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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 46

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada em seis partes, em setembro de 1944: na página 3 da edição do dia 17, na página 5 do jornal do dia 19, na página 4 da edição do dia 20, na página 4 do dia 24, na página 3 do dia 26 e na página 4 do dia 29 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 17/9/1944 com o texto

O retrato

I – Glatigny, teatrinho de bairro

- "Sim, meu caro senhor, as cartas que me mandou durante a primavera, com tamanha regularidade, poderiam enlouquecer a muitas mulheres menos a esta pobre Margarida que não possui carruagens nem cavalos e, todas manhãs, vem ao mercado fazer compras. É que a pobre Margarida já ama a alguém…"

- "Nesse caso, poderei ao menos saber o nome do felizardo?" – perguntou o conde.

Atrás dos bastidores zumbiu a campainha surda do contrarregra, avisando que o ato ia terminar. O maquinista correu para a manivela do pano de boca. No tablado, Valentina, contracenando com Durand, esperou que se ouvisse um ruído de passos na escada praticável; depois, mui lentamente, atirou a frase do papel:

- "Não é segredo. Esse alguém a quem amo, com todas as veras de minha alma, vai entrar por aquela porta…".

De fato. Um rapaz gorducho, chapéu-de-coco a três pancadas, fez a entrada pela direita alta.

O conde ficou perplexo ao reconhecê-lo:

- "Lussac!".

E Valentina:

- "Sim, Lussac, meu marido".

Depois de rápida explicação, os esposos abraçam-se, o conde retira-se pela esquerda baixa e o pano desce sobre a última cena do morno espetáculo daquela noite. Para lá da ribalta, reboam palmas sabiamente dirigidas pela claque. A dama e o galã, sentindo-se sós, aproveitam a oportunidade para dizer-se palavras descorteses. O contrarregra esbraveja, lá dentro.

A seguir, ouve-se o tropel do público que, terminado o drama, procura voltar o mais depressa possível a suas casas. Os que têm de entrar cedo no escritório ou na oficina espremem-se pelas coxis da plateia, aglomerando-se no corredor de saída. No palco vazio entram homens de macacão e boné, apagando luzes, enrolando rompimentos de papel para que não se rasguem até o espetáculo do dia seguinte.

A caixa do teatro com seus pequenos camarins e complicados serviços, apresentava o movimento do costume. Homens e mulheres ainda caracterizados andavam de um lado para outro. Durand, em mangas de camisa, abordava os conhecidos, mendigando um cigarro. O contrarregra repartia cristãmente o seu sanduíche com Talma. Talma era um vira-latas.

Além dessas figuras, encontravam-se ali jornalistas inexperientes, autores inéditos, artistas à espera de contrato, cavalheiros graves que se haviam apaixonado pelas atrizes durante a representação.

Valentina, no traje de burguesinha lírica que tão bem lhe assentava, rompeu o ajuntamento, dirigindo-se ao camarim. A sra. Cassou estava em pé, na porta, com cara de novidade. Essa mulher desempenhava várias funções. No teatro como aia e dama de companhia, chamava-se sra. Casou. Em casa, como arrumadeira, criada etc., tinha o nome de Serafina. Era uma velha magra e triste. Vestia traje castanho escuro, com fichu (N. E.: lenço grande e quadrado, dobrado na diagonal e usado pelas mulheres na cabeça ou para preencher o decote de um corpete) preto ao redor da cabeça. Mas seus traço característico eram os óculos redondos, sem grau, que assestava sobre as pessoas a quem se dirigia.

- Que há, sra. Cassou?

- São esses sem-vergonha…

E, com mal disfarçada repugnância, mostrou-lhe um ramalhete de flores com o competente cartão de visita, onde se lia: "Quer dar-me a honra de cear comigo, esta noite? Telefone para o Hotel da Europa. Ficarei à sua espera". O cartão era de um desses novos ricos que se tornam conhecidos em muitos camarins. A moça rasgou o bilhete, atirou as flores na cesta de papéis. Diante da atitude tão pouco acolhedora, a sra. Cassou teve receio de contar-lhe as restantes novidades. Mas, assim mesmo, aventurou:

- O homem do monóculo quer falar-lhe. Está ali no corredor. Faço-o entrar?

- Não. Hoje não atendo a ninguém. Luciano esteve aqui? Telefonou do café? Avisou que viria buscar-me?

- Não, senhora.

- É assim mesmo. Todos me procuram, menos aquele a quem procuro.

Vestiu-se nervosamente, brigando com o pente franzino e os colchetes rebeldes. Depois, acompanhada de perto pela sra. Cassou, dirigiu-se à estreita porta da travessa, destinada ao pessoal do teatro. Era por ali que, geralmente, entravam ou saíam. No corredor, Talma, o cachorro do contrarregra, estacou diante da sra. Cassou e encarou-a com olhos turvos.

Durand perguntou:

- Que quererá este bicho?

E Camila, a companheira do cômico, respondeu:

- Talma tem esperança de que a sra. Cassou perca algum de seus ossinhos…

A velha assestou-lhe a metralhadora dos óculos e fuzilou-a.

Chovia. A ruazinha mal calçada apresentava poças de água. Pela escuridão que reinava na esquina compreendeu que os globos incandescentes da fachada do teatro já tinham sido apagados. Mas havia um combustor de gás. No seu halo amarelento, o sobretudo abotoado, a gola erguida, as mãos nos bolsos, passavam apressadamente os últimos espectadores que, ao fim, se haviam resolvido a arrostar aquela noite chuvosa.

Um fiacre ia passando, vagarosamente, a mariscar fregueses. O cavalo pisava nas poças e atirava lama no passeio. A sra. Cassou fez sinal, o veículo aproximou-se do meio-fio e as duas mulheres subiram para ele, apressadamente.

- Rue Bonaparte, 22.

Embalada pelas molas da carripana, Valentina pôs-se a pensar com amargura. Onde andaria Luciano? Que beldade o teria arredado do seu caminho? Não que ele valesse alguma coisa. Não era bonito, não era rico, não sabia dizer coisas lindas. Não tinha mesmo nada que o recomendasse ao seu coração.

Mas o pior é que gostava dele. Com todos os defeitos. Com seu ar de malandro, o passo gingado, os olhos risonhos, a fronte isenta de pensamento, os lábios virgens de emoção. Quando queria ficar com as botinas lustrosas, saiba limpar o pé direito na barriga da perna esquerda. E vice-versa. Quando queria ficar asseado, palitava os dentes com a ponta dos dedos. Ou limpava as unhas com um palito de fósforo. Mas era assim mesmo que gostava dele. Seria capaz de fazer o maior sacrifício de sua vida, não por ele, mas pelo sacrifício.

A atriz tinha, lá dentro, a paixão do sacrifício. Aprendera essas coisas no Asilo, com as irmãzinhas, tão bondosas, mas tão ignorantes da vida. Outrora, a irmã Bonifacia, a mais velha de todas, ficava a olhar para ela, ainda menina, trazida uma noite da Rue du Faoubourg de Saint Germain, vestida de trapos, e dizia-lhe: "Tu és o retrato da venerável Roselle, que eu conheci na minha infância, há quase um século. Que mistério divino fez dela uma flor da igreja e de ti, que és a sua figura em carne e osso, uma garotinha levada da breca".

O fiacre estacou diante de respeitável casa de cômodos do velho bairro. A porta estava aberta. Um bico de gás alumiava frouxamente o primeiro lance da escada, com a passadeira em fiapos e o corrimão terminado em pinha azul. Pagaram ao cocheiro, que bateu com os dedos enluvados na aba da cartola branca. E, sem rumor, como era pedido pelos avisos afixados na parede, subiram para o primeiro andar. Diante de cada apartamento, havia um par de sapatos; às vezes, dois.

A sra. Cassou levou tempo para encontrar a chave. Diante de sua porta, Valentina abaixou-se e apanhou qualquer coisa. Era um ramalhete de rosas com o cartão de visita. A velha fixou a patroa; seus óculos redondos, na meia luz, fagulharam de curiosidade.

- Continua a ser o misterioso barão Dmitri. Todas as noites, este ramalhete de rosas. Mas ainda não sei que cara ele tem…

Entrou, acendeu o bico de gás e, como a casa estivesse cheirando a mofo, foi abrir a janela que dava para o pátio interno. Viu um cenário negro, todo perfurado de luzes. Depois, habituada a vista, destacou telhados lustrosos, grupos de chaminés, ramagens encharcadas balouçando ao vento. Um piano ignoto martelava Grieg. A sra. Cassou, na cozinha, mexia com panelas e pratos. Dali a pouco, um cheiro aveludado de costeletas fritas em manteiga espalhou-se pelos compartimentos.

Renovado o ar, fechou novamente a janela e foi vestir a roupa caseira. Postou-se diante do espelho que a luz do gás enchia de reflexos. Era ainda moça, embora um pouco fanada. Os cabelos, livres dos pentes de tartaruga e dos grampos, caíram-lhe tumultuosamente pelos ombros. As formas foram aparecendo, pouco a pouco: eram morenas e rijas. Os olhos verdes e rasgados, de uma infinita doçura. O talhe fino e leve, conservando alguma coisa da menina magra que passara a infância no Asilo de Caridade.

Surpreendeu-se a perguntar, mentalmente, por Luciano. Naturalmente, andava atrás de nova conquista. Desconfiava daquela esgrouviada Camila, amiguinha de Durand, que não a via com bons olhos. Todas as noites, de acordo com a peça, o rapaz conquistava-lhe o coração. Depois, como era natural, cada um ia para seu lado. A culpa não era sua, nem de ninguém. Mas a quizília da moça não era por amor de Durand, era, talvez, por amor de Luciano. Bastava observar-lhe os olhos vorazes com que ela o contemplava a seu lado. Porque não pensara nisso há mais tempo?

Estirou-se no canapé. Lá dentro, a sra. Cassou, transformada em Serafina, batia pratos sobre a mesa, abria a gaveta dos talheres. Tomou uma revista esquecida no tamborete. Era La Vie Parisienne. Abriu-a, ao acaso. Uma página ilustrada, tendo ao lado um escrito de meio palmo. Poesia? Poesia.

"O califa, cansado dos prazeres que lhe estavam ao alcance da mão, resolveu ser escultor.

Mandou vir cavalete, buril, escopro e, para modelar, pediu pó de ouro, a fim de que a obra saísse esplêndida.

Deitou mãos ao trabalho, mas a matéria-prima, rebelde, fugia-lhe por entre os dedos, entrava-lhe pelos poros e interstícios das unhas. E ele, angustiado, não conseguia fazer mais do que um montículo dourado que, aos poucos, se desmanchava por si mesmo.

