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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 28

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada nas páginas 4 e 5 da edição de 20 de abril de 1941 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 com a matéria

O obelisco

Do Pelourinho ao Capim, passando pelo Colégio e pela Sé, toda gente sabia que Vicente Gomes Pereira tinha boa mão para desenho e boa cabeça para números. Mas era um esquisitão. Morava na Rua da Freira. O casebre era de porta e janela. Mas a porta não tinha tranca e a janela não tinha grade. Dormia numa enxerga constituída por duas esteiras sobre tiras trançadas de couro cru. Na cozinha, uma velha tia, que falava só, preparava a couve rasgada, a carne seca e, quando Deus era servido, alguns lambaris mariscados nas bordas do Anhangabaú.

Mestre Vicentinho - era assim que o chamavam - não parava em casa. Como pedreiro de profissão, passava os dias no seu ganho. Como jovem e amigo das boas companhias, gastava parte da noite em conversa fiada pela Rua das Casinhas, onde as pretas vendiam moqueca, pelo Beco das Minas ou ainda nas patuscadas do Campo da Luz.

No entanto, conseguia colocar-se acima dessa existência. Seus companheiros abiam-=no capaz de grandes coisas. Era certo que ele vivia descalço, de chapéu grande, calça e camisa de paninho riscado, mas, debaixo do braço, equilibrava sempre um rolo de pergaminho, cheirando a reboco, onde havia desenhado, a carvão, um vistoso plano de reforma para o palácio do Governo.

Aquele palácio pertencia ao número das coisas que crescem com o tempo, como os animais e as dívidas. Começou por ser um rancho de bugres, uma igreja, um colégio; tornou-se sede do governo, instituto etc. Mas esse crescimento se deu ao acaso das necessidades. De tempos a tempos acrescentavam-lhe uma parede, um puxado. Por isso, o palácio se ia transformando num ajuntamento de telhados que beiravam o barranco do Tamanduateí. A tal ponto que o marquês de Alegrete, pouco sensível às delicadezas da estética, sentiu desejos de reformá-lo, dando-lhe aspecto mais imponente, mais digno das altas funções que desempenhava.

Estávamos já na segunda década do século passado (N.E.: século XIX, portanto). Não havia ainda jornal nem coisa que se lhe parecesse, mas tudo quanto se fazia, se dizia ou mesmo se pensava era logo sabido pela cidade e comentado de rótula para rótula. Mestre Vicentinho soube da alvissareira notícia e resolveu apresentar-se como o homem indicado para realizar a reforma do palácio. Pediu a um meirinho da sua amizade que o apresentasse ao chefe da guarda, e este, por sua vez, levou-o até a presença de Alegrete.

O presidente, que tinha vindo com d. João VI, em 1808, ainda usava sapatos de laço, meias de seda, calções justos de veludo verde, sobrecasaca cor de pinhão que lhe batia pela barriga das pernas, bofes de renda, cabeleira empoada e boceta de rapé, entalhada em chifre, com uma miniatura na tampa. Recebeu o artífice na sala das audiências, entre homens cabeludos com pena de pato atrás da orelha. Estava encostado a uma mesa atulhada de in-folios e, ouvindo o intruso, brincava com o lenço de alveice (N.E.: um tipo de seda branca e muito fina). Circundava-o uma atmosfera perfumada, talvez para disfarçar o bafio do casarão escuro e úmido.

O marquês acolheu-o de bom humor. O artista mostrava-se nervoso, desajeitado, na sua farpela de ver a Deus (N.E.: o autor se refere à vestimenta domingueira, melhor, usada para ir à missa). Depois de ouvi-lo com bonomia, um sorriso complacente a vincar-lhe as bochechas, o presidente aconselhou-o a que fizesse a planta, orçasse a obra e, quando tudo estivesse pronto, voltasse a palácio para lhe dar conta do projeto.

Mestre Vicentinho não quis ouvir mais nada. Despediu-se, agradeceu ao militar o favor de lhe haver proporcionado aquela audiência e saiu quase a correr pelo pátio do Colégio, barafustando pelo Caminho de Santa Thereza, em direção de sua casa.

