rugem aterrorizados. As crianças e os doentes gemem e padecem. Entre tanta angústia e desespero, parecemos sepulturas. Ninguém mais acredita em promessas de outra vida melhor. Há em tudo preconceito e ambição cada vez maiores no mundo. Viver é sofrer. Todos sofrem. Além da dor não existe nada e a pior dor humana "provém da ideia de Deus".

Vimos dum túmulo – o ventre; na morte, voltamos ao ventre da terra – o túmulo. Viver é provir do impudor, provar a vilania, matar, consumir, comer para depois, morto, repenetrar "na unidade do não ser". Amar é outra tortura. Ideal ou estrela, depois de senti-la e adorá-la, condói vê-la reduzida a lodo. Com esse mal eterno, notamos o mundo cruel onde a vida é unicamente ganância, avidez, miséria.

Martins Fontes sofria e durante a noite, com insônia e febre, tinha visões e vinha para a janela contemplar a imagem da sua dor na fria e negra noite, onde, certa vez, viu o vulto da Musa, de rosa na mão, à luz do luar, e que, sorrindo, lhe falou: "Sou a esperança e a bem-aventurança; espera que brevemente a bondade será maior, a dor vencida, a vida mais suave, o homem melhor, a sociedade amparará a todos, de forma que deves ser generoso, bom com os pobres, porque amanhã todos terão abrigo, ar e luz, amor e pão, para que seja abolida a caridade ultrajante;. Bendita seja a tua piedade".

Assim ficou esperando a Aurora, ao luar. E sonhou que os continentes, Europa azul, África escarlate, América verde, Oceania opala, Ásia amarela, em conclave, discutiam o destino dos homens descontentes, dando, piedosamente, razão aos sofredores. A Ásia, então, prometeu dar ventura à humanidade, sobrando a Revolução ou a Redenção que já, célere, galopava sobre a Rússia e em breve invadiria a Europa para salvar o mundo. A dor da Grande Rússia o fazia chorar. Ninguém pode descrever o horror que provoca ver sangue sobre a neve. É preferível morrer, porque a morte é como o luar na estepe inspiradora – a brancura da paz espelhando o não ser.

E a visão da miséria humana persistia: quatro criancinhas, nuas e pálidas, vão pelas ruas, sem pão. Cruel e triste quadro. Martins Fontes ficava retransido de dó e piedade por esses órfãos. Quereria ser a fada Bombom para protegê-los; a estes e às crianças que são roubadas nos Estados Unidos, cuja infâmia ou a cegueira de tamanho crime horroriza. A sua torpeza inclassificável fere a humanidade. A fome do dinheiro, a ganância de aventureiros se amplifica de forma trágica neste máximo crime dos homens, que é a desonra da Maternidade e a afronta que se perpetrou contra a inocência.

É belo ver as crianças, as raparigas, os poetas e os heróis, as mães e os sábios, mas o que mais consola o coração da humanidade é ver um punhal no peito dum tirano ou dum assassino.

Eis agora um episódio da vida de Louise Michel, contado por Henri Rochefort, acontecido numa alfândega francesa. Louise Michel estava descalça porque dera os sapatos a uma criança doente, e trazia um saco contendo somente um gato cego. O soldado, depois de interpelá-la, prendeu-a, reconhecendo nela a anarquista que foi condenada às galés porque roubou um pão.

Em Lourdes, alta noite, o Poeta encontrou a dormir numa porta, ao frio, uma velhinha, abandonada, vítima do egoísmo humano. Ele a levantou e ela pousou a face fria no seu ombro. Seria Louise Michel?