Juntou-lhe água, mas não conseguiu argamassa; juntou-lhe vinho e não foi mais feliz. Então, escumando de raiva, mandou chamar o mais humilde dos imaginários da cidade e perguntou-lhe:

- Com que pedra preciosa esculpe você a carne quente e viva das mulheres?

O homem respondeu:

- Com saibro, a terra vil dos caminhos.

O califa, então, mandou vir, para que a obra saísse esplêndida, canastras de areia fulva do deserto. E voltou ao trabalho. Mas a areia não lhe obedecia ao pensamento. Era como se ele quisesse recortar, na superfície de um lago noturno, a floração trêmula das estrelas. A areia mostrava-se rebelde como o ouro. E o califa mandou chamar, novamente, o imaginário:

- Como consegue compor, você, a massa leve e dúctil que tão bem modela a curva irreal do seio das mulheres?

E o homem confessou:

- Eu, senhor, enterneço a terra vil com as minhas lágrimas, as lágrimas que choro na ânsia de aproximar-me da verdade!

E o califa, então, só então, compreendeu o mistério da Arte".

Atirou a revista, reclinou a cabeça sobre o braço dobrado e ficou a pensar naquilo. Que desejaria dizer o poeta com as suas imagens?

Ela e a criada, nessa noite, cearam melancolicamente. Uma diante da outra, sem dizer palavra. Cruzados os talheres, sorvido o copo de Macon, cada uma delas dirigiu-se à sua cama e apagou a luz. Lá fora chovia, chovia. A água gorgolejava nas calhas. De quando em quando, uma lufada sacudia as árvores, nos fundos. Entre a vigília e o sono, viu-se sentada num campo verde, todo pintalgado de corolas. Um homem passou à distância.

- Luciano!

E dormiu profundamente.

Quando acordou, era dia velho. O cenário da véspera havia mudado. Cantavam os sinos claros, os sinos alegres de Saint-Germain-des-Prés. Fina réstia de luz entrava pela fresta da janela e, incidindo no rebordo do espelho, acendia um arco-íris. A casa estava silenciosa. Panelas e pratos permaneciam em paz. Com certeza, Serafina já havia tomado da cesta e saído para as compras. O porteiro lavava a escada. Ouvia o arrastar do balde, o esfregar da vassoura. E sentia, com certa delícia, o cheiro leve e fresco da água de sabão.

Foi quando uma vozinha moça se alteou, inesperadamente, na cour, cantando a Bela Tonquinesa. Gostava daquilo. Era supersticiosa; sentia-se bem levantando-se ao som de uma cantiga.

Já feliz, por conta das coisas boas que lhe iam suceder naquele dia, enfiou o roupão azul, de meias luas, abriu uma folha da janela e espiou para baixo. O mesmo faziam outros moradores do prédio. O senhor idoso do apartamento contíguo, aquele que todos os dias estreava gravata nova. A ruiva do segundo andar, que pela manhã levava o cachorro a espairecer. A mulher de touca do terceiro andar, que trepava numa cadeira para esfregar os vidros da janela. Espiavam curiosamente. Sorriam…

No meio do pátio, vestido de veludo cor de garrafa, a boina saboiana batida de lado, o cantor erguia os braços e esgoelava-se na canção popular. Quando terminou, agradeceu aos ouvintes, três ou quatro moedinhas de cobre caíram ao seu redor, tinindo alegremente. Correu atrás dos sous.

Valentina foi à bolsa, mas estava vazia: naturalmente, Serafina tinha levado o dinheiro para as compras. Então, dirigiu-se à cozinha, tirou da pia uma daquelas rosas do Barão Dmitri e atirou-a para o cantor ambulante. Este apanhou-a no ar, beijou-a longamente e gritou para cima:

- Agora, uma canção para a bela do primeiro andar!

E, com ternura, cantou a Andorinha de Amor.

Canção pela manhã é de bom agouro. Fez mentalmente um pedido: queria ver Luciano. Depois, como se sentisse de excelente humor, tomou das folhas de papel almaço que estavam à cabeceira da cama e se pôs a folheá-las. "Jardim dos Namorados – peça em 3 atos de Gastão Prieur – Papel da condessa de Luneville – para mademoiselle Valentina". E, por milagre da imaginação, viu Prieur, o marselhês, diante de seus olhos. Tudo nele era dramático. Falava como quem está contando um segredo terrível. Gesticulava. Excedia-se nas apreciações. Para dizer até amanhã, exclamava: "Adeus!" E torcia dolorosamente as mãos. Mas era um bom tipo.

Colocou-se diante do espelho iluminado e leu algumas frases do papel:

- "Caro Martin, se eu lhe pedir que abra a boca e feche os olhos, que pensará você das minhas intenções?"

Repetiu a frase, mudando de entonação.

A seguir vinha a "deixa" do Durand, para lhe dar entrada.

- "Sim. Isso depende. Esse pedido feito por um desconhecido, à noite, na encruzilhada, tem uma significação. Aqui, porém, no Jardim dos Namorados, sob as mimosas em flor, tem significação assaz diferente…"

Com a mão esquerda segurando o papel e a direita arrepanhando imaginário vestido de baile, repetiu a frase, procurando imprimir-lhe um cunho de realidade.

Depois do almoço,saiu para o ensaio. Dali a pouco reuniram-se no palco, umbroso e empoeirado, ainda com o decór da véspera. Os artistas do elenco faziam a leitura dos papéis. O ensaiador, em mangas de camisa, uma pala de celuloide verde a proteger-lhe os olhos, foi para o centro do tablado e, sentando-se ao contrário da poltrona, deu início ao ensaio. As personagens, de acordo com a ordem de entrada, iam desfilando pela ribalta.

Os outros artistas, enquanto esperavam a entrada, formavam grupos. Uns liam jornais, outros discutiam política. A velha Genoveva Montês, exímia em mãe de família, defensora da santidade do lar, chamava à ordem o patusco do marido que todos os dias, antes de sair de casa, lhe esvaziava a bolsa.

Camila, a Camila de Durand, que só era aproveitada em rábulas, isso mesmo raramente, andava de grupo em grupo, a chilrear. Era alta e magra. Usava trajes colantes. E almíscares ácidos. À luz escassa das claraboias, seus cabelos louros, curtos, arrepiados, pareciam ainda mais doidos. Sua cabeça era um crisântemo. Os olhos claros, sublinhados a lápis azul, arregalavam-se para ver melhor. E ela falava, falava…

- Conheci Nanette no ano passado, num chá muito elegante. Ela se apresentou com vestido claro, leve, que era um amor, e chapeuzinho grená, com a aba descida sobre o olho direito. Mais tarde, disseram-me que tinha contratado casamento com um primo alto, de bigodinho retorcido, fraque de casimira inglesa e calças riscadas, sobre sapatos de verniz, com polainas de camurça. Que belas maneiras! Três meses depois, encontrei-a em Longchamps. Era outono e fazia um friozinho muito distinto. Nanette abraçou-me comovida e informou-me de que o casamento não se realizaria, porque a família dele era troglodita, não fazia gosto num casamento de primos. Nessa tarde, ela estava muito bem. Tailleur cinza, com gola branca. Quando saiu, depois do páreo de honra, atirou sobre a cabeça um manton de Manilla que fez sensação em todo o prado. Uma tarde, disseram-me que estava doente: fui visitá-la. Encontrei-a numa toilette fa-bu-lo-sa. Só vendo. Quimono dourado e pantufas cor de romã. Depois, duas ou três vezes, vi-a nas Tuillerias, no Luxemburgo, com uma pele que valia uma riqueza. Uma ma-ra-vi-lha! Não me refiro à dela, mas à da raposa. No mês seguinte, embarcou para a Suíça e eu fui à estação levar-lhe as despedidas. Você não imagina. Estava um amorzinho. Toda vestida de cinzento com aplicações de cor viva: boina e cachecol azul escuro. Sua tossezinha dava-lhe uma graça, uma atração… Meses depois, voltou melhor e o casamento foi celebrado em Saint Germain l'Auxerrois. Música e flores. Um acontecimento. Toda Paris. Ela mostrava-se felicíssima, no seu vestido branco de seda camélia, cauda de três braças, mantida por pequenos chevaliers e demoiselles d'honneur. E véus evanescentes que pareciam perfume-materializados… Ainda nos encontramos algumas vezes nos chás dos costureiros e nos passeios do Bois. Magrinha, triste, mas formidável. Ontem morreu. Vi-a no caixão. Vestia um traje preto que assentava loucamente com a palidez do rosto e das mãos. Cor-re-tís-si-ma! Parecia um figurino.

O escritor perguntou-lhe:

- E você não vê que isso é um drama?

Só então Camila pareceu compreender que debaixo daquelas toilettes tinha vivido um coração humano…

O ensaiador observava-a. Dirigiu-se ao vira-latas e perguntou-lhe:

- Talma, que pensa você daquela dama, ali?

O cachorro choramingou.

- É isso mesmo. Você tem razão. Ela é lamentável…

Depois fez soar a campainha. Sobreveio o silêncio. O ensaio recomeçou. Minutos decorridos, o homenzinho já estava infernizado:

- Você aí… Seu papel é de mordomo, ou de chouriço?

Censurou a Valentina:

- E você? Não se esqueça de que está ouvindo a declaração de amor de um sujeito que vê pela primeira vez. Nunca lhe aconteceu isso na vida?

- Ainda não…

- Pois é pena. Saberia ao menos como uma senhora da sociedade deve comportar-se em semelhante situação.

Gastão Prieur, o autor da peça, perdia a compostura. Mostrava-se indignado. Entregar uma peça delicada como a sua nas mãos de canastrões daquela marca!

- Celerados!

Imagem: reprodução parcial da pagina 5 da edição de 19/9/1944 com o texto

II – Um retrato de duas mulheres

Naquela tarde, quando Valentina regressou do ensaio, leu uma grande novidade nos óculos de Serafina. Esta, que a esperava de pé, diante da bicoca do porteiro, segredou-lhe:

Lá em cima está alguém à sua espera…

- Não, senhora: é uma visita de importância.

- O barão Dmitri, com suas rosas?

- Um frade.

- Um frade?!

A atriz sentiu-se curiosa, subiu a escada e entrou de chofre na sala. O religioso estava encostado à janela e, embevecido, contemplava o avesso do bairro. Ao ouvir o ruído de seus passos, voltou-se e quedou-se a examiná-la em atitude um tanto ou quanto indiscreta. Depois sorriu satisfeito, como se daquele exame tivesse tirado felizes conclusões.

- É a senhorita Valentina?

- Para servir a vossa mercê.

- Muito bem. É assim mesmo que eu a tinha imaginado.