Nesse trajeto, não pode deixar de pensar em Thebas. Se mestre Vicentinho era um simples pedreiro, Thebas tinha sido um humilde escravo. No entanto, havia construído, no século anterior, as duas torres agudas de Santa Thereza, a torre da Sé, o chafariz da Misericórdia... Por que não faria outro tanto?

Chegou a casa, arrastou a mesa para junto da janela, estendeu sobre ela a folha de pergaminho e se pôs a criar a sua obra, a sua grande obra. A tia cantava na cozinha. Galinhas cacarejavam no quintal. Uma frigideira rechinava no fogo. O ar cheirava a gordura queimada. Longe ouviam-se pregões de vendedores de lenha às macutas (N. E.: antiga moeda de cobre portuguesa de baixo valor que circulou no início do século XIX em Angola e outras colônias lusas na África - significando, portanto, venda em varejo, de porções mínimas), de aguadeiros. Na Rua da Forca, um carro de bois chiava, chiava, como um marimbondo-caboclo quando está fazendo casa...

Para não se distrair da obra, abandonou o serviço de pedreiro. Não mais saiu de dia, nem de noite. A tia começou a estranhar o seu retraimento. Espiava-o pelo rabinho do olho: com medo de que ele não estivesse bom da cabeça. E as suspeitas se foram enraizando. Na verdade, o rapaz já não dormia nem falava. Durante horas inteiras ficava sentado diante da mesa, imóvel, com os olhos grudados no papel e o carvão esquecido entre os dedos.

Um dia se pôs a cantar e a dançar com o papel na mão. A tia, que estava dando torresmos ao gato, olhou-o por cima do ombro, sacudiu tristemente a cabeça e persignou-se. Coitado! O pobre estava mesmo doido...

Vicentinho correu para dentro, envergou a roupa domingueira e foi para São Gonçalo, onde costumava encontrar o meirinho sentado num banco, à porta da Cadeia. O meirinho, infelizmente, não pôde facilitar-lhe outra audiência do presidente, pois o oficial da guarda, que era seu amigo, já havia sido mandado para outra repartição. Aconselhou-o, no entanto, a que ele próprio se apresentasse no palácio, pois o marquês era homem de repentes e se o apanhasse num dos seus bons dias, não só seria recebido como também, pela acerta, atendido nas suas pretensões.

O artista apertou o rolo de papel debaixo do braço e tocou para o pátio do Colégio. A entrada no palácio foi-lhe difícil. No entanto, depois de convencer ao guarda, conseguiu penetrar num coredor, em que havia diversos homens sentados em bancos, à espera de serem ouvidos. Assim, passou-se esse dia. Assim passou-se a semana. passou-se o mês. E Vicentinho não mais trabalhou. Andava pela cidade, os cabelos compridos, as roupas molambentas, o canudo de papel debaixo do braço. Um dia, quando voltou à casa, soube que a velha morrera e que os seus irmãos de confraria a tinham enterrado no adro do Rosário. Sentiu-se só, abandonado, infeliz.

Durante muito tempo andou de déu em déu, socorrido pelos antigos companheiros. Uma vez, passando pelo pátio do Colégio, viu escadas, andaimes, caixas de reboco, homens de alvião. Compreendeu. Aquela obra, que ele tanto esperava, tinha sido confiada a outrem. A quem seria? Interrogou os conhecidos.

O marquês empreitara a reforma do palácio com mestres de obras, estabelecendo apenas que a frontaria tivesse oito janelas para o pátio e as portadas das janelas fossem pintadas de azul claro. E não regateou. Ouvido tais coisas, o pobre recolheu-se à Rua da Freira e ali, afora os momentos em que saía para comer na casa de uns e de outros, entregou-se ao trabalho de desenhar construções, sem esperança de realizá-las. Eram frontões, torres, pirâmides, obeliscos, escadas, portas almofadadas, janelas circundadas de baixos-relevos...

