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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 11

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 15 de junho de 1938 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Chico Doce

Em 1826 a capital da Província ainda não tinha imprensa; no entanto, a povoação de Santo Amaro já contava o seu jornal – era nhá Trindinha. Os que a ela se referiram em sua correspondência pintam-na como uma mulher sem idade, de quem só se viam os olhos vivos a espiarem pelo buraco do xale, e as canelinhas espertas debaixo da saia de baeta vermelha. Passava o dia inteiro a mexericar de uma casa para outra.

- Bastarde prá meceis…

- Bastarde, nhá Trindinha.

- Não vê que…

Depois desse exórdio, a conversa se encaminhava. A velha sabia tudo: os dias santos do calendário, os próximos festeiros do Rosário, do Espírito Santo e de Santo Amaro, os preparativos que se iam fazendo nesta e naquela casa para tais pomposas festas, os nascimentos, os batizados, os namoros, os noivados efetivos e os que se desenhavam no porvir; sabia também das desavenças de família, a situação financeira de muita gente, as ligações que só podiam ser contadas de boca para ouvido; informava a vila sobre os que se achavam doentes, os que tinham chegado ou partido de viagem, os negócios de terras, de escravos ou de casas; dava indicações sobre o paradeiro dos negros fugidos; estava ao par das promessas feitas, das pragas rogadas, dos trajes encomendados nas costureiras de São Paulo.

Nhá Trindinha completava o seu serviço com um completo conhecimento de medicina caseira: tinha sempre em casa folhas de arnica, de guaco, de laranjeira, de sabugueiro, de abacateiro, de goiabeira, barba-de-milho, quebra-pedra, cipó-sumo e mão-de-vaca. Acrescente-se à sua botica dentes de onça e de jacaré, olho-de-cabra, figa de guiné e aquele misterioso "jasmim-do-campo" que a mezinheira, com um sorriso banguela, servia às crianças pintadas de sarampos. Sabia também orações proibidas, para diversos fins; cortava quebranto, curava espinhela caída e, quando era preciso salvar alguma alma em pena, aproximava duas pessoas que se queriam bem…

Com tantos predicados, essa velha era recebida em todas as casas e podia mexericar à vontade, mesmo porque, segundo ela dizia com um sorriso mau, pobre de quem lhe caísse no desagrado:

- Por um tantico ansimzinho eu sórto a tropa!

Certa manhã, nhá Trindinha saiu da igreja e, mesmo em frente, tomou o caminho da propriedade de mestre Chagas. Esse homem tinha uma escola primária particular na casa da vila, à Rua Direita, e morava com os filhos, a escrava e agregados na casa da chácara, a uns trezentos metros do pátio. A estrada era estreita, ladeada de mato alto e ia dar numa vala orlada de plantas de espinho, que lhe servia de divisa.

Transpôs a vala e viu-se diante do portão de ripas que dava acesso ao terreiro. Antes de levantar a aldraba, deu uma olhadela curiosa por uma fresta. Tudo em paz…

O terreiro era vasto. Ao centro, uma cruz de madeira grossa, apenas lavrada. Outrora havia sido pintada de vermelho escuro, mas naquela época apenas se adivinhavam uns restos da cor primitiva. No pé do cruzeiro brotara uma trepadeira vadia que se lhe enredava pelos braços e durante o ano inteiro o enfeitava com as suas campainhas azuis. Do portão à casa ia-se por uma avenida ladeada de ameixeiras.

A residência era singela, ao gosto do tempo. Começava por um telheiro de janela e meia-porta, que servia de arrecadação e onde eram depositadas as ferramentas. Depois é que vinha o que se poderia chamar de residência, com uma parte inteiriça entre janelas. Seguia-se outro telheiro ocupado pelo forno, a prensa e a roda, para fabricação de farinha. À meia-água na parte posterior, difícil de ver-se do portão, erguia-se um sótão com entrada independente, onde morava um dos agregados, conhecido por nhô João Redondo.

Na chácara havia muitas laranjeiras. As árvores frutíferas desapareciam no fundo onde, depois de uns barrancos, passava o ribeirão.

Um cachorrinho estranhou a visitante matinal e se pôs a latir, investindo raivosamente contra as suas canelas magras. Mas a velha, afeita à cólera dos cães de todas as chácaras, defendia-se com o bastão de cambuí, fazendo piruetas que ainda mais açulavam o animal. Como ninguém viesse em seu socorro, gritou para dentro:

- Tá drumino, druminhoco?

A escrava Gertrudes, que lavava roupa no ribeirão, apareceu entre as ameixeiras, com uma toalha na cabeça, as mãos a escorrerem espuma.

