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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 39

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 5 da edição de 16 de julho de 1944 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Devaneio

Fui, nos meus bons tempos, um devorador das novelas de Alphonse Daudet. Agora, quase meio século depois da morte do romancista, ainda encontro por aí, misturadas com o povo da rua, algumas de suas personagens. Sou aparentado com os Joyeuse. Aos que já não leem os mestres de ontem, devo contar quem foi o chefe dessa pequena família, residente numa trapeira de afastado bairro parisiense.

O sr. Joyeuse era um homem grisalho, viúvo, pai de duas filhas casadouras. Só vivia para elas. Certa vez perdeu o emprego e, sem vintém, iniciou uma vida fantástica: na cidade, gastava os dias à porta das repartições, solicitando em voz trêmula um empreguinho, por modesto que fosse; em casa, representava dolorosa comédia, para que as meninas não percebessem sua desdita...

Cito-o aqui porque o seu traço característico é sonhar acordado. Com o paletó lustroso, as botinas acalcanhadas e a barba por fazer, todas as manhãs, fingindo que vai para o emprego, ele toma o "autobus" e desaparece entre os demais passageiros. Logo depois, repara num "vis a vis" que, pela tez cor de oliva e cabelos retintos, julga oriental. Naturalmente, é um dos muitos "marajás" que, incógnitos, vagabundeiam pelas ruas de Paris.

Se o indiano esteve no bairro, como parece, pôde ver-lhe a filha menor, aquela que tem a alcunha boba de Avezinha, pelo seu feitio de gata borralheira. Se viu a Avozinha - não há dúvida - enamorou-se dela. Os orientais são assim, pegam fogo à primeira vista...

Dali a pouco, o sr. Joyeuse adquire a certeza de que, no fim da viagem, o "marajá", informado por agentes secretos, saberá que ele é o feliz pai da Avozinha. Procurá-lo-á  para felicitá-lo, para pedir-lhe a mão da filha. Mas ele é um pai sensato, não vai entregando a filha assim, sem mais nem menos. Exige informações idôneas sobre o passado e as intenções do pretendente, por mais "marajá" que seja...

A Avezinha gosta mesmo do rapaz... Pois então que se casem... Mas, nesse meio tempo, chega da Índia uma proibição telegráfica: "Se casares com a estrangeira, perderás a herança e o principado". Então, o oriental, que não pode viver sem a Avezinha, muito menos sem as riquezas, procura raptá-la. Felizmente, o sr. Joyeuse chega a tempo, no momento em que a filha se debate contra o "marajá". O pai exclama:

- Monstro! Largue a minha filha!

Nese ponto, o sr. Joyeuse cai em si. Relanceia um olhar assombrado pelo "autobus", a fim de verificar se, sonhando, traiu os seus pensamentos. Ajeita o colarinho, tosse sem vontade. O homem cor de oliva adormeceu com o balanço do veículo. Os demais passageiros leem jornais ou conversam frouxamente. Ninguém percebeu o seu drama.

Ora, eu, com este jeitão de homem prático, tenho alguma coisa do herói de Alphonse Daudet. De quando em quando, inesperadamente, fujo à realidade que me cerca. Foi isso, exatamente, o que aconteceu ontem quando o correio me entregou aquela circular dos diretores dos "Fundos Universitários de Pesquisas" em que se me pedia, como a tantos outros, resposta a uma enfiada de perguntas. Li e reli o questionário. Depois, finquei os pés no trampolim e dei uma cambalhota no azul.

Sempre tive um fraco pela Universidade. Pertenço ao número daqueles que, não tendo feito estudos sérios, lutam a cada passo com a falta de base segura para a criação da obra de arte. Uma das minhas humilhações é pensar que se houvesse novo dilúvio universal e eu fosse outro Noé encalhado no pico do monte Ararat, bem pouca coisa do mundo extinto poderia transmitir ao mundo que, naquele momento, deveria começar. Se o destino confiasse a em mim, num tal caso, a humanidade voltaria à atividade pastoril dos vergéis da Mesopotâmia. E, mesmo assim, sem gozar das vantagens que, atualmente a ciência coloca ao alcance dos agricultores.