Também os mineiros e os faroleiros inspiram compaixão porque vivem nas trevas. Os mineiros, muitas vezes, ficam soterrados quando desmoronam as galerias recém-abertas. Ao pensar nos mineiros, Martins Fontes também queria ser sepultado sem féretro, para do seu húmus florir, em ouro dos ipês, o seu coração. Devemos, pois, honrar os ofícios pelo culto aos operários que se esfalfam no trabalho e produzem benefícios imensos. Eles elevam, pedra a pedra, edifícios, fábricas, hospitais, escolas, com esforço extraordinário e cheios de amor. Esta dedicação, ao fim do dia, deve nos disciplinar e nos dar um consolo comunal. Kropotkine aconselhava que quem possuísse emprestasse e quem soubesse ensinasse.

Os profetas, sobre as montanhas do Líbano, em concílio, ao som de harpas, proclamavam, em vociferações cruentas, que o homem seria pior que o tigre destruidor, matando para viver; a terra seria sempre o planeta da fome onde somente se ouvirá uma pulsação e nada mais, transformando-se tudo em fumo; para o homem será melhor o suicídio que impor o sofrimento a alguém; durante séculos, a luta homicida se travará sem que ninguém amaldiçoe a vida; a própria Terra, cansada, se extinguirá no abismo do além.

Daniel, para decifrar o enigma, na orgia moderna, da tormenta próxima, traduziu-o assim: a sociedade avarenta, com o estigma na face marcado a fogo, se abeira do seu fim, pois os seus dias estão contados. Realizar-se-á a profecia para os Baltasares modernos, arrastados nas ondas do mar revolto, quando a tempestade assole o planeta.

Martins Fontes notou que a tempestade se aproximava e ficou à espera sem nada o abalar. O seu orgulho imutável se encastelava sobre um penhasco solitário, acima das convulsões. O tufão rugirá, o mar poderá se encrespar furioso. Martins Fontes, Cavaleiro do Ideal, queria encarar o temporal e resistir à borrasca, de pé, só e resoluto.

No Brasil se operará completa transformação. De gruta em gruta, de serra em serra, raivará a borrasca, trovejando. O mundo se convulsionará. E a nossa Pátria o acompanhará na mesma revolta. Martins Fontes seria apenas a sentinela que perscrutou os seus anseios e cantou as suas glórias, como voz da Liberdade, eco da humanidade, clarissonância do Brasil. Somos povo. Bendizemo-nos em pertencer à multidão diante da qual Martins Fontes se inclinava e se comovia. Dela surgirá o novo mundo. Como partícula dela, Martins Fontes sentia que a prepotência o espedaçava mas não o demovia. Envolveu-se na contenda, a clarinar, ressangrando às pedradas e às vaias. Todos por um, e um por todos, unidos e solidários, abominando a caridade e a piedade.

Mas a revolução estalou. Vitória. O herói imbecil é entronizado pela canalha. Pilhou. Matou, Prostituiu. A infâmia castiga a inocência, metralha a velhice. Horror. Execração. Os generais transformaram o homem bom em assassino. Depois da vitória, ainda sob o estortegar da matula mentirosa e intrigante, vociferando sem defesa – a Arte divina ressurgirá das cinzas revoltas, ascenderá na eternidade, será como o azul do céu, o infinito do pensamento livre, "porque Urânia, a Beleza, é a Liberdade". Só devemos considerar herói quem faz que a razão se ilumine, e que como almas apostolares vivam para outrem, tais quais Proudhon, Réclus, Kropotkine.

O ideal do mundo futuro, como o imaginava Martins Fontes, surgirá quando virmos esplender a paz entre os infelizes. Os homens, confraternizados, terão pão, teto, conforto e trabalho na terra, como num grande lar. Neste sonho, o Poeta vê tudo branco, igual ao luar de neve lirial: a água cercando os bosques e os jardins, mármores e esculturas rindo entre flores. O templo da deusa higiene será de alvor puro e imortal, e o Mundo bom. Martins Fontes sentia que não nascesse em tal época. As rosas, como na Grécia, cobrirão as fontes inspiradoras dos pensadores e dos heróis. Os artistas e as namoradas darão entrevistas, em confidências fraternais, pelos vergéis, entre flores.

