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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETA DO MAR
Vicente de Carvalho (11)

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Poemas e canções de Vicente de Carvalho, publicados pelo site Artefato Cultural (consulta em 28/1/2009):
 
VELHO TEMA:

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
 
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
 
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
 
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
 
II
 
Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.
 
Quero que meu amor se te apresente
- Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: - risonho e sem cuidados
Muito de altivo, um tanto de insolente.
 
Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.
 
Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.
 
III
 
Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.
 
Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...
 
Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo as que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:
 
Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.
 
IV
 
Eu não espero o bem que mais desejo:
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades de sobejo.
 
O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.
 
Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.
 
Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
Põe-se a sonhar o bem que não existe.
 
V
 
“Alma serena e casta, que eu persigo
Com o meu sonho de amor e de pecado,
Abençoado seja, abençoado
O rigor que te salva e é meu castigo.
 
Assim desvies sempre do meu lado
Os teus olhos; nem ouças o que eu digo;
E assim possa morrer, morrer comigo,
Este amor criminoso e condenado.
 
Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito
Uma ventura obtida com teu dano,
Bem meu que de teus males fosse feito”.
 
Assim penso, assim quero, assim me engano...
Como se não sentisse que em meu peito
Pulsa o covarde coração humano.
 
VI
 
“Lembra”! diz-me o passado: “Eu sou a aurora
E a primavera, o olhar que se enamora
De quanto vê pelo caminho em flor;
Para o teu coração cansado e triste
E’ recordar-me – o único bem que existe...
Eu sou a mocidade, eu sou o amor”.
 
“Vive”! diz-me o presente. “Alma suicida,
Louca, não peças à árvore da vida
Mais que os amargos frutos que ela tem;
Deixa a saudade e foge da esperança,
Faze do pouco que teu braço alcança
O teu mesquinho, o teu único bem.”
 
“Sonha”! diz-me o futuro: “O sonho é tudo,
Eu sobre as tuas pálpebras sacudo
A poesia da ilusão!... sonha, e bendiz!
Eu sou o único bem porque te engano,
E o desgraçado coração humano
Só com o que não possui é que é feliz”.
 
Eu ouço os três, e calo-me: desisto
De quanto me prometem, porque nisto
Todos se enganam, todos, menos eu:
Beijo dos lábios da mulher amada,
O único bem és tu! Nem há mais nada...
E tu és de outro, e nunca serás meu!

MENINA E MOÇA

Tu, que és quase uma criança,
E que enlevada sorris
A' tentadora esperança
De ser amada, e feliz;
 
Sê formosa; entre as formosas
Reina e brilha, se puderes:
Que a beleza nas mulheres
É como o viço nas rosas.
 
Sendo bonita e mais nada
Cumpre a mulher com fulgor
Sobre a terra iluminada
O seu destino de flor.
 
Sê bondosa; entre as melhores
Sê a melhor, se puderes:
Que a bondade nas mulheres
É como o aroma nas flores.
 
Meiga, formosa, querida,
Ama e sê amada: o amor
Na areia solta da vida
Brota roseiras em flor.
 
Serás feliz? Ai, não queiras
Ser feliz: às mais ditosas
Brotam mágoas entre as rosas
Como espinhos nas roseiras...
 
Tu, que és quase uma criança
E acreditas quanto diz
A enganadora esperança
De ser amada e feliz,
 
Sê resignada: a roseira
Que mais viça e mais prospera
Dá rosas - na primavera
E espinhos a vida inteira...

PEQUENINO MORTO:

Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino, levam-te dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro...
            Pequenino, acorda!
 
Como o sono apaga o teu olhar inerte
Sob a luz da tarde tão macia e grata!
Pequenino, é pena que não possas ver-te...
Como vais bonito, de vestido novo
Todo azul celeste com debruns de prata!
Pequenino, acorda! E gostarás de ver-te
            De vestido novo.
 
Como aquela imagem de Jesus, tão lindo,
Que até vai levado em cima dos andores
Sobre a fronte loura um resplendor fulgindo,
- Com a grinalda feita de botões de rosas
Trazes na cabeça um resplendor de flores...
Pequenino, acorda! E te acharás tão lindo
            Florescido em rosas!
 
Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino levam-te dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro...
            Pequenino, acorda!
 
Que caminho triste, e que viagem! Alas
De ciprestes negros a gemer no vento;
Tanta boca aberta de famintas valas
A pedir que as fartem, a esperar que as encham...
Pequenino, acorda! Recupera o alento,
Foge da cobiça, dessas fundas valas
            A pedir que as encham.
 
Vai chegando a hora, vai chegando a hora
Em que a mãe ao seio chama o filho... A espaços,
Badalando, o sino diz adeus, e chora
Na melancolia do cair da noite;
Por aqui, só cruzes com seus magros braços
Que jamais se fecham, hirtos sempre... É a hora
            Do cair da noite...
 
Pela Ave Maria, como procuravas
Tua mãe!... Num eco de sua voz piedosa,
Que suaves coisas que tu murmuravas,
De mãozinhas postas, a rezar com ela...
Pequenino, em casa, tua mãe saudosa
Reza a sós... É a hora quando a procuravas...
            Vai rezar com ela!
 
E depois... teu quarto era tão lindo! Havia
Na janela jarras onde abriam rosas;
E no meio a cama, toda alvor, macia,
De lençóis de linho no colchão de penas.
Que acordar alegre nas manhãs cheirosas!
Que dormir suave, pela noite fria,
            No colchão de penas...
 
Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino levam-te dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro...
            Pequenino, acorda!
 