Não sei plantar um pé de couve. Não sei erguer, convenientemente, uma meda de esterco. Não sei tirar um berne do suá de uma novilha. O que sei de outras matérias é vago e flutuante: as minhas informações, gravadas num livro de pedra, para orientação das gerações subsequentes, poderiam, talvez, dar uma vaga ideia da vida de nossos dias, mas nunca orientar a reconstituição da cultura a que chegaram os cidadãos do século XX.

Nesse livro, eu poderia contar que os meus coevos viajavam (quando havia lugar) em trens de ferro, automóveis, navios a vapor ou movidos a óleo cru, bondes, ônibus e até em aviões que faziam quinhentos quilômetros por hora. Poderia contar que o homem tinha domesticado o raio e que a sua força misteriosa, com o nome de eletricidade, movimentava os campos, as fábricas, os caminhos de ferro, iluminava as cidades, cozinhava os alimentos, enxugava as roupas, varria as casas e levava a nossa voz pelo mundo inteiro, mediante estações emissoras e aparelhos receptores.

Poderia falar sobre os progressos da guerra, com suas balas voadoras, tanques de cem toneladas, canhões de algibeira, submarinos e pássaros de aço que diariamente desovam centenas de toneladas de explosivos sobre cidades inimigas. Falaria da generosidade de nossos homens, organizando bancos de sangue para os hospitais. Seria muito difícil explicar esse mecanismo. O sangue colhido nos desastres, ou doado por determinadas pessoas, era guardado em depósito e servia para injetar nos doentes esvaídos. Falaria da transplantação de órgãos de um homem para outro.

Mas seria eu capaz de fabricar microscópio, telescópio, locomotiva, automóvel, avião, dínamo produtor de eletricidade, emissora de rádio, aparelho receptor, desses que a gente encontra em todas as casas, uma simples bússola ou mesmo um singelo ferro de abrir latas? Seria eu capaz de resumir, com precisão, as teorias de Marx, de Einstein, de Freud? Meu hipotético livro de pedra não passaria de um pobre livro de figuras para as crianças do século seguinte. Os filósofos chamá-lo-iam de utopia. Os críticos inclui-lo-iam entre os Vedas e o Périplo de Hammon. Iria dormir debaixo do altar de um templo como o Livro dos Mortos, e os poucos iniciados que dele tivessem notícia, cabeceariam:

- Foi um poeta, de muita imaginação.

Alguns arriscariam:

- Esse tal não existiu, foi um mito solar.

Por essas e outras considerações, sei o que vale uma Universidade. Se eu fora rei... Ah! Se eu fora rei... Faria muita coisa bonita. Pensando melhor, talvez não fizesse nada, porque, antes de mim, já muita gente bem intencionada subiu ao trono e, após a sua passagem, não deixou vestígio. Uma coisa é sonhar aqui em baixo, na esquina da vida,outra coisa é tirar o paletó, lutar corpo a corpo com os interesses ofendidos e depois, vitoriosamente, amarrar o cavalo numa estrela.

Parece-me a mim, neste momento, que, se eu fora rei, a Universidade seria, no bom sentido, um Estado dentro do Estado. Todas as épocas foram consideradas decisivas para os destinos da humanidade. Mas esta, talvez porque a estou vivendo, parece-me muito mais decisiva que as outras... Tenho a impressão de que a humanidade inteira, depois do referido dilúvio de que há pouco falei, encalhou no pico do monte Ararat. Por enquanto só partiram os corvos de Noé. Eles estão custando a voltar. Banqueteiam-se na carniça. Mas dentro em pouco, ainda este verão, como aventurou o sr. Churchill, a pomba voltará à arca, trazendo no bico o raminho da praxe. E depois?

Depois erá preciso recompor o mundo destruído. Será preciso, imediatamente, botar mãos à obra e construir um mundo novo. Os artífices dessa imensa obra estão nas universidades. É dessa instituição que hão de sair engenheiros, médicos, juristas, diretores de indústrias e orientadores de plantações coletivas, grandes como Estados. E filósofos. E artistas. E aqueles homens cujos sonhos, logo depois, se materializarão em pedra e metal.

Portanto, a Universidade não é uma instituição à parte, seguindo rumo diferente da coletividade. Precisamos aposentar a convicção de que a Pátria é uma coisa e a Universidade é outra. Não, senhores. Pátria é ciência, é técnica, é cultura. Os Direitos do Homem couberam numa folha de papel almaço, mas deram novo rumo aos povos.