- A que devo a honra da vossa visita?

- Vou dizer-lhe. Mas, como a conversa promete ser comprida, permita que eu me acomode nesta poltrona…

Disse e fez. Era um carmelita alto e seco, de idade contraditória. Tinha o rosto pálido, com um reflexo avermelhado, traindo barba ruiva. Nas maçãs agudas, umas pintinhas de sarda. Olhos apertados e azuis. Mãos compridas, alvas, igualmente com sardas. Dedos finos e longos; nas unhas bem tratadas, sinais quase imperceptíveis, que pareciam restos de tinta, rebeldes ao sabonete. No entanto, para fora do solidéu, aparecia a cabeleira rapada e branca, como pasta de algodão. Para um frade, tanto poderia contar cinquenta como cem anos.

A atriz sentou-se na poltrona fronteira.

- Pois eu estou à vossa disposição.

O visitante continuava a observá-la.

- É religiosa?

- Quanto posso. Compreendereis…

- Foi precisamente o que me informaram as irmãs.

- Sou órfã. Elas me recolheram e criaram, dos treze aos dezoito anos.

- Muito bem. Guarda boas recordações do Asilo?

- As melhores da minha vida. Fazia as refeições a horas certas. Dormia numa caminha muito branca. Ia à missa todos os domingos. Nessas manhãs, vestia-me de azul-marinho, com um laço nos cabelos. Nos dias de festa, tomava parte nas representações no palco do Asilo. Foi aí que surgiu a minha vocação para o teatro. Uma senhora levou-me para dama de companhia. Embirrei com a casa e um dia fugi. Alguém me encaminhou para o teatro. Hoje trabalho no Glatigny. Conhece?

- Já ouvi falar.

- É um teatrinho de bairro. Representa dramas do velho estilo. O que ganho vai dando para viver.

- Ótimo. Vou repetir-lhe uma coisa que, certamente, já é do seu conhecimento. Sua Santidade, correspondendo mais uma vez ao espírito religioso da França, está em vias de beatificar uma flor de virtude e martírio, das muitas que enriquecem a nossa pátria espiritual. É a fundadora do Recolhimento para Velhas Irmãs, a venerável, a venerável…

- … Roselle!

- Como sabe disso?

- Sóror Bonifacia, que era muito velha e a tinha conhecido nos seus tempos de menina, disse-me muitas vezes que eu era o retrato da bem-aventurada…

- Isso é uma glória!

- Não tanto como parece. A boa religiosa, proclamando a semelhança entre eu e a venerável, não deixava de perguntar: "Que mistério divino fez dela uma flor da igreja e de ti, que és o seu retrato em carne e osso, uma garotinha levada da breca?"

O frade riu, mostrando dentes brancos e iguais.

- E você, que lhe respondia?

- Naquele tempo,nada. Suas palavras me envaideciam e me amedrontavam.

- E hoje?

- Hoje, se ela pudesse repetir a pergunta, eu responderia: "Irmã Bonifacia, quem nos fez tão parecidas foi Deus; quem nos tornou tão diferentes foi a vida…"

Encantado mostrou-se o frade.

- E olhe que respondia muito assisadamente…

- Mas eu, para ser franca, tenho medo de que nessa resposta haja uma pontinha de desestima pelas glórias da venerável…

Aí o frade discordou. Pôs-se a falar e a bater palmadas nos joelhos, como se estivesse pontuando os tropos:

- Não e não. Deus tomou de duas flores em tudo semelhantes; de uma, fez a alegria dos céus; de outra, fez a alegria da terra. Que mal há nisso? A bondade de Deus é infinita…

E, bruscamente, voltou ao assunto:

- Como sabe, Sua Santidade está tratando da beatificação da venerável Roselle, fundadora do Santo Recolhimento que, há quase um século, se tornou verdadeiro jardim da pureza e do sacrifício das suas angélicas servidoras. Da venerável não ficou nenhum traço. Nem quadro nem daguerreótipo. Apenas o testemunho de uma ou outra pessoa, cada vez mais raras que tiveram a dita de conhecê-la enquanto viva. Entre elas, a puríssima irmã Bonifacia que, no mês passado, entre as bênçãos, as lágrimas e as preces das suas companheiras, entregou a alma ao Criador. Agora que se aproxima a tão desejada beatificação, temos necessidade de um retrato tanto quanto possível parecido com a virgem de Rioz (N. E.: Rioz é uma pequena comuna francesa do departamento Haute-Saône, região Franche-Comté). Precisamos apresentá-la ao mundo, como foi, para veneração dos seus fiéis. Queremos uma imagem em que a venerável apareça ainda com as graças que a vida monástica fanou, a fim de que toda a cristandade melhor possa venerá-la.

- Começo a compreender. Vossa mercê está fazendo uma coleta para custear o retrato da religiosa. Contribuirei, de todo o coração. Como artista, consegui economizar um pequeno tesouro, que, desde já, dedico a essa obra…

E ia levantar-se, certamente para dirigir-se ao toucador e recorrer ao mealheiro, mas o frade, com um belo sorriso, fê-la sentar de novo.

- Não é isso, minha filha. Vim aqui a mando do nosso amado pastor, numa missão ainda mais delicada. Graças às boas informações que temos a seu respeito e à parecença dos seus traços fisionômicos com os da excelsa venerável, vim pedir-lhe esmola diferente: a de servir de modelo e posar quantas vezes forem precisas par que, pela sua figura, se trace a imagem da donzela, quase beata e futura santa. Compreende?

Valentina esteve vai não vai para desfalecer. Mal teve forças para objetar:

- Mas eu sou uma pobre artista… Trabalho num teatrinho de bulevar… E vivo a minha vida…

- Como devo interpretar as suas palavras?

- Como a queixa de uma pessoa a quem Deus distingue, mas que sabe estar muito aquém da divina graça…

- Preferia que falasse mais claro.

- A irmã Bonifacia, quando eu era menina, dizia: "Que mistério divino fez dela uma flor da igreja e de ti, que és o seu retrato em carne e osso, uma garotinha levada da breca". A religiosa dizia a verdade.

O frade coçou a nuca prateada.

- Ora, minha filha, o que vale é a alma. Na antiguidade, uma grande santa entregou o corpo ao barqueiro, a troco de uma travessia do rio, em seu barco. Deixe-se de criancices. Aceita ou não aceita?

- Está claro que aceito!

- Então, entremos no terreno prático. Sabemos que é pobre, que vive de sua arte. E, como posar diante de um pintor como sendo outra mulher também é representar, você está dentro da sua profissão. Queremos remunerá-la pelo trabalho.

- Jamais aceitaria qualquer paga pelo que me pedem. A graça que me dão é excessiva para remunerar as horas que vou consagrar-lhes. Só pediria uma coisa, se isso fosse possível…

- Diga, pois.

- Pediria uma cópia do retrato, ou melhor, da imagem da venerável Roselle. Nisso não haverá, porventura, algum inconveniente?

- Nenhum. Satisfarei o seu desejo.

O frade levantou-se, curvou-se gentilmente diante da moça e estendeu-lhe a mão branca, de unhas levemente tarjadas de tinta.

- Estamos entendidos?

- Entendidos.

Dirigiu-se à porta e abriu-a para sair, mas, lembrando-se de alguma coisa, voltou-se para a atriz, que o acompanhava:

- É verdade… Ia me esquecendo… Será preciso pedir-lhe silêncio sobre tudo o que ficou combinado?

Valentina empertigou-se:

- Dou-lhe a minha palavra de honra que…

Mas o frade, já familiar, tapou-lhe a boca com a mão, como se faz a uma criança. E ela, animada pela bondade do religioso, arriscou uma pergunta que, havia minutos, lhe queimava os lábios:

- A quem tenho a honra de falar?

- A frei José, mestre pintor da Ordem dos Carmelitas.

E dessa vez desapareceu na escada.

Ao sentir-se só, Valentina foi tomada de súbito acesso de alegria e, não tendo a quem associar, correu à cozinha e encheu Serafina de beijos. A sra. Cassou, que estava esfregando o fundo de uma panela, defendeu-se com o esfregão engordurado, certa de que a patroa havia enlouquecido. Mas não fez nenhuma pergunta. Que teria ela pensado? Ora, pensasse o que quisesse…

À noite, depois de refeição frugal, seguiu a pé para o teatro. O tempo estava amável. Os bulevares cheios de carruagens e transeuntes. Por trás das portas envidraçadas dos cafés, orquestras de tziganos executavam valsas lentas. Nos pequenos bares apinhavam-se homens e mulheres, conversando, gesticulando.

Nos passeios, sob os toldos de listas, defendidos por tapumes de buxos, cavalheiros tomavam o seu bouillon ou devoravam uma costeleta com batatas. Criaturas hirsutas, usando bastões com prego na ponta, fisgavam habilmente as pontas de cigarro do caminho… Vendedores de jornais passavam gritando: "A queda do Gabinete! Discurso de M. Clemenceau!..." Um malandro de roupa bege, chapéu redondo posto para trás, deu-lhe um encontro. Seria Luciano? Voltou-se. Ele sorriu: "V'la la môme…" Mas não era o amante. Também, que lhe importava o rapaz?

O teatrinho ficava no fim do bulevar, onde começavam a aparecer estabelecimentos que não se encontravam no centro: cocheiras, oficinas, hospitais. Havia compridos muros esverdeados onde era proibido colocar cartazes. Os passeios, embora não chovesse, estavam sempre cobertos de uma lamazinha pegajosa, escorregadia, eterna. Por cima dos muros apareciam pontas de coníferas, que os últimos dias de outubro começavam a tocar de amarelo. E vistosos quadros de propaganda: "Bouillon Lllebig", "Chocolat Meunier", "Grands Magazins du Louvre". Quando começou a sentir-se fatigada, chegou.

O Glatigny era uma casa relativamente baixa, patinada pelo tempo,na esquina do grande bulevar com a estreita travessa. Apresentava quatro portas de frente, que davam para um hall.Os espectadores abriam os reposteiros desmaiados e iam para a plateia. A entrada dos camarotes e frisas era pelos lados. E as galerias, pelas últimas portas. Para elas subia-se por escadas escuras, cheias de pontas de cigarros, onde casais conversavam junto aos respiradouros.

Valentina parou diante do teatrinho para admirar o conjunto. Sobre cada porta crepitava um globo incandescente. Entre uma porta e outra apareciam cartazes com letreiros pintados em cores cruas. "La fleur des halles". Um triunfo dos grandes artistas mademoiselle Valentine e monsieur Morand. Os demais nomes do elenco sumiam-se em caracteres menores. Estava agora disposta a tirar a limpo as supostas relações entre Luciano e Camila. Se fosse verdade, faria um frege. Não, não faria. Sentia-se acima dessas insignificâncias.