Tudo será graça, harmonia,
Serenidade, amor, poesia!

Por esta ventura, haverá tanto esforço e tormento. Esta utopia alegrava Martins Fontes que, então, invocava os poetas, pássaros do amor, a cantarem os espetáculos futuros. Ele ouvia, vibrando, a orquestra deslumbradora da Anarquia, e o tinir do seu clarim, e sonhava que, numa noite, as estrelas caíam tais quais chuvas de ouro. Assim terminariam as fortunas, para, na comunhão da natureza, sorrir a paz universal.

O poeta, a cada estrela, a se esfolhar, suplicava o amparo dos órfãos, a fim de que, sem a caridade, as crianças tenham pão. Um dia, teremos a bênção de ouro das estrelas, e a realidade anárquica, conforme ensina a astronomia, esplenderá na Terra que se incendiará quando o sistema planetário findar em chuva de ouro, num dilúvio de estrelas.

E o sonho continua. Nas futuras cidades, o ar será o elemento onde voejarão aeroplanos, aeronaves, balões, suspensos a dez mil metros. O passado será um abismo. Os preconceitos estarão mortos. A purza, livre, esplenderá no Belo sobre a natureza. O homem será dono da distância e da radiotelepatia. Gozaremos de todos os climas. Haverá jardins suspensos na primavera. Os palácios refulgirão entre clarões violáceos. As namoradas se debruçarão das balaustradas para ouvir os troveiros em serenatas, ao luar, à sombra dos jasmineiros. Rondando-se o espaço, ver-se-á mais de perto a lua, onde poderemos aportar, conforme o imaginou Júlio Verne.

A ciência chegará um dia à perfeição de descobrir a essência de que se compõe o organismo. Consultaremos o químico, como a um médico, para ver, no extrato, o que somos e o que seremos, demonstrando qual a matéria específica do nosso corpo. Para ser jasmim, deveremos ter carbuneto oxinítrico de hidrogênio coloidal. Os leucântemos serão crisântemos. Os corações dos poetas fulgirão em jardins magníficos. Os encéfalos de artistas florirão nos parques, ao lado dos rosais. A carne e a boca das namoradas serão rosas vermelhas. Quantos quererão ser glicínias ou cravos, mas nãopoderão senão se transformar em repolhos, chicóreas, pepinos, rabanetes, conquanto usem os recursos dos elixires da beleza! Os químicos se desiludirão porque a Natureza não permite que seja lírio quem nasceu para couve!

Em breve, ouviremos a humanidade, super-humanizada, abençoar a Anarquia. No futuro seremos menos tristes e desgraçados. A ciência terá finalizado as conquistas na evangelização da batalha vencida. Louvar-se-á a histologia que o Instituto do Cérebro, em Moscovia, acaba de inovar aplicando num cego de nascença os olhos dum morto, com que lhe renovou a visão. É a luta contra o Nada. É a humanidade a se eternizar. A música dará a sugestão de outro mundo, consolando-nos dos sonhos que a vida não realizou. A música será sempre o sonho infinito e o alívio do atormentado coração humano. A harmonia das notas fará a harmonia dos povos, na comunhão do beijo. Enfim, a música será a religião do futuro. O homem alcançará, pela clemência, a perfeição moral, isento das incertezas da Terar e de ser militar, magistrado e padre.

Quando a ciência for consciência sem ludíbrios, o homem conseguirá a transcendência da transubstanciação beethoveniana. Nessa região feliz, no exercício da Justiça do Direito, sentirá que o prêmio da virtude é fazer a justiça, e o castigo do crime é praticar o Direito.