- Pisa, Mosquito… Quem é? Ah! É Nha Trindinha!

- Bom dia, Gertrude… Cadê o seu sinhô?

Chagas espiou por uma das janelas da casa. Tinha um livro na mão marcando com o indicador a página em que a leitura havia sido interrompida. Só então a velha se atreveu a avançar até a porta, onde Chagas, logo depois, foi recebê-la. Os olhos finórios da visitante, em lugar de fitarem o interlocutor, entraram pela casa dentro e esquadrinharam tudo. Como se isso não bastasse, ela, a pretexto de fugir do Mosquito, entrou pelo corredor e ficou a espiar pelas portas laterais. Viu a mesa tosca, coberta de papéis, o tinteiro de cobre azinhavrado, com o pires de areia e o caneco de panos pretos onde o mestre, sempre que interrompia a escrita, afincava a pena de pato.

Aquela novidadeira incomodava profundamente ao dono da casa. A curiosidade de nhá Trindinha fazia-lhe mal. Mas aquele homem era a bondade em pessoa, incapaz de desatender a quem quer que fosse. Além disso, estava ao par da fama da velha e, como pessoa de recato e fineza, tremia à ideia de que o seu nome, por uma vingança qualquer, fosse levado pelas ruas da vila. Pôs-se a olhá-la com olhos calmos, dulcíssimos, à espera de que ela desembuchasse.

Isso não tardou:

- Ói, seu Chagas… Não vê… Estemo no tempo da coleta e nhá Lú fais aminhan seu muchirão. É a festa da farinhada. Entonces ela me pediu que convidasse gente, os escravo prá trabaiá e os sinhozinho prá alegrá a festa… Ói, eu vim dereitinho aqui… Não vá fartá!

- Obrigado, nhá Trindinha; diga a nhá Lú queeu lá irei com a minha gente.

- Eu contava que mecê ia; mecê é mesmo coro n'água!

Riu muito e lá se foi, defendendo-se do Mosquito com a ponta do bastão.

- Sai, peste… T'arrenego…

Chagas voltou para a sala, estendeu-se no sofá de espaldares revirados, com assento de palhinha amarela, já esburacado, e, procurando a posição mais cômoda possível, quis retomar a leitura, mas não conseguiu. Da outra sala vinha a gritaria dos filhos e a voz áspera da escrava. Na impossibilidade de prosseguir na leitura, levantou-se e se pôs a andar de um lado para outro.

Nascera em 1786; contava portanto, naquela época, quarenta anos de idade. Era magro, mais alto do que baixo, claro, de cabelos longos e ondulados. Tinha o rosto escanhoado e não usava bigodes. Nunca possuiu grandes haveres. Tendo ficado órfão aos cinco anos e em extrema pobreza, foi criado por uma preta. Conta-se que em certo período só possuía uma muda de vestido, de modo que, enquanto a sua roupa ia para lavar, ele ficava escondido no mato. Ainda muito criança, sempre falto de que vestir, escreveu esta quadrinha bem infantil:

Amanhã é dia santo.

Dia do Corpo de Deus:

Quem tem roupa vai à missa,

Quem não tem faz como eu.

Mas a pobreza não o afligia. Outrora, como então, a sua atitude era de calma imperturbável, de evangélica doçura. Os gestos, muito lentos, refletiam a paz e a segurança de uma alma limpa, perenemente voltada para as belezas do céu.

Sua cultura estava muito acima do nível comum naquele tempo; pelos trabalhos que deixou, em prosa e verso, assim como pelos estudos históricos, poderia ter sido contado, e com brilho, entre os escritores do tempo. Mas não quis. A publicidade não era do seu feitio. Preferia a obscuridade e o silêncio onde sua alma mística podia voltar-se para o mundo das belezas interiores, numa perpétua e ardente adoração do criador e das criaturas.

Aos 17 anos, o padre Antonio Benedicto de Assumpção Freire, vigário de Santo Amaro, com as devidas licenças, abençoou a sua união com a prima Maria Joaquina Miquelina de Moraes, em 4 de outubro de 1813. A noiva era da sua idade. Alguns anos depois, Chagas enviuvou, com dois filhos: Caridade e Job. Desgostoso com a morte da esposa, não mais pensou em casar-se. Por diversas vezes lhe apareceram lindas e bondosas criaturas capazes de fazerem a felicidade do seu lar, mas a sua tristeza, o alheamento em que vivia das coisas do mundo acabaram por afastá-las. Assim, continuava ele a viver na casa da chácara, com escravos, agregados e filhos.