Atravessou por entre as pessoas estacionadas diante das duas bilheterias, chegou à esquina, tomou a travessa quase deserta àquela hora e alcançou a porta do pessoal. Um homem, de lenço no pescoço e boné caído sobre o olho direito, fez-lhe continência. Valentina sorriu-lhe. Entrou pelo corredor bafiento e chegou ao camarim. O contrarregra observou-a de longe e resmungou qualquer coisa. Era um vilão. Via-a sempre com maus olhos, apontava-a pelas costas, rindo e dizendo coisas que ela nunca chegou a saber.

Fechou-se por dentro. Quando terminou de vestir-se, de caracterizar-se e ia dar o último toque no penteado, ressoou aquela campainha surda que assinalava a sua entrada em cena. Tomou da cesta que se encontrava sobre a mesa, correu ao longo dos bastidores e precipitou-se no palco ao som de equívocas palmas que vinham lá do fundo. Era a claque.

O primeiro ato passava-se no mercado de Paris. Valentina era a freguesa bonita que, todas as manhãs, ia a compras. Durand, que, para os efeitos da peça, era o elegante tresnoitado, em busca de novas sensações, ficava encantado de vê-la: entalava um bocado de vidro no olho direito e punha-se a dizer amabilidades. Ela, um pouco por conta do papel, outro por conta própria, deixou-se a examiná-lo e silêncio. Durand pareceu-lhe acabrunhado. Onde andará a sua Camila? Talvez com Luciano. Haviam de justar as contas.

Mas o ponto, careca, dentro da caixa verde, a pala de celuloide a defender-lhe os olhos, mostrava-se aflito, sacudia energicamente o fura-bolos na sua direção. Foi então que ela apanhou a "deixa" e se pôs a repetir a parte da pobre Margarida. Mas já não era a mesma das noites anteriores. A cólera animava-lhe as palavras. Transbordava do seu ser. E a personagem emergia viva daquelas frases que, durante quinze noites, ela repetira sem colorido nem emoção. Ao terminar o ato, a claque contribuiu com as suas palmas, mas a plateia, vão lá saber porque, participou dos aplausos. Quando saiu da cena, encontrou o contrarregra entre dois bastidores. Estava assustado:

- Que foi isso?

- Não sei. Dei um gemido e o público pensou que eu estivesse cantando…

O fim do espetáculo daquela noite não se pareceu com o fim do espetáculo das noites anteriores. Valentina foi aplaudida. Teve de aparecer no proscênio. Então, sem saber porque, uma frase lhe veio inteirinha à memória: "Eu, senhor, enterneço a terra vil com as minhas lágrimas…" Onde teria lido essa bobice? Ah! Foi numa poesia da Vie Parisienne. Sorriu. Hirto, no seu caminho, Durand olhava-a curiosamente, como a perguntar aos botões que gracinha teria ela feito à plateia, para receber aplausos. E não encontrava.

Camila, chegada à última hora, tinha grandes coisas a mexericar. Corria de um lado para outro. Segredava. Ria. E depois, para que Valentina soubesse que se tratava dela mesma, deixava escapar farrapos de frases: "…tem uma claque particular…" Ou então: "…a casa estava cheia de Duponts, foi ela própria quem os convidou pela lista telefônica".

Quando chegou ao camarim, já encontrou a sua Cassou. A criada, depois de fazer os arranjos da casa, vinha buscá-la. Mudou de toalete, tirou a caracterização e, em seguida, uma adiante da outra, saíram pela porta do pessoal. A travessa estava deserta. Um luar puríssimo caía sobre os telhados, as árvores crestadas, o calçamento de pedras miúdas.

Valentina olhou para cima. O céu estava limpo, a atmosfera azul. Entre as pontas dos ciprestes pairava uma lua anacrônica: no seu disco procurou, como nos tempos da infância, Nossa Senhora fugindo para o Egito, no lombo de um burrico. Era alua dos poetas, que branqueia os bairros, torna fantásticos os jardins, empoa de mistério a sombra das alamedas, enche de encantamento uma determinada janela perdida entre as janelas inumeráveis da cidade…

- Onde andará Luciano?

- Vão lá saber…

Quando chegou ao bulevar, esqueceu-se da lua. Seguiram a pé, tomariam um ônibus lá embaixo, desceram a Rue du Louvre, atravessaram a Ponte Nova, Paris da última década do século mostrava-se esfuziante de alegria.

Atravessaram a cidade sem encontrar conhecido. Valentina estacava na porta de alguns cafés e espiava para dentro. Ninguém… No entanto, aquele era um dos pontos e parada de Luciano. Ao chegarem à esquina da Rue Bonaparte com a Rue Jacob, retiveram o passo diante do quiosque de anúncios teatrais.

Dois homens, munidos de lata de cola e brocha, pregavam o cartaz do dia seguinte: "Hoje – A Feiticeira – peça em 5 atos de M. V. Sardou – na magistral interpretação de Mme. Sarah Bernhardt". E, no centro do impresso, onde o nome do drama e o nome da intérprete eram escritos em letras de palmo e meio, aparecia o retrato de Sarah Bernhardt. Ela estava de chapéu pequeno, com uma asa de andorinha. E ria, mostrando os dentes compridos,brancos e iguais…

Valentina pensou em alguma coisa, suspirou e arrastou a sra. Cassou para a porta de sua casa, poucos passos adiante.

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de 20/9/1944 com o texto

III – O frade e a vedete

No dia seguinte, Valentina estava ainda a fazer o petit dejeneur quando a campainha retiniu. Serafina foi à sala. Era o mensageiro do frei José com o cavalete e duas telas, uma grande, outra pequena. A velha mostrou-se atarantada. Valentina correu em seu auxílio, pois sabia do que se tratava.

- Arme essa almenjarra ao pé da janela.

Deu-lhe uma gorjeta, o homenzinho desbarretou-se e saiu. Depois, quando a criada já havia voltado aos afazeres, ela ficou a examinar as telas brancas, onde sua imaginação já via duas figuras angélicas:

- "Esta" é Roselle, "esta" sou eu...

Ainda estava na contemplação das telas lustrosas, sentindo-lhes o cheirinho característico de óleo e alvaiade, quando a campainha soou novamente. Foi à porta e abriu-a. Entrou frei José com a caixa das tintas e um rolo de pincéis. O carmelita cumprimentou-a com efusão.

- Deus também é pintor. Encontrei-o ali, no cais Malaquais, a manusear alfarrábios. Quando Ele chegou, as árvores ficaram amarelas, o rio tornou-se uma palheta com todas as tintas; sobre as águas passavam, lentamente, as chaiandes vermelhas e os barcos prateados de Charenton. A Fonte Nova pareceu-me caiadinha de fresco e, sobre ela,vi a sombra de Notre Dame, escura como se fosse recortada de uma noite de outono, sem lua nem estrelas...

Valentina sorria do entusiasmo do frade.

Depois, encarando-a:

- Como sabe, a Arte é religiosa...

Mas interrompeu-se. Mediu a sala a passos largos. Estudava efeitos de luz. Escancarou a janela, debruçou-se sobre o pátio interno a fim de prender as venezianas nos fechos. Arrastou o cavalete para um canto, de modo que a tela recebesse em cheio a claridade. Puxou o canapé para a outra banda. Sorriu de contentamento. E voltou a atenção para a moça.

- Sente-se aí, minha filha. Assim.

- Com os braços cruzados no seio?

- Espere, não tenha pressa, vamos estudar...

Foi à caixa das tintas, tirou um impresso cujo título parecia aprisionado pela cercadura de vinhetas, de mau gosto. "A vida virtuosa e edificante da bem-aventurada Roselle, fundadora do Recolhimento para as santas madres envelhecidas na obra de salvação dos filhos de Deus". Leu um trecho, cheio de unção:

"A donzela nasceu de pais bondosos e tementes a Deus. Passou a infância num velho solar que ainda hoje os romeiros visitam todos os anos. É uma imensa mansão do século XV, cercada de fossos, rodeada de vinhas. O pacífico burgo parece dormir tranquilamente à sombra das suas torres denteadas que o tempo cobriu de grinaldas de rosas e ninhos de andorinhas. Depois da infância, cercada do desvelo materno, votada inteiramente às ocupações belas e puras da idade, cantando no coro da histórica igreja local, visitando os nobres a quem dava sábios conselhos de submissão à vontade de Deus, de conformação com as dores e trabalhos do mundo, chegou à idade de contrair matrimonio. Era de talhe esbelto e feições atraentes. Ela, porém, mais voltada para as belezas do céu do que para as agruras da terra, houve por bem recusar os brilhantes cavaleiros que se apresentaram no solar paterno, na ânsia de tê-la por esposa. Enquanto as outras castelãs consumiam as horas em tertúlias e devaneios, tão próprios do verdor dos anos, ela se fez prisioneira voluntária de sua cela e ali, de corpo e alma, dedicou-se às preces, aos jejuns e às mortificações que, sabidas pelo povo e repetidas ao pé do fogo, lhe deram odor de santidade. Por morte dos pais, doou as imensas terras à Santa Madre Igreja e transformou o solar em remansoso abrigo, onde encontram amparo e segurança muitas velhas irmãs, depois de uma existência inteira a serviço da santa religião de Nosso Senhor Jesus Cristo".

Valentina esperava.

- Como vê, a virgem só mais tarde recebeu os véus do noviciado. A parte mais bela de sua existência foi vencida como leiga. Não devemos apresentá-la aos fiéis já no fim da vida, mas no esplendor da mocidade, cheia de beleza e resplandecente de fé. Acho que esse seu vestido azul escuro afogado está muito bom. É modesto e bonito. Agora, para atender aos usos da região, seria recomendável uma toalha branca, a fim de velar com humildade as graças da carne. Tem à mão um daqueles panos com que as jovens de Rioz envolvem os cabelos e dão aos olhos o realce da sombra?

Valentina foi ao interior da casa e voltou com o linho pedido pelo frade. Desdobrou-o cuidadosamente.

- Servirá isto?

- Ótimo.

E frei José, com as mãos bem feitas, envolveu a cabeça da artista naquelas alvuras, avivando as dobras levemente azuladas e atirando as pontas para trás dos ombros. Tomou de uma madeixa, torceu-a e passou-a por sobre a orelha como um cacho de uvas.

- Em 1830 era assim... Um traço de beleza não compromete a santidade. Deus está em toda parte, isto é, no que há de mais belo. Um poeta já disse que a beleza é Deus manifestado. Eu gosto dos poetas. Agora vejamos os braços. Por que não apresentar um ramalhete de flores, como fazem as santas, desde os tempos clássicos? Ah! Precisamos de flores! Poderia ter-me ocorrido trazê-las do convento, onde as cultivamos várias e ricas.