E o Cavaleiro do Ideal fez profissão de fé. Como Poeta anarquista, sonhou a humanidade finalmente livre, depois da máxima conquista e cheia de sangue. A própria música, sua maior esperança, desencantou-o. E rolando a escada, degrau a degrau, sofreu como Bakounine. O mal é a vida. A dor do pensamento finalizará pelo aniquilamento, porque nos aterra a fome perpétua. Sem espírito de vingança ou maldade, e desiludido de ser feliz, ele destruiria a Terra. Nada era e nada tinha. Vivia a imaginar o consoo de dar continuamente. Sonhava o prazer de ser raio de ouro e harmonia em cada coração e em cda lar. Dar a todos irrefletidamente, não olhando a quem, distribuindo o seu tesouro astral, a imitar o sol, símbolo do amor materno, multiplicado sem se dividir.

Mas dar é ineficaz porque obriga a ser grato a quem dá. Melhor será que tudo seja de todos. Esta moral é diferente da caridade egoísta do crente que espera o prêmio. Enterrem-se os embustes nos túmulos da estultície; e levante-se o vento irreligioso das novas ideias. A luz, o ar, a terra, a água, provam que a vida infinita é um bem comum.

Martins Fontes viveu na antemanhã alvissareira que, no final da vitória, redimirá a Humanidade. Assim, ele teve a visão de que o rosal da justiça vai abrolhar da terra fecunda. Essa batalhava o apaixonava. Já via à tona o mistério do iracundo pélago, e sonhava, no realizar-se a Anarquia, o sol do amor pacificando o mundo. Amanhecia e o sol encheu a terra de luz, mas julgando inútil o sacrifício na luta, semelhante a gota de água, o Cavaleiro do Ideal continuava a fazer versos na soledade "ouvindo estrelas, cultivando rosas".

E o momento? O dever? Então entrava a cantar no turbilhão da luz, porque a humanidade o conduzia. Dessa forma, uma gota de água se encorpava ao mar e obrigava a crescer em furor e a extravazar. Depois do tumulto, voltava à angústia, tragando a dor da vida, e ansiava evaporar-se, como a gota de água, e sonhava, tendo atingido à máxima descrença. Em ardente aspiração niilista, a Deliverança.

Também sonhava que ouvia a tuba da Liberdade e a multidão a cantar, e a trombeta da redenção a retroar na orquestra planetária. Clarins, tambores, trombones, clarons e sinos cantarão, rufarão, longitroarão, clangorejarão, dobrarão as glórias da Anarquia. O homem poderá viver sem peias, sem preconceitos, sem crenças, e livre, na comunhão da Humanidade, tornando a terra melhor que o céu, porque a única vida que existe é esta. Fazendo-a boa, pelo nosso aperfeiçoamento, ela será melhor. Combatamos o medo e a hipocrisia.

O supremo ideal da Anarquia e a aspiração da Humanidade livre no seio do Universo, com pão e teto para todos, sem mentiras, sem enganos, nem ódios, sendo a Terra a eterna e imensa Pátria comum, onde brilhe o afeto que abençoa, e onde nasçam flores e crianças ao sol do amor. Todos, poetas, filósofos e artistas, são anarquistas como Platão, porque a Beleza é a liberdade. E, então, o Cavaleiro do Ideal ergueu um hino ao Primeiro de Maio, data que representa o Ideal, porque nesse dia todos terão pão. Sobre a terra nascerá o sol para todos. Será o dia da Humanidade.

No futuro, todas as glórias da ciência darão prazer e bondade à nossa existêncai, porque as enfermidades findarão. Religiões e preconceitos morrerão. A terra será um céu aberto, sempre azul, porque a Anarquia é a ausência da autoridade, e dentro dela tudo será luz. A Bakounine e a Kropotkine alçarão um altar. A telegrafia sem fios transmitirá: Viva a Anarquia! Os heróis brindarão a Paz que une os mundos.

Martins Fontes tinha fé na verdade deste sonho, porque amaremos a Natureza como um Deus, da mesma forma que em seus versos de amor, recalcada a saudade e sendo anarquista, se batia por Teodoro de Banville.