É preciso, desde já, associar a escola a todas as atividades do País. Esta ideia não é minha, é de um turco. Foi Kemal Pachá quem, há muitos anos, estabeleceu uma praxe assaz curiosa, na sua terra: todos os anos, durante uma semana, as autoridades se afastavam dos postos, e, de alto a baixo, entregavam as rédeas da administração aos rapazes das escolas.

Do presidente da República ao guarda-jardim, quem mandava, quem agia, quem governava, eram os moços. Que se saiba, a Turquia nunca se arrependeu disso. Ora, eu prefiro errar com os moços do que acertar com os velhos. E daí, nós outros, os velhos, temos por acaso acertado tanto que a nossa ausência na direção chegue a representar calamidade pública?

Dentro de pouco, seremos chamados a transmitir aos nossos descendentes todo o patrimônio que, pedrinha a pedrinha, o homem veio acumulando, dolorosamente, ao longo dos milênios. Essa vai ser, ou melhor, já está sendo a função da Universidade. O resto,neste período em que o mundo se encontra, não tem importância. Praxes, preconceitos, rotinas, estão em agonia.

Noventa e nove por cento das grandes pequeninas coisas que hoje nos preocupam desaparecerão daqui a pouco, quando amanhecer. O sol dissolverá os fantasmas. Só ficará de pé o que assentar sobre a existência de uma humanidade desesperada que, afinal, resolveu viver. Para que isso se dê sem discórdias nem sobressaltos, é preciso que os detentores do conhecimento humano tomem a palavra e esclareçam, na medida do possível, a milhões de cegos que, muitas vezes, têm sido conduzidos por loucos.

Agora falemos do nosso país. Somos quarenta e cinco milhões de brasileiros que, em diversos níveis de cultura, ansiamos por esclarecimentos para que a evolução econômica, social e política se processe de um modo sereno e elevado como, geralmente, tem acontecido até aqui.

Para tanto, é preciso que a nossa Universidade, como as demais, tome a palavra e a sua lição transborde dos recintos fechados. Ela é detentora de uma cultura que se destina a todos. Foi conseguida pela massa obscura dos que, através dos séculos, se sacrificaram em prol das ciências e das ideias. Nas trapeiras, nos porões e nas celas dos conventos. Não raro, nos cárceres.

Nessa obra de cultura trabalhamos todos nós: ela começa pelos que plantam as florestas, abatem os pinheiros, transportam os troncos ao longo do rio, trituram o lenho, fabricam a celulose, acamam a polpa nos crivos das máquinas e nos dão o papel. Os que compõem, imprimem, encadernam e vendem os livros. Os mestres-escolas do campo e da cidade, os professores intermediários e os catedráticos. Os que fabricam as máquinas e os utensílios a serviço da difusão do pensamento, os que transportam e, por fim, a legião dos que passam as suas vigílias debruçados sobre os livros. A cultura, como todas as coisas singelas e puras do mundo, deve pertencer a todos: a água, a luz e o ar que respiramos.

Pensando nisso, pus-me a responder ao questionário que, como a tantas outras pessoas, me foi remetido pelos "Fundos Universitários de Pesquisas". Penso que a sua iniciativa transcende aos moldes em que foi apresentada.

Acho que, com elementos da nossa Universidade, ex-alunos, amadores e até mesmo profissionais de boa vontade, os estudantes terão meios de realizar uma grande obra de cultura artística. Podem ter orquestra, orfeão, coral, teatro, biblioteca pública, com uma parte circulante, salões de artes plásticas, de concertos, de audições de discos e de conferências, realizando assim uma velha aspiração do nosso povo. Dentro da Universidade, organizada por professores e alunos, teríamos a Universidade Popular. Essa obra poderá ser multiplicada pelo rádio, pelo cinema, pelas publicações.

Não uma hora, apenas, de rádio, conseguida em qualquer emissora, mas uma estação própria, a fim de tornar nacional a obra admirável que, de outra forma, só poderia ser aproveitada por um número restrito. Podem os estudantes ter o seu jornal, alargando assim o âmbito das revistas técnicas das diversas instituições. Esse diário destinar-se-ia já não, apenas, aos estudantes do Brasil, mas ao público em geral, pela soma de informações culturais, pelas campanhas de interesse coletivo, pela contribuição relativa a cada problema em foco. Corrigiria os desvios da nossa História, evocaria figuras admiráveis do passado, faria luz sobre assuntos que nós outros, muitas vezes, discutimos empiricamente.