A moça foi ao fundo e perguntou:

- Serafina! Você trouxe flores do mercado?

- Não, senhora. Mas temos aquelas...

- Aquelas, não!

Frei José quis saber que flores eram aquelas. Não concebia flores que não fossem dignas de figurar num quadro. Ao mesmo tempo, a criada entrou, hirta, gélida, com uma braçada de rosas.

- Ótimas!

- Mas essas rosas...

- Que têm elas?

- Vou contar a vossa mercê. Todas as noites, enquanto vou ao teatro, um admirador discreto que se diz o barão Dmitri, procedente dos Balcãs, coloca ou manda colocar um ramalhete na minha porta. Isso já vai para uma semana. E com toda regularidade. Mas nunca me procurou, nem me aborreceu. Em todo caso, acho que tais flores...

O frade interrompeu-a, com alegria:

- Vamos fazer uma surpresa ao fidalgo?

- Como?

- Sem que ele saiba, multiplicaremos, eternizaremos as suas flores... Um dia, quando ele morrer e chegar ao céu, ficará perplexo. Encontrará não uma braçada mas um jardim de rosas, das rosas com que na terra cortejou a uma artista. Imagine o seu pasmo!

E o religioso, com o ar brejeiro de escolar que pregou uma peça em alguém, ajeitou o ramalhete no colo da atriz. Mas, nesse afã, feriu o dedo. E, instintivamente, levou-o à boca, dizendo:

- São rosas de Paris, lindas mas cheias de acúleos.

- Rosas de Paris...

- Elas vêm de fora-de-portas. Os auvergnats cultivam-nas em suas hortas, no estrume das vacas. Os casebres parecem oratórios; os saloios lembram figuras evangélicas. Ao amanhecer, partem para o mercado. O homem de japona e a mulher de lenço na cabeça, viajam na boleia. O cavalicoque está contente, as ferraduras repinicam no caminho empedrado.

O veículo vem atulhado de verduras, legumes e flores. São montes de repolhos, braçadas de tronchas, de brócolis, de chicórias e de alfaces. Sacas de pimentões manchados de sangue, ervilhas granuladas e vagens tenrinhas; cestas coloridas de rabanetes escarlates, de cenouras cor de oca, de berinjelas que parecem língua de enforcado. E flores mimosas, de hastes decepadas no momento da partida. Esses enfeites da horta são os pingentes. Viajam como de favor, na parte traseira da carroça. Ainda estão lustrosas do orvalho. Espalham pelo caminho, além do cheiro agreste que lhes é peculiar, uma emanação característica de estábulo, de terra de canteiro, de caules massacrados. Ao longo da viagem, aos solavancos, as pobrezinhas são sacudidas, como vassouras de luxo, para espanar a neblina da manhã...

Lá vêm as alvas margaridas, as róseas flores de ervilha, que parecem modeladas em cera, os gerânios que ainda trazem nas raízes e nas folhas um pouco do barro vermelho em que nasceram, as rosas-chá com a sua palidez de vertigem, abrindo-se em pétalas macias. E, para acalmar as flores, lá vêm as plantinhas hortenses, as losnas, as salsas, os cominhos e aquela delicadíssima erva-doe, de folhagem diluída, que em lugar de erva-doce, melhor poderia chamar-se erva-cheirosa.

Tudo isso vem aos trancos. A lanterna pendurada na traseira do carro dança na estrada, como um fogo-fátuo. O animal faz todas as madrugadas esse trajeto; já sabe o caminho de cor. A carripana dirige-se ao mercado. O cavalo cochila nos varais. O homem da japona e a mulher de lenço na cabeça cochilam na boleia. E, no céu fundo, a estrela d'alva sorri. O homem, a mulher, o cavalo e a estrelinha encontram-se todas as manhãs naquela mesma estrada. São velhos conhecidos...

Valentina ajeitou mais uma vez o pano de linho, inclinou docemente a fronte e se pôs a contemplar as rosas. Por aquela altura, o frade já se havia transformado em pintor. Olhava o modelo, voltava-se para a tela, rabiscando nervosamente com o fusain. Mas, em certo ponto, parou com o trabalho:

- Não. Assim não. Está muito "parada".

E como Valentina se limitasse a sorrir da sua ansiedade, ele perguntou:

- Quantos anos tem?

- Vinte e três anos.

- A mocidade é uma forma de alucinação, mas não é perigosa - passa com o tempo.

- Vossa mercê, que é tão conservado, não conhece a fórmula de algum elixir de longa vida, para perpetuar essa... doença?

- Não conheço. E se conhecesse, não a recomendaria a ninguém. Já ouviu falar em Raimundo Lulio?

- Não, senhor.

- Pois eu vou repetir-lhe a história do logro que Deus pregou nesse santo filósofo...

Falando, distraindo o modelo, o frade contou:

- Raimundo Lulio, que viveu no século XIII, foi um grande cultor da Ars Magna. Ars Magna, ainda no fim da Idade Média, era a cabala, a goetia, a magia cerimonial. Ele escreveu e viajou. Viajou e escreveu. Sua obra se compõe de 440 volumes, alguns tidos, no entanto, como apócrifos. Na iluminada vagabundagem, percorreu a Espanha, a Itália, a França e, já no fim da vida, as terras da África. Foi autor de sistemas filosóficos. Teve visões. Desenhou pentáculos, criou mantras. E ao descambar para a velhice, surpreendeu nos símbolos das misteriosas criptas o segredo da vida eterna.

Sentiu-se feliz. Julgou-se acima do tempo e das contingências humanas. Construiu um mosteiro na ilha Maiorca (N. E.: uma das Ilhas Baleares, arquipélago da Espanha no Mar Mediterrãneo). Essa ilha é um jardim flutuante, feito de pedra, coberto de azul, com flores de sol. E ali se instalou para atravessar serenamente as idades. Mas... foi envelhecendo. A fisionomia se lhe amalgou sobre os ossos da caveira. Os cabelos embranqueceram. A espinha arcou. O queixo de rabeca entrou de procurar o nariz de falcão. E ele todo se alarmou.

Certa noite, diante do círculo mágico, à claridade açafroada dos sete luminares, o frade interrogou seu Daemon familiar:

- Por que mentiste? Por que me promete vida eterna?

- Não menti. Concedi a vida eterna que pediste.

- No entanto, olha para mim: repara como estou velho!

- Pediste a via eterna. Viverás eternamente. Daqui a cinquenta anos serás como um figo seco. Daqui a cem anos, serás como uma tartaruga. Mas viverás. Viverás sempre!

E o Daemon riu com uma risada de ânfora que se estilhaça.

Só então Raimundo Lulio compreendeu que vida eterna quer dizer velhice eterna. Desiludido, abandonou o mosteiro, atravessou o Mediterrâneo e foi à África, a fim de catequizar os infiéis. Logo depois, no porto de Bougie (N. E.: cidade portuária também denominada em francês Béjaia e em árabe Bujiya, no litoral mediterrâneo da Argélia, a Leste de Argel ou Alger, e famosa desde a Idade Média pela produção da cera bougie, para confecção de velas), que fica a algumas léguas de Argel, uns mouros de má catadura, sem levar em conta os seus oitenta anos, fizeram-lhe aquilo que ele então mais desejava - lapidaram-no. Isto é - mataram-no a pedradas...

O frade e a vedete estavam nessa doce intimidade quando a porta descerrou-se e uma cabeça espiou para dentro. Valentina exclamou:

- Luciano!

O recém-chegado entrou sem tirar o chapéu e foi estacar no meio da sala. Olhou desconfiadamente ao redor de si e, maçado com o que via, atirou a ponta de cigarro no chão. A artista já havia abandonado a posição de modelo, o ramalhete de rosas, e, diante dele, esforçava-se por envolvê-lo num abraço.

Luciano acabou por perguntar-lhe:

- Eu não serei demais nesta casa?

- Tu? Jamais!

E, tomando-o pela mão arisca, fez as apresentações:

- Luciano, meu melhor amigo; frei José, mestre pintor dos Carmelitas.

O rapaz, sem dar atenção a essas palavras, nas quais havia uma pontinha de ansiedade, examinava a cena, com olhinhos piscos e verrumantes, brilhando no rosto esverdeado. Tinha os maxilares largos e sólidos. A cada frase, o rosto se lhe repuxava, a boca ficava de viés, como a escarnecer, mostrando dentes fortes e escuros.

- Muito bem... Então, pinta-se um retrato... Posso saber com que fim?

- Naturalmente. É para o cartaz da nova peça.

- Hum...

- E você, por onde andou?

- Por aí, na sombra.

- Doente?

- Não. Nas grades. Vendi uma partida de guarda-chuvas, e o comissário assentou que o lote tinha sido desencaminhado de um dos armazéns da gare do Norte. Lembra-se? O idiota ligou o caso àquele golpe da "clique", em 23 de março. Foi um trabalhão para justificar a procedência da mercadoria. Gastei os tubos...

Andava de um lado para outro, gingando, fazendo ranger os sapatos de couro de bezerro. Foi ao espelho, deu uns puxões na roupa bege, muito cintada. Desfez e refez o nó da gravata, com uma ponta para cima, oura para baixo. E, diante do cristal, disfarçadamente, observava o frade. Ao terminar, dirigiu-se a Valentina:

- O tipo é frade no duro, ou é de araque?

Frei José, o carvão esquecido na mão direita, contemplava a cena e sorriu.

Depois, Luciano plantou-se diante da tela cheia de rabiscos de carvão, acendeu um cigarro e, erguendo-se e abaixando-se nas pontas dos pés, como a embalar-se, foi perguntando a Valentina:

- Afinal, quem é que paga isto?

- Ninguém.

- Você não paga para ser retratada?

- Não.

- Ele não paga para você servir de modelo?

- Também não.

- Não compreendo. Mas há de haver um interessado. Quem é ele?

- A arte.

Um olho subiu, outro desceu. A boca fez-se-lhe oblíqua. Reacendeu o cigarro que se havia apagado. Depois, voltou-se para frei José:

- E o seu chefe não lhe proíbe de andar por esse Paris, a pintar o retrato das belas?

- A arte é religiosa. Vá ao Louvre, ao Louxenbourg. Admire a todos os frades que serviram a Deus com a palheta numa mão e o pincel na outra...

- Não são severos os regulamentos da sua Ordem?

- Severíssimos. Mas não proíbem que os entomologistas andem pelos campos a caçar borboletas. Que os historiadores envelheçam nos museus e nos arquivos, que os fitopatologistas vão para o Medoc a estudar a filoxera das vinhas. Nem que os artistas fixem a beleza eterna das coisas efêmeras...