A vida de Martins Fontes foi um contínuo entoar de hinos à bondade e à beleza da mulher, porque a julgou sempre um anjo. Ela inspirou a criação da imagem da Virgem-Mãe, tornando-a caridosa. O seu coração de Poeta e Cavaleiro não queria vê-la escrava e sim livre, isenta de grilhões, conforme as leis da Natureza, auferindo os seus direitos na luta, sem superstições, igual ou maior do que nós pelos milagres da dedicação.

Ele se entristecia quando penava que existiam mulheres formosas que se casaram sem amor com burgueses ricos. Tinha pena de não poder libertá-las e concitava os poetas que têm namoradas enclausuradas, a libertá-las, lutando pela anarquia, pelo amor livre, pela beleza.

Martins Fontes se deslumbrou com o amor de Olga Meireles a um grande socialista. Aos dezenove anos, sofrendo, sendo mãe e idealista que quer renovar e ilustrar a sociedade, é respeitada e benquista por todos. Se ele um dia a visse, lhe desfolharia um lírio aos pés ou lhe beijaria as mãos, pelo amor sublime que ela dedicava ao Cavaleiro da Esperança, àquele que nada quis e tudo terá, lutando impavidamente, em penitência incansável, pelos que sofrem, àquele que sem malquerenças nem remorsos, puro e belo como Jean Jaurès, ergueu a lança nas Américas por um Ideal, contar a doutrina de Monroe ou contra a Tríplice Aliança, destruindo velhos edifícios e reconstruindo novos, e a quem se esculpirá uma estátua semelhante à que se erguerá um dia a Silvério Fontes.

E, por estes ideais, Martins Fontes idolatrava o México, que era a vanguarda e o símbolo da liberdade na América, formando alta civilização pelos sonhos anárquicos e pelos reptos artísticos. Apesar do seu culto aos idealistas, Martins Fontes não deixava de ridicularizá-los quando se excediam. Para esses, ele traçava o perfil do pseudo-idealista ingênuo que sofre ao ver a maldade humana, a injustiça social, a falta de pão, a desgraça, e que se desespera contra a sociedade burguesa. No meio desta exaltação e para se distrair, aos domingos, em casa, faz bombas de dinamite. E todos são assim, mais ou menos. Não obstante, Martins Fontes louvava a missão de Kropotkine, um dos verdadeiros idealistas, espalhando o bem das suas ideias.

Kropotkine guiou a Martins Fontes pelos atalhos, à beira dos abismos, nas montanhas altíssimas do Ideal. Em reconhecimento, Martins Fontes quis imortalizar a vida do genial filósofo. Imaginou, durante trinta anos, a música da ópera consagradora. Depois, intentou uma peça teatral em versos alexandrinos emparelhados, à moda francesa, heroica, vitorial. Modificou o plano para um romance-biografia, à feição romântica, de justiça social, de propaganda libertária, de fraternidade cósmica.

Ante o pessimismo e indiferença habitual dos amigos que o aconselhavam a desistir da audaciosa e perigosa empreas, ei-lo a arquitetar uma fita cinematográfica, à americana ou à russa, mostrando tudo, desde as cadeias dos prisioneiros na Sibéria até a vileza dos funcionários da plutocracia, isto entre cânticos e soluços, em reproduções fidedignas de paisagens e aspectos morais. Grandiosa tentativa super-humana. Mas esbarrou no Impossível.

Desesperado, resolveu escrever um poema, como quem cumpre dever sacrossanto, para si unicamente, e este sonho da sua adoração seria a sua última Flor. Traçou o esboço da epopeia em três atos, cujo final se passa cinquenta anos depois da fuga de Kropotkine da prisão de Pedro e Paulo. Terminara a hedionda Grande Guerra de 1914. Os beligerantes assinaram o armistício em 1918. Na Rússia, entre os horrores da guerra civil, estalara a Revolução Social. Pedro Kropotkine podia voltar à terra natal, onde assistiria ao quadro sanguinolento do povo, a se debater contra a miséria, a escravidão e a fome, herança de secular tirania e consequência dos atentados à dignidade humana e das infâmias da sociedade e da aristocracia tzarista, por meio do roubo, do trabalho não pago, da exploração do homem pelo homem.