Sua casa, no entanto, estava crivada de goteiras. A porta, de tão empenada, não fechava mais. A janela permanecia aberta dia e noite, pois a folha inteiriça já havia sido utilizada como prancha de desenho. E ele sonhava uma obra, a sua grande obra!

Em 1814, o conde de Palma, lembrando-se de prestar homenagem póstuma a Bernardo José de Lorena, cuidou de erigir-lhe uma "memória", como então se chamava. Como o tenente-general Daniel Pedro Muller tivesse concluído umas obras de canalização das águas do Tanque do Bexiga e sobrasse das mesmas muito material, o presidente resolveu construir com o mesmo a desejada "memória". Seria coisa de pequena monta, sem margem para ganância.

Chamou para isso os mestres de obras que haviam terminado a reforma do palácio e propôs-lhes o trabalho, mas estes, de olho finório, sentindo que dali nada havia a tirar, desculparam-se, recusaram. outros foram consultados: a mesma resposta.

Nesse ínterim, alguém falou a Daniel Muller dos desenhos de mestre Vicentinho. E o tenente-general, em falta de melhor, mandou chamá-lo. O rapaz apresentou-se com uma carga de papel rabiscado, sendo escolhido o projeto mais simples de todos, que era um obelisco. Exposta a situação de que aquilo era obra de caráter cívico, da qual nada de proveitoso se poderia esperar, e que o governo apenas recompensaria um pouco do tempo gasto, Vicentinho aceitou. Aceitaria de qualquer maneira. E, nas proximidades do Piques, onde a baixada vai encontrar o Paredão, foi surgindo o monumento, de uma ingênua beleza, mas que deu caráter àquela parte da cidade.

Terminado, mestre Vicentinho recebeu as felicitações dos amigos e uma dezena de cruzados pelos dias de serviço. E se deu por bem pago. Tanto mais que, por essa altura, ele, já meio doido, sonhava com outras empresas, entre as quais a construção de uma maravilhosa igreja, como aquelas que ele via nas águas-fortes dos Missais. Ficava horas inteiras a olhar para o céu limpo, a ver o que os outros não viam - torres, cúpulas, santos feitos de pedra e cruzes de ouro esgarçando as nuvens com a ponta de suas hastes...

E caiu na miséria. Quatro anos depois, a4 de outubro de 1818, a Câmara, talvez por interferência de Daniel Pedro Muller, contratou com ele e ouro as obras de "reboque e caiamento" do prédio em que funcionava, pela importância de 443$000. Não se sabe se chegou a executar a obra. Era tarde demais. A igreja que ele sonhava tinha acabado por enlouquecê-lo de todo. Primeiro foi recolhido ao cárcere, onde praticava desatinos. Mais tarde, removido para a Casa dos Loucos, que ficava numa esquina da Rua de São João, com fundos para os Curros, passava os dias junto á grade de ferro, espiando para a rua. Os passantes treliam com ele:

- Como vai, mestre Vicentinho?

- Bem.

- E que está fazendo agora?

- A minha igreja. A igreja de São Paulo.

E olhava para os céus, acompanhando, com o olhar triste, a curva arrojada dos botaréus que não existiam...

Os mestres de obras de 1814 venceram o artista. Mas as suas construções desapareceram como se tivessem sido feitas de areia. No entanto, o Obelisco, construído com restos de materiais por um arquiteto já meio doido, aí está. Deu nome ao Largo e à Ladeira da Memória. Tornou-se uma espécie de emblema de São Paulo. E ficou para sempre, porque recebeu a graça de ter sido tocado pela mão inspirada de um artista.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina 5 com a matéria

O obelisco da Ladeira da Memória, em 2008 - em pedra de cantaria, mede 8,78 x 1,78 x 1,80 metro. No chafariz ao lado há um painel de azulejos, pintado por José Wasth Rodrigues em 1919

Foto de Dornicke, em 17/10/2008, disponível em Wkipedia (consulta em 2/7/2012)

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