Luciano voltou-se para Valentina:

- E você, coisa efêmera, não tem receio de que o seu retrato venha a aparecer nas revistas, com asas brancas, uma rodela dourada ao redor da cabeça? Que diria o empresário do Glatigny? Que diriam as suas amigas? Já pensou nas consequências?

- Não seja mau, Luciano.

- Eu, por mim, você sabe...

A verdade, porém, é que se sentia vexado naquela sala. Não tendo mais que fazer nem que dizer, caminhou para a porta. Ao sair, voltou-se para dentro e declarou:

- Vou-me embora. Não volto mais. Isto aqui está cheirando a incenso...

Valentina correu para ele, mas já havia desaparecido na escada. Ainda gritou:

- Luciano! Vá buscar-me hoje, à meia noite, no teatro!

Mas não obteve resposta. Regressando ao canapé, retomou as flores, colocou-se na primitiva posição, a fim de que o pintor continuasse a obra. E, numa voz acabrunhada, procurou desculpar-se:

- Peço a vossa mercê releve essas coisas: como vos disse, elas fazem parte da nossa vida. Luciano não é mau como parece. Apesar de tudo, eu sei que ele é bom rapaz.

O frade já estava diante da tela, o carvão entre os dedos, a cobri-la de pequenos riscos.

- Minha filha, Deus é como uma fonte. Muitos vão a ela e só podem aproveitar das suas águas de acordo com a vasilha que levam. Uns, como Roselle, canalizam-na para benefício de muitos; outros, enchem um balde, uma bilha, uma taça, ou um pequeno dedal, consoante a capacidade dos seus recipientes. Há os que não levam nada, os que vão à fonte de mãos vazias. É a esses que julgamos maus. No entanto, a culpa nem sempre é sua, pois ninguém lhes deu vasilha para colher a luminosa água...

- Eu amo a Luciano assim mesmo, com seus defeitos.

- E faz bem. O ser amado é como um ser sobre o qual incide o sol - por mais vil que seja, resplandece. Não se esqueça, também, de que a gente se aproxima pelas qualidades, mas na hora amarga da separação o que mais prende são os defeitos.

E, enquanto falava, o carvão rangia sobre a superfície branca da tela, batida de chapa pela claridade azul que vinha da janela.

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de 24/9/1944 com o texto

IV – A cadeira vazia

Todas as manhãs, Frei José fazia a sua visita à vedete. Depois dos cumprimentos, tomava a palheta das tintas pendurada no cavalete, espremia sobre ela alguns tubos e, movendo com paciência os pincéis, retomava o trabalho. Valentina, trajando o vestido azul, muito afogado, sentava-se na poltrona diante da tela, e se quedava a ouvi-lo. Já não precisava acalentar nos braços o ramalhete de rosas. Nem envolver a cabeça no pano de linha.

- Agora, eu só necessito de sua alma...

Ela cruzava as pernas e acendia uma cigarrilha.

- Frei José, não será pecado fumar?

- Não. O fumo é a imagem do efêmero da vida. Devemos ter sempre diante dos olhos a irrealidade do mundo...

- E por que vossa mercê não fuma?

- Já fumei, depois deixei de fumar.

- Tem força de vontade.

- Eu tenho mais força de vontade do que os outros; já consegui deixar de fumar umas oito vezes...

Um sábado, a imagem de Roselle e a cópia prometida a Valentina ficaram prontas. No entanto, o frade não pôde levar a tela porque a tinta ainda estava fresca. Ficou assentado que no dia seguinte viria pegar a pintura. Já na porta, despedindo-se, a atriz teve uma ideia.

- Frei José, amanhã venha ao meio-dia e almoçará conosco. Quer nos dar essa honra?

O religioso aceitou.

No dia seguinte, ainda na capa, Valentina sentiu que o domingo seria maravilhoso. A réstia de luz batia no espelho e acendia o clima frio. O tintureiro, que passava invariavelmente às 10 horas, pela Rue Bonaparte, soprando fracamente a trompa, era como um [...] de alegria. Grupos de homens e mulheres chegavam e [...] conversando, animadamente. Podia ouvir-lhes as exclamações [...]. Quando abriu a janela, a luz entrou pelo quarto e foi estender-se no chão, como larga toalha [...]  (N. E.: algumas palavras ilegíveis no original)...

A criada, compreendendo que a patroa tinha-se levantado, foi saber o que deveria fazer para o almoço.

- Serafina (a sra. Cassou estava no seu papel de cozinheira), desejo que improvise um grande pequeno-almoço, pois frei José nos dará hoje a honra de sua companhia. Passe pela rotisserie, compre um capão de forno, um lombo de porco entrouxado e uns borrachos na manteiga. Depois, uma grande salada. E uma garrafa de Médoc. E frutas. E uma braçada de flores

A velha, como de costume, foi à bolsa da patroa, ao pé do espelho, e esvaziou-a. Sem pressa, sem dizer palavra, sumiu pela porta da escada.

Valentina tomou da saboneteira, da escova, do tubo de dentifrício e dirigiu-se ao banho. Ouviu-se lá dentro um ruído de chuva sobre mármore. Quando voltou, parecia outra. Tomou dos seus papéis e, diante do espelho, estudou algumas frases. A première da peça de Gaston Prieur estava anunciada para o dia seguinte. Havia expectativa. Alguns jornais já tinham falado sobre ela: o rapaz gozava de prestígio entre os críticos.

Serafina já tinha voltado das compras. Na cozinha, havia grande atividade. Ouviam-se ruídos de pratos colocados sobre a mesa, talheres, esguichos da torneira. Valentina lembrou-se de alguma coisa:

- Serafina, são quatro talheres: eu, você, o frade e, possivelmente, Luciano.

Cantavam os sinos de Sain Germain des Prés quando a campainha soou e frei José fez a sua entrada. Vinha seguido de um mensageiro. Este entregou a Serafina um embrulho, recomendando-lhe que não o agitasse.

- Pode-se saber o que é? - perguntou Valentina, a rir.

- É vinho. Não diga a ninguém. Vinho produzido pela Ordem no seu mosteiro da Borgonha. o vinho está ligado ao frade, como o frade está ligado ao vinho. Até mesmo a nossa casa chama-se mosteiro, uma palavra que lembra mosto.

- Então, posso beber sem receio de pecar?

O religioso sentou-se e disse:

- Vou repetir-lhe uma pequenina história...

Valentina riu:

- Assim esperaremos melhor pelo almoço.

- Depois de alguns dias à mercê das ondas, a jangada perdida foi acostar a um estranho porto que não constava do mapa. Os nativos deram aos náufragos amistoso agasalho. E, como o seu suplício era o da sede, apenas salvos, correram ao chafariz mais próximo e trataram de dessedentar-se. Tiveram, porém, uma surpresa... Da torneira pública começou a correr absinto! Divertiram-se com a novidade, mas, com franqueza, não se sentiram satisfeitos.

No segundo chafariz, já com menor entusiasmo, viram a bocarra de estanho esguichar um jato de vinho. No último chafariz (a surpresa já se havia tornado em azedume) verificaram que da carranca jorrava cerveja. Tais bebidas eram o que de melhor havia pelas adegas do país, mas não lhes mitigava a secura, necessitavam de água, água chilra, água do pote!

Fazendo-se compreender dos nativos, os náufragos levaram a efeito agradável descoberta: na misteriosa localidade havia também água potável, ótima, mas tão minguada e escassa que era vendida em estabelecimentos especiais, a peso de ouro. Foi uma alegria para os recém-chegados. A fim de adquirir essa água pela qual morriam, os pobrezinhos venderam o nada que lhes sobrava e, com isso, apuraram algumas moedas.

Entraram num bar, isto é, numa casa que vendia água. Havia ali terríveis bebedores: eram uns viciados a quem a população olhava de esguelha. Encostavam-se pelos balcões, com ares mofinos, a chuchurriar litros de água pura, em altos copos de cristal, nos quais acrescentavam punhados de granizo. Esses eram os estroinas, os valdevinos que, para escândalo da gente morigerada, desprezavam a bebida comum das torneiras públicas.

De uma feita, os estrangeiros assistiram a certa cena que os arrepiou. Um homem da terra entrou no bar, atirou ao balcão a moeda e recebeu, em salva de prata, o alto copo de cristal, contendo preciosa água. Sequioso, levou o copo à boca mas em seguida fez tal carantonha que a todos amedrontou. Seus olhos fulminaram o dono da locanda. Depois, possesso, arguiu-o:

- "Birbante! Você quer me enganar que não bota vinho nesta água?"

Nessa mesma tarde, os náufragos atiraram novamente a jangada às ondas e partiram à aventura, na esperança de encontrar ventos que os levassem a alguma terra feliz, isto é, uma terra onde as torneiras jorrassem água, água pura, água que cai do céu ou que corre, alegremente, pelos vales em flor...

Serafina apareceu na porta:

- O almoço está servido.

A mesa era pequena, com quatro cadeiras e quatro talheres. Valentina deu ao religioso o lugar de honra. Fez Serafina amesendar-se, pois ela já havia retomado o seu papel de sra. Cassou. Sentou-se, igualmente, e explicou:

- Frei José, não repare, mas essa cadeira vaga está reservada a uma pessoa que até há pouco nos dava, aos domingos, o prazer de sua companhia, mas que ultimamente anda um tanto arredio...

O frade sorriu:

- Fica entendido. Beberemos o primeiro copo de vinho à saúde dessa pessoa.

E, por falar no assunto, levantou-se, foi a um móvel, tomou do embrulho que havia trazido e, com gravidade, desembrulhou-o. Eram dois berços de vime. Deitadas, como crianças, lá estavam duas botijas de barro. Ele transportou-as para a mesa, com cuidado, para não agitar o líquido. E, confidencialmente:

- Da safra de 1877..

- Que pena! Esquecemos de comprar gelo!

- Diga antes - que felicidade! Vinho velho quer-se consoante Deus no-lo concede. SErve-se em taças quentes. Se fosse possível...

A sra. Cassou foi aquecer uma panela de água. E enquanto a operação se prolongava, o frade e a vedete iniciaram o almoço. Dois vasos alegravam a mesa com as últimas flores do outono. Eram coquelicots e paquerettes. Uma cesta, ao centro da mesa, transbordava de frutas. A claridade avivava as flores, as maçãs e as porcelanas. E faiscava no metal polido dos talheres. Pela janela escancarada viam-se outras janelas internas do prédio. As inquilinas tinham posto colchas e travesseiros para arejar. A ruiva embrulhada num roupão cor de canário, abriu grande leque de plumas sobre o peitoril; as lantejoulas coruscaram ao sol.