Pedro Kropotkine, decrépito octogenário, encontra a princesa Mirski, velha e trôpega, e ambos realizam os esponsais místicos com o nascimento simbólico da sua filha, a Aurora! A Liberdade!

A epopeia termina com delirante apoteose à Rússia livre, à Terra, Pátria comum! Nasce o sol para todos. Pedro Kropotkine morreu em Dmitrov a 8 de fevereiro de 1921. Martins Fontes, invocando Bayard, paladino das liberdades, lamentou a morte, na Rússia, do seu continuador, de quem, neste século medíocre, de preconceitos e fortunas privilegiadas, batalhou durante sessenta anos as velhas fórmulas, pugnou, sofrendo como ninguém, contra as injustiças dos prepotentes.

E Kropotkine, alma sem par, pioneiro irreprochável, companheiro de Bakounine e de Tolstoi, era o nome do protetor e padroeiro do Poeta. Tragédia! A música de Glinka! O gozo no sofrimento, o prazer na tortura, o martírio no misticismo, a estepe enluarada, branca e cheia de miragens, de fantasmagorias álgidas. O luar aterrador da Rússia imensa. Figuras desarticuladas, estafermos humanizados, duendes, gnomos, larvas das retortas da criação, abortos dos abismos pelágicos, do fundo do mar sinistro, das grutas voraginosas.

No meio deste paroxismo, o Ideal russo é a conciliação universal! A missão russa é tornar o homem cidadão dos Estados Unidos da Terra. Os interesses comuns da Humanidade serão dirigidos pela Rússia. Dela virá a transformação social A Grande Rússia! País do horizonte, as miragens cerebrais! Os seus revolucionários, niilistas e anarquistas, são: Tolstoi, conde, aristocrata de raça, de sangue e de espírito; Miliutine, senhor de vastos domínios, servos e minas de platina; Tourgueniev, gentil-homem, proprietário de gentil-homerias; Hartzen, herdeiro de patrimônios; Bakounine, engenheiro militar, oficial da burguesia capitalista; Lavrov, professor de alta matemática; Rospotchine, dono dum condado; finalmente, Pedro Kropotkine, príncipe! Todos pregaram as ideias libertárias, se sacrificaram, se martirizaram porque viam sofrer muito, horrendamente.

Martins Fontes se identificou com o ideal que o acompanharia até a morte. Queria escrever este poema. A vida tumultuária, quase dolorosa, entre sofrimentos morais inconcebíveis, não o consentiu. As contingências das necessidades materiais, imperiosas, inadiáveis, do seu lar materno; a perda de alguns amigos queridos, pelo falecimento, pela loucura; a situação triste de outros, nos cárceres úmidos e escuros das cadeias públicas, por suas ideias e sentimentos; as iníquas ingratidões de certas instituições hospitalares, para as quais prestou relevantíssimos serviços, pagos com placas póstumas; o horror pelo futuro dos seus camaradas, ante o fluxo indomável de ódios reacionários, assassínios, escravagistas: tudo isso causou a Martins Fontes profundo quebrantamento da saúde e lhe trouxe a dúvida de poder se entregar ao trabalho do seu poema predileto, obra máxima de sentido universal. Encarregou-o a outro camarada, do qual tantas vezes dizia e depois deixou escrito:

- Por que será que um escritor genial, como Ferreira de Castro, que escreve com o próprio sangue, postejando a carne, transfundindo a vida, não quis ainda gravar num livro imortal a História da Vida de Pedro Kropotkine? Apelo. Aguardo. Terei, ainda em meus dias, esse prazer, esse consolo, de ver a bendição da compassividade, do Humanitarismo? Espero, mas, como sempre, ansiosíssimo.