Esse jornal encontraria, desde logo, o seu público, um grande público. Num ambiente desenvolvido como o nosso, em que se publicam jornais exclusivamente destinados aos esportistas, não haverá lugar para um jornal destinado a professores, a alunos e a todos os que se interessam pela elevação do nível cultural da pátria?

O seu cinema poderia dar a conhecer filmes científicos que são lançados, abundantemente, nos grandes centros. Cada filme seria pretexto para uma palestra. E assim, o ensino da História, da Geografia, de outras ciências, como também da técnica, poderia descer às mais modestas camadas sociais, realizando obra admirável.

O custeio desses poderosos meios de divulgação de cultura poderia ser, em parte, obtido pelas entradas e pela publicidade que, hoje em dia, tem função social. Tal publicidade inspirar-se-ia no que se faz em outros países. As campanhas de caráter coletivo estão em condições de ser estipendiadas pelas instituições nelas interessadas.

Exemplifiquemos. Demonstrando a necessidade dos brasileiros precaverem-se contra o amarelão, de que padecem muitos dos que, em certas zonas, andam descalços, essa propaganda poderia ser apoiada pelos fabricantes de calçados. Demonstrando a necessidade de corrigir a nossa alimentação, tornando-a mais rica e útil, seria apoiada de um modo geral pelos produtores de frutas, de alguns cereais e pelos entrepostos de leite e fabricantes de laticínios.

Todas as campanhas de interesse geral podem coincidir com um ponto de interesse particular, para determinado setor da produção. Uma propaganda indireta, sem falar em marcas, nem em firmas, apresenta maior eficiência. Serão seus fregueses, além dos já sugeridos, editoras, livrarias, escolas, cursos, estações de repouso, teatros, cinemas, pensões e todos os estabelecimentos comerciais que desejem a preciosa preferência da nossa população escolar.

Essa parte de divulgação de cultura, para além dos âmbitos universitários, útil, indispensável mesmo nos dias que correm, poderia também contar a sua organização editora que, periodicamente, nos daria, a preços acessíveis, os livros fundamentais da literatura, as obras que se relacionem com a História e a Geografia do Brasil, os anais da Universidade, as lições de cada cadeira etc.

E, contribuindo para o custeio desse e dos demais autores, dar-nos-ia a publicação das obras didáticas utilizadas pela própria Universidade e, quem sabe, pelos estabelecimentos do ensino de São Paulo.

Para tanto será preciso dinheiro. Muita gente, conservando das escolas superiores e dos estudantes a ideia lírica que dos mesmos faziam nossos avós, talvez se indisponha com esta palavras. Não devemos esquecer, no entanto, que o dinheiro ainda é o mediador plástico entre as necessidades humanas. Tudo progrediu através dos tempos, menos o processo de permuta. Hoje, como há mil anos, ainda trocamos o pão pelo disco de metal.

Não há, pois, nenhum inconveniente em que tais serviços prestados à pátria e à humanidade sejam retribuídos, já não para proveito particular, mas para continuação e aperfeiçoamento da própria obra. Dessa forma, a Universidade integrar-se-ia de todo na nossa vida cultural, desempenhando o papel que sempre lhe foi reservado, principalmente agora, que as populações, de alto a baixo, estão animadas da mesma necessidade de saber com segurança e sentir com elevação.

A tais argumentos coligidos ao bater do teclado desta máquina de escrever, poderíamos acrescentar outros. Muitos outros. Um deles, que não nos parece inteiramente destituído de fundamento, é o seguinte: no rádio, no cinema, no jornal, nos salões de conferências, de artes plásticas, de concertos, no teatro, por toda parte, principalmente da seção editora, a Universidade poderia dar colocação adequada a centenas de rapazes que se esforçam por levar a cabo estudos, cada dia mais dispendiosos. Como complemento dessa orientação teríamos, em breve, a Faculdade de Belas Artes, a Cidade Universitária...

Mas, onde pairava você, meu velho Joyeuse?

Ah! É verdade! Eu sonhava. Eu respondia, um pouco atabalhoadamente, a uma circular que me foi ontem enviada pela direção dos "Fundos Universitários de Pesquisa". São duas folhas de papel onde há muita inteligência, muita solidariedade, muita compreensão do momento, muito desejo de servir à pátria e à humanidade.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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