Por que estacam todos dessa cova à beira?
Que é que diz o padre numa língua estranha?
Por que assim te entregam a essa mão grosseira
Que te agarra e leva para a cova funda?
Por que assim cada homem um punhado apanha
De caliça, e espalha-a, debruçado à beira
            Dessa cova funda?
 
Vais ficar sozinho no caixão fechado...
Não será bastante para que te guarde?
Para que essa terra que jazia ao lado
Pouco a pouco rola, vai desmoronando?
Pequenino, acorda! – Pequenino!... É tarde...
Sobre ti cai todo esse montão que ao lado
Vai desmoronando...
 
Eis fechada a cova. Lá ficaste... A enorme
Noite sem aurora todo amortalhou-te.
Nem caminho deixam para quem lá dorme,
Para quem lá fica e que não volta nunca...
Tão sozinho sempre por tamanha noite!...
Pequenino, dorme! Pequenino dorme...
            Nem acordes nunca!

A INVENÇÃO DO DIABO:


Deus, entregando ao Diabo a metade do mundo
Deu-lhe a parte pior, como era de razão:
E, para arrecadar seu patrimônio, o Imundo
Foi forçado a varrer todo o cisco do chão.
 
Tomando para si todo o imenso tesouro
Da Bondade e da Luz, do Amor e da Harmonia,
Pode o Senhor fazer esbanjamentos de ouro
Nas estrelas da noite e no esplendor do dia.
 
Pode esparzir na areia as pérolas do orvalho,
Marchetar de rubis a asa de um beija-flor,
Fazer a primavera – e pôr em cada galho
O gorjeio de uma ave e o riso de uma flor...
 
À Satanás, porém, coube em partilha a treva,
O ódio como prazer, como covil um poço;
E ele lá no seu reino escuro a vida leva
De um cão magro a que dão muita pancada e um osso.
 
E, enquanto a mão de Deus, abrindo-se, semeia
Astros de ouro no céu, messes de ouro no pó,
Satanás, furioso, a mão sacode, cheia
De lepra e maldição como o punho de Jó.
 
Só uma vez Satã respirou satisfeito,
E arregaçou-lhe o beiço um pérfido sorriso,
Quando, acaso, ao sair do seu covil estreito,
De repente se achou dentro do Paraíso.
 
A primeira impressão que teve foi de inveja:
Daquele estranho quadro o imprevisto esplendor
Só lhe pôde arrancar à boca malfazeja
Uivos de cão ferido, imprecações de dor.
 
Mas de repente, como o corisco clareia
O tenebroso céu nas borrascas de Agosto,
Uma idéia triunfante, uma sinistra idéia
Fuzilou-lhe no olhar e iluminou-lhe o rosto.
 
Sobre um macio chão todo em musgos e rosas,
Eva, formosa e nua, adormecera ao luar:
E sobre a alva nudez dessas formas graciosas
Satã deixou cair um desdenhoso olhar...
 
Mas num sonho talvez de coisas ignoradas,
Num desejo sem alvo, imperfeito e indeciso,
Eva os lábios abriu – e abriram-se, orvalhadas
De um suspiro de amor, as rosas de um sorriso.
 
Espantado, Satã viu que esse mármore era
Animado e gentil, ardente e encantador;
Como um resumo viu de toda a primavera
Na frescura sem par daquela boca em flor.
 
E foi somente então que o Príncipe da Treva
Imaginou o Amor furioso e desgrenhado,
E resolveu fazer dos róseos lábios de Eva
O cálix consagrado às missas do Pecado.
 
Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler...
Entreabriu-os Satã; e enchendo-os de veneno,
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher.

SUGESTÕES DO CREPÚSCULO:

I
 
Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
     A voz do mar.
 
Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.
 
Tudo amortece; a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto...
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.
 
Domada então por um instante
Da singular melancolia
De entorno – apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.
 
Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
      A voz do mar?
 
II
 
Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz;
 
Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;
 
Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura,
Tanto beijar como morder...
 
Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É todo fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.
 
Sonha a nudez: brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.
 
Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde - e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito:
 
No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.
 
E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...
III
 
Mais formidável se revela,
E mais ameaça, e mais assombra
A uivar, a uivar dentro da sombra
Nas fundas noites de procela.
 
Tremendo e próximo se escuta
Varrendo a noite, enchendo o ar,
Como o fragor de uma disputa
Entre o tufão, o céu e o mar.
 
Em cada ríspida rajada
O vento agride o mar sanhudo:
Roça-lhe a face, com o agudo
Sibilo de uma chicotada.
 
De entre a celeuma, um estampido
Avulta e estoura, alto e maior,
Quando, tirano enfurecido,
Troveja o céu ameaçador.
 
De quando em quando, um tênue risco
De chama vem, da sombra em meio...
E o mar recebe em pleno seio
A cutilada de um corisco.
 
Mas a batalha é sua, vence-a:
Cansa-se o vento, afrouxa... e assim
Como uma vaga sonolência
O luar invade o céu sem fim...
 
Donas do campo, as ondas rugem;
E o monstro impando de ousadia,
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem.
 
IV
 
A alma raivosa e libertina
Desse tenaz batalhador
Que faz do escombro e da ruína
Como os troféus do seu amor;
 
A alma rebelde e mal composta
Desse pagão e desse ateu
Que retalia e dá resposta
À mesma cólera do céu;
 
A alma arrogante, a alma bravia
Do mar, que vive a combater,
Comove-se à melancolia
Conventual do entardecer...
 
No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral.
 
E pelas praias aonde descem
Do firmamento – a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;
 
Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador.
 
*
 
Escutem bem... Quando entardece,
Na meia luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar...

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