A Gertrudes, mal ajeitada e resmungona, fazia os arranjos da casa, tratava das crianças, dava-lhes à hora certa o prato de estanho e a colher de chifre. Mas não era tudo. Caridade, que orçava pelos doze anos, e Job, que ia fazer dez, estavam na idade em que a alma é ainda um botão de flor e precisa de muito trato. Tinham necessidade de uma afeição mais íntima que a dele, homem austero, e a da escrava, um pobre ser que nunca recebera delicadezas e, portanto, não estava em condições de transmiti-las a alguém. Tal pensamento, nos últimos tempos, entrara de amofiná-lo.

Chagas, durante a semana, lecionava a cerca de trinta alunos na escolinha da casa da vila. Quando lhe sobrava tempo, ia para a roça em companhia da escrava, dos empregados e dos filhos, e ali trabalhava de enxada na mão. Aos domingos e dias santificados fechava-se na sala, no convívio amável dos livros e dauela pena de pato que era motivo de cuidados particulares. E enquanto mergulhava no prazer do estudo, ou na alegria da escrita, ouvia lá dentro, na cozinha, a voz áspera de Gertrudes que ralhava com as crianças.

Enquanto a preta lavava os pratos na gamela, ou socava o café no pilão, Caridade e Job, descalços, de lebita comprida, corriam pelo terreiro, dançavam na coberta do poço ou andavam pelas taperas escuras à cata de morangos. Tudo isso sobressaltava-o. Aquela espécie de abandono em que viviam os filhos doía-lhe na alma, tanto mais que ele era exaltadamente religioso, sempre preocupado com deveres.

Sua palidez mal encobria o drama interior de um crente em perpétua vigilância de si mesmo, emaciado pelos jejuns, agoniado pelos silícios. Conta-se que ele deixava a cama para dormir no chão de terra batida: acreditava-se mesmo que debaixo da camisa de pano áspero aninhavam-se, durante semanas, raminhos secos de espinheiro. Queria a todo momento ser pungido pelos espinhos, para ser incessantemente advertido da fragilidade da carne, da eternidade da bem-aventurança.

Era respeitado, querido por toda a população.

A amenidade do trato, a paciência com que ouvia a lamúria dos sofredores, fossem grandes ou pequenos, haviam-lhe dado fama de homem de justiça e daí o ser frequentemente procurado por pessoas desavindas, que lhe iam expor as suas razões e pedir-lhe a pacificadora interferência. A todos ouvia com serenidade, recolhendo em silêncio o que lhe era meticulosamente contado, e ainda inquirindo sobre novos pormenores, a fim de poder formar perfeito juízo sobre o ocorrido e, só depois disso, manifestar a ponderada opinião, sempre acolhida como sentença.

Tal brandura acabou por valer-lhe um apelido popular, o que era tão comum nos acanhados meios provincianos, mas isso não o amofinou. Francisco Antonio das Chagas, para o povo santamarense, era apenas o Chico Doce. E o apelido lhe assentava que nem uma luva.

Estava ainda a passear pela sala, absorvido em sua meditação, quando entraram os dois filhos a fim de lhe pedirem as bênçãos, pois iam visitar as moças do sobrado, que eram suas primas segundas. Caridade, já de baeta azul e mantilha, pareceu-lhe pela primeira vez uma mocinha, no esplendor dos doze anos. Atrás dela estava o Job, meio atarracado e com cabelos de bugre. Diante do pai, Caridade fez uma leve flexão de joelhos:

- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Ao que ele, comovido, erguendo os olhos claros e estendendo as mãos finas e pálidas sobre a sua cabeça velada pelas rendas, respondeu:

- Para sempre seja louvado.

Depois, alegres, risonhos, os filhos saíram para o terreiro banhado de sol.

Só ficou a quietação. As cigarras cantavam nas laranjeiras. Gertrudes batia a roupa na beira do ribeirão. Um marimbondo-caboclo construía interminavelmente a sua casa de barro na parede da cozinha, com um chiado inconfundível. O relógio de parede, em forma de chalé, trazido consigo da Floresta Negra pelos primeiros colonos alemães, pareceu despertar no canto, alteando o seu compassado tique-taque…

Chagas deitou-se no sofá e abriu o livro.

No dia seguinte, muito cedo, depois do café com cuscuz de tapioca, ele, os filhos, a escrava e os agregados seguiram para o muchirão, no Itaupú. A manhã estava muito fresca. O mato cheirava a mel. As abelhas jataís, em pequenos enxames de ouro, faziam ouvir o seu zumbido leve, muito leve, sobre as flores do caminho.

(Do livro A vida de Paulo Eiró, em preparo)

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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