Frei José, esperando que Valentina trinchasse o capão, contemplava aquela cena. E, olhos perdidos no passado, lembrou-se de alguma coisa...

- Quando eu era "spahl"...

- Vossa mercê serviu na África?

- Servi. Faz tanto tempo... Lá o céu é mais azul. O sol cai obliquamente sobre o casario, estendendo imensas fitas de sombra. As construções são baixas, de uma brancura de cal virgem. As portas estreitas e altas terminando num recorte de muralha em forma de coração. De todos os pontos vê-se uma torre quadrada, igualmente branca, com cúpula de ardósia azul. À porta desse templo, pelo primeiro crescente de maio, há gente prostrada de braços estendidos para a frente; os turbantes erguem-se e abaixam-se, sussurrantes como savana batida pelo vento.

Ao virar uma esquina, aparece o Mediterrâneo. É o porto. Ali se reúnem as feiras. Um formigar de todas nações. O ar impregnado de maresia, de pimenta, de cravos-da-Índia, de manjares que só de haurir-lhes o perfume o caminhante sente logo no paladar, o travor dos temperos e o queimor das especiarias. Ouvem-se os pregões cansados dos mercadores. A conversa mole dos mendigos. A grazinada dos cameleiros, dos aguadeiros, dos vendedores de tâmaras.

Os homens vestem albornozes de linho. Uns apresentam a cabeça envolta em turbante do mesmo estofo. Outros contentam-se com o fez vermelho com uma borla na ponta de um cordão. Essa ente discute, xinga, gesticula, brande o bastão por cima do mar de cabeças. E o vozerio é ensurdecedor.

Depois, quando a tarde cai, as sombras espicham diante dos pés. É a mornidão, o silêncio. Só se escuta o raspar de sandálias sobre a areia solta das vielas. Ao longe, batida pelo sol passa uma mulher. Parece dourada. O vento lhe agita as vestes como asas brancas. Magra. Tisnada. Enxuta de carnes. Olhos profundos como os abismos da noite. Entra numa daquelas portas estreitas e altas, que terminam em coração. O viajante sente curiosidade e se aproxima. A porta é de madeira espessa e está apenas cerrada. Lá para dentro há o pátio. As palmeiras abrem os leques verdes sobre a casa. O curioso se aproxima. Sente no rosto a umidade de uma fonte interior. Ouve o ciciar dos repuxos. Quando o crescente paira sobre a cúpula de ardósia, pode ouvir também o queixume das bandurras e o garganteio comprido - muito comprido - de um homem do deserto.

Em 1830, Argélia era turca. Certa noite, numa discussão, o bei de Túnis deu uma pancadinha, com a ponta do leque, no cônsul francês, sr. Deval. A França vibrou de indignação e mandou uma frota de 104 navios com 40.000 homens de desembarque, e a Argélia foi tomada. Tudo isso por causa de um leque como aquele que ali está, um leque que não valeria "cent sous" nas lojas do Boul Mich...

A água da panela já estava quente. A sra. Cassou escaldou as taças e colocou-as diante dos convivas. Frei José, como se estivesse no altar, pôs-se a enchê-las religiosamente.

- Bebamos com doçura, com muita doçura. Este é um prazer que, com certeza, Deus nos descontará na vida eterna...

Encheu novamente as taças.

- Agora, um brinde. Bebamos a quem devia estar sentado nessa cadeira vazia, fazendo votos para que a sua ausência não se prolongue e a sua volta seja festiva, como a do sol, depois de uma semana de chuva!

No entanto, depois daquele brinde, uma sombra veio do passado e sentou-se silenciosamente na cadeira vazia. Todos sentiram o frio incomodativo da sua presença. A sra. Cassou abismou-se no prato. O frade sentiu que era demais no almoço. Se ele não estivesse ali, talvez a cadeira vazia estivesse ocupada. Valentina, com uma pontinha de melancolia, recordava a figura banal de Luciano. Quem lhe adoçaria os ímpetos da almazinha primitiva? Quem lhe passaria a escova na gola do casaco? Quem lhe apararia as unhas da mão direita? Naturalmente, àquela hora, estava sentado num bar e entornava copos de "vérte". Ou andava pelas baixias, a perder um dinheiro que não tinha. Ou ainda, em roda de estroinas, aventurava-se em negócios escusos.. Como poderia ele viver, nesse terrível Paris, sem uma afeição? Sem um devotamento?

A conversa languesceu. Uma frase ou outra. Todos pareciam distantes. Depois da compota, o frade sobressaltou-se.

- Que horas serão?

Valentina não tinha relógio, regulava-se pelos sinos de ouro de Saint Germain de Prés. Mas os sinos, havia meia hora, não tocavam. Deviam estar doentes, ou mortos. Foi a sra. Cassou quem os salvou. Correu à sua bolsa de velha coroca e de lá trouxe uma "cebola" que, ao longo de quatro gerações, ia passando de pais a filhos. Ela escondia o seu relógio, como se fora uma vergonha. Mas, naquele domingo, entre íntimos, apresentou-o ao frade. Este tomou-o cuidadosamente, e quedou-se a observá-lo...

Era um relógio de algibeira, daqueles que, há um século, se fabricavam em Viena. Talvez, um dos primeiros pequenos relógios fabricados na Áustria, nos fins do século XVIII. Pequeno porque, naquele tempo, só se fabricavam mostradores para as torres das igrejas e dos castelos; no entanto, apesar de "pequeno", tinha bem duas polegadas de diâmetro e meia polegada de espessura.

Os ponteiros eram de aço, com coloridos alegres. A numeração, em algarismos romanos, parecia feita para ser lida a dez metros de distância. Tinha o peso de uma maçã e as suas pancadas, mais de um século depois, isto é, com o maquinismo suficientemente gasto, ainda poderiam acusar a presença do portador no canto mais remoto da nave de uma igreja. E, no esmalte do mostrador, havia toa uma página ilustrada de rosas, anjos e passarinhos.

Frei José teve pena de não conhecer a ciência sutil que os magos dizem possuir. Fechando o relógio na mão, poderia recuar na eternidade, enfronhando-as, ao arrepio do tempo, na misteriosa existência daquele objeto. Que interessantes coisas não contaria ele a quem pudesse acompanhar a sua história, ao inverso dos anos? Sairia daquele almoço, cairia numa granja da Normandia e ali passaria muito tempo, nas mãos de velhos que se iam tornando moços, de moços que se reintegravam na eternidade.

Entraria pela casa do antiquário. Depois, pela gaveta do colecionador falecido. A seguir, a velha cômoda da "fermé", os móveis que se sucedem no recuo do tempo. Um dia, e vinham pelo mar, num navio de velas. Os salões da capital da alegria. Os passeios no Pratter. O mostruário de uma loja, em 1790... Depois, aquele soldado que o adquiriu, porque tinha de vir á França, defender a formosa rainha... E, sempre caminhando para trás, o observador atônito veria a pobre máquina desintegrar-se na meas do mestre relojoeiro, em mil misteriosas peças...

Frei José, distraído, devolveu o relógio à sra. Cassou. Mas, caindo em si, pediu-lhe novamente:

- Perdão... Esqueci-me de ver uma coisa...

Ela tornou a entregar o relógio.

- Que tinha esquecido vossa mercê? - perguntou Valentina.

- Tinha-me esquecido de ver as horas... Faltam vinte para as duas.

Frei José levantou-se, agradeceu a hospitalidade e ia despedir-se quando seus olhos se dirigiram para a janela. Observou qualquer coisa de estranho, fez um leve cumprimento e sorriu.

Valentina olhou também. Em todas as janelas que lhe devassavam a casa, havia gente. os vizinhos estavam apreciando aquele almoço, onde havia um frade. A ruiva tinha tapado a boca com a mão, afetando o jeito de quem abafa uma exclamação de escândalo.

Frei José dirigiu-se à sala, tomou a tela grande e envolveu-a num exemplar de La Croix que, para isso, trouxera bem dobradinho na imensa algibeira de burel. Depois, olhando a cópia, aconselhou a Valentina.

- Olhe, menina: quando contemplar esse retrato, não venere a si mesma, mas àquela que está no céu, numa corte de anjos e serafins. Quanto ao cavalete e à caixa de tintas, o mensageiro virá buscar amanhã. Adeus! Seja feliz.

Abriu a porta, fez ainda uma vênia e desapareceu na escada, dessa vez para não voltar.

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 26/9/1944 com o texto

V – O segredo de Valentina

Valentina levantou mais cedo do que costumava. Paris adoecia de Outono. Começava a esfriar. Nas mimosas que se viam para lá do pátio, reinava inquietação de asas. Um melro desceu do beiral, pousou no rebordo da janela, espiou para dentro. Era um passarinho de maus costumes. Parecia que estava de casaco comprido, as mãos nos bolsos, o gorro batido de banda. Esquadrinhou curiosamente os cantos da sala e, deparando com a dona da casa a pentear-se, diante do espelho, deu-lhe ruidosa vaia e alçou voo para o telhado.

Luciano - pensava a vedete - estava mesmo zangado. Tudo parecia desfeito entre ambos. Mas onde andaria ele, depois de livrar-se das unhas da polícia? Sofria com tais pensamentos. Após o almoço, dirigiu-se ao teatro. Tomou o ônibus Notre Dame des Victoires, desceu na esquina do bulevar, fez a pé o resto do caminho, uns quatro ou cinco quarteirões.

Mas Paris adoecia de Outono. A tarde já não era dourada. As cercas de buxo tinham perdido o verde, mostrando um emaranhamento de caules finos e escuros. Sobre elas, esgalhavam-se as mimosas, com sua folhagem esturricada. Nos jardins dos palacetes, tinham desaparecido os tufos de flores miúdas, aquelas almofadas azuis, amarelas e escarlates, de que a parisiense tanto gostava. As crianças não brincavam nos balanços. Os cães não saltavam entre os canteiros. As nurses não bocejavam sobre os romances água-de-rosas. Aconchegou o regalo. Que frio...

Chegou, afinal, ao Glatigny. O ensaio havia começado. E, como era o último, um ensaio geral, deveria prolongar-se até tarde. Só teria tempo de ir jantar e voltar, correndo, para a premiére. Passando pela bilheteria, observou desusada concorrência. Viu homens e mulheres diante dos guichês. Uma voz esganiçada perguntou:

- Toma parte na peça de hoje?

O bilheteiro respondeu:

- Toma parte em todas as peças: é a nossa primeira-dama.

Sorriu. Aquilo era com ela. Mas de Luciano nem sinal. Parou na esquina, como a esperar um veículo, mas só viu a grande avenida fugindo para os bairros, na tarde esbranquiçada. um realejo esmola valsas. Um jornaleiro passou de fugida, na bicicleta, com o maço de vespertinos. Um "autobus", fumegante, virou na esquina próxima. Um bêbado acotovelou-a cantando, a cambalear; foi-se perdendo lá longe, lá longe... Outrora, Luciano esperava-a naquela esquina. Agora...

Voltou, entrou pela travessa e perdeu-se na porta estreita reservada ao pessoal do teatro. Na caixa, conversava-se, ria-se. Havia expectativa pela nova peça. Os jornais estampavam anúncios da première. Comoedia publicara o seu retrato, com vestido de longa cauda, chapéu de vistosa pluma. Entrando, os companheiros saudaram-na com efusão a que ela não estava habituada. Somente Camila, a magricela do Durand, destoara do acolhimento. Estendeu-lhe a mão enluvada, fria, entregando-lhe apenas as pontinhas dos dedos. Apertando-a, Valentina sentiu-lhe as unhas.

No final do ensaio do segundo ato, quando Durand tirava o jornal do bolso para mostrar a notícia do descarrilamento de Ruão, no qual a rica proprietária deveria ter perecido, viu que não o trazia consigo. Pediu-o ao contrarregra. Este entrou nos bastidores e de lá voltou com o Petit Parisien daquela manhã. Depois de ensaiada a cena, o jornal andou de mão em mão. Os artistas aproveitaram a oportunidade para ficar ao par do que ia pelo mundo. Durand, que se sentara a um canto para ler melhor, levantou-se e mostrou aos circunstantes uma notícia da terceira página:

- Olhem aqui... "A beatificação da venerável Roselle de Rioz"... Já repararam como a nova beata se parece com a nossa primeira-dama?

Todos quiseram ver o retrato, em duas colunas. Uma jovem muito linda debruçada sobre um ramalhete de rosas. Era a obra de frei José. Quando a folha caiu nas mãos de Camila, ela desmanchou-se em gargalhadas.

- Durand, você é um perfeito idiota! Achar parecença entre uma santa e uma atrizinha do Glatigny! Parece-se tanto com Valentina como um ovo com um espeto!

Valentina esteve vai não vai para gritar-lhe: "Pois sou eu mesma, sirigaita!". Mas lembrou-se do compromisso e limitou-se a sorrir do azedume da inimiga íntima. E ninguém soube, nem poderia saber, da sua renúncia.

Logo depois, o ensaio geral terminou. Afora uma falha ou outra, os papéis estavam mais ou menos sabidos, mas todos temiam a première. O autor - aquele Gaston Prieur, de quem Valentina se lembrava constantemente - era um homem polido, de costeletas e chapéu de veludo. Andava de um lado para outro, a torcer as mãos, e quando via três pessoas a conversarem, aproximava-se nas pontas dos pés, na esperança de ouvir o que diziam, com receio de que malsinassem a sua obra. Não se mostrara satisfeito com o ensaio. Saiu sem despedir-se, tropeçando nas cadeiras. Camila declarou que ele estava estomagado com o desempenho...

Quando terminou o ensaio geral, já havia luzes. Uma chuvinha fina irrigava as ruas. Os passeios tinham-se feito limosos, escorregadios. A paisagem desaparecia na neblina leitosa. Os bulevares apareciam atapetados de folhas marelas. Diante de sua casa, na Rua Bonaparte, o quiosque de reclames teatrais anunciava uma peça de Henri Bataille, cujo principal papel seria interpretado pela sra. Réjane. Lembrou-se da peça de Gaston Prieur e teve medo. Sentia-se fraca, desanimada, cercada de fantasmas. Ninguém poderia valer-lhe na sua angústia. Não tinha parentes, não tinha amigos. O próprio Luciano desaparecera de sua vida. Uma onda amarga subiu-lhe do coração, apertou-lhe a garganta.

Mas já estava em casa. Ao subir a escada, encontrou a mulher do advogado do terceiro andar. Saudou-a, cortesmente. A velha olhou-a, contraiu o rosto e não respondeu. No patamar, deu de cara com o guarda-livros, do apartamento contíguo. O velho parecia abstrato. Não a viu. Cumprimentou-o e ele se pôs a assobiar. Que seria aquilo? Todos fugiam dela, evitavam-na.

Serafina estava taciturna. Não lhe disse palavra. Depois da rápida refeição, Valentina voltou para a sala. Os sinos tristonhos de Saint Germain des Prés badalavam sete e meia. Abriu a janela e ficou a contemplar a paisagem encardida do pátio e das mimosas do outro lado. A água da chuva murmurava nas calhas. Que noite aquela para uma estreia, tão largamente anunciada! E já ia vestir o water-proof a fim de arrostar o tempo, quando Serafina apareceu-lhe ao fundo. Seus óculos brilhavam de maldade.

- Que quer, Serafina?

- Vou-me embora, vim pedir-lhe as contas.

- Por quê?

- Não quero trabalhar mais nesta casa.

- Está certo. Você é livre. Mas, ao menos, diga o motivo.

- Não quero, pronto, está acabado...

- Pois lamento. Já estava tão habituada com você.

- Pague-me e acabou-se.

- Quanto você tem a receber?

- Trinta e dois francos.

Valentina foi à bolsa, tirou duas notas e entregou-lhas, dizendo:

- Fique com o resto. Está bem?

- Está. Vou para casa de minha irmã e, à noite, depois do espetáculo, passarei por aqui, para levar o resto da roupa...

Foi lá dentro, tomou o embrulho e partiu sem um adeus, sem uma palavra amiga. A artista ainda ficou alguns momentos a pensar naquilo. No dia seguinte, telefonaria à agência, pedindo outra empregada. Mas era pena. Já estava tão habituada com aquela velha. Chegava mesmo a gostar do seu ar gélido, da sua nenhuma comunicabilidade. Enfim...

Foi ao espelho, deu os últimos retoques no chapéu e saiu, fechando a porta por fora. Aquele gesto lembrou-lhe a solidão em que estava. Doeu-lhe. Ao passar pela bicoca do porteiro, olhou para dentro, pela janelinha, a fim de ver se encontrava algum bilhete de Luciano. O porteiro viu-a e chamou-a com a ponta do dedo, um dedo vil, torto e cheio de graxa. E, como a atriz ficasse a olhá-lo, o homenzinho disse:

- Ia agora mesmo falar-lhe. No fim da semana termina o seu arrendamento. Queira mudar-se.

- Mudar-me? Por quê?

A fisionomia do conciérge enfarruscou-se:

- Porque esta é uma casa familiar, uma casa séria. Compreende?

Valentina nem teve forças para protestar contra a injustiça. Saiu dali corrida de vergonha. E tão atarantada o fez que, ao transpor a porta, caiu numa roda de crianças, estragando-lhes o brinquedo. A filha da ruiva do terceiro andar, pequena sardenta, de cabelos cor de mel, abespinhou-se, ameaçou-a com a boneca que tinha na mão, e gritou:

- Sai daí, mulher do frade!

Só então compreendeu a atitude de Serafina, os silêncios, as abstrações, os rostos virados. O prédio devia estar fervendo. A calúnia brotara num canto, comunicara-se de boca para ouvido, crescera de andar para andar, irrompera nas trapeiras, descera ao pátio, refluíra pelas escadas de serviço, torcera a boca malévola das criadas, chegara ao porteiro. Já andava pela boca inocente das crianças,. E ela, a pobre, sem saber de nada.

Parou na rua. A água respingava-lhe o agasalho, molhava-lhe as mãos, tornava-as roxas. Sentiu o rosto frio, a fisionomia parada. E começou a andar, mecanicamente, na direção do teatro. Os sinos de Saint Germain des Prés, ainda mais tristes, anunciavam as oito horas. Continuou a pé o caminho. À proporção que se aproximava dos grandes bulevares, encontrava mais gente. Era acotovelada, pisada. A lama negra e fina de Paris apegava-se aos seus sapatos. Um homem gordo espetou-a com o guarda-chuva. E explodiu:

- "Quel sâle de temps!"

Mais adiante, um sujeito parou diante dela e disse qualquer coisa. No vão de uma porta, alguém puxou-a pelo casaco. Viu de relance bocas retorcidas, olhos revirados, dentuças à mostra. Tudo isso se dirigia para ela. Insultava-a, e se perdia na noite cheia de reflexos. Um carro á desfilada atirou-lhe a água da sarjeta. Lama, lama, lama. E, já no último quarteirão, parou diante de uma vitrina de "robes et manteaux". Lá dentro, estava exposta uma oleografia. Era o seu retrato. Os cabelos velados por um pano de linho, os braços sustentando um ramalhete de rosas. "A bem-aventurada Roselle". E ia ler o resto, mas não pôde. Um casal acotovelou-a.

A mulher resmungou:

- A tipa não me deixa ver a santa...

Afastou-se, olhando para trás, como perseguida. O Glatigny resplandecia. Tinham aumentado o número das lâmpadas incandescentes. Nas portas, brilhavam novos cartazes. A chuva diluía as palavras, tornando-as maiores. Seu nome havia crescido muito. Era a grande atração da noite. Os companheiros tinham sumido. A estreia atraía gente. Diante dos guichês cresciam as caudas de compradores. Uma floresta negra de guarda-chuvas. Cambistas negociavam poltronas das primeiras filas. Teve medo. Sentia na alma um tumultuar de angústias. Os acontecimentos do dia tinham-na esmagado. Não sentia forças para falar, quanto mais para representar... E se tomasse um licor, para aquecer, para desentorpecer as energias?

Pensando nisso, atravessou a multidão que se apinhava na rua, passou pelo hall e se dirigiu ao bistrô. Tomaria um café com "petit verre". Mas, ao entrar no pequeno bar do teatro, estacou. Só havia dois fregueses, naquele momento. À luz crua do gás deparou com um quadro lancinante. Encarapitados nos mochos, os cotovelos fincados no balcão de zinco, a conversar e a rir, lá estavam Luciano e Camila, em estreita camaradagem. Voltou para trás, no mesmo pé, mas não o fez com tanta presteza que os dois não a vissem. Teve a impressão de que eles se voltaram e, olhando-a, desandaram a rir da sua fuga.

Chegando á rua, ganhou a travessa e ia sumir pela porta do pessoal do teatro, como fazia sempre, quando um sujeito alto, de olhos pretos e bigodes em forma de "crocs", a segurou pelo braço.

- Mademoiselle...

- Que há?

- Eu sou o barão Dmitri.

- Ah! Sim! Tenho recebido suas flores. Estou encantada.

- E quando nos encontraremos?

- Não entendo...

- É que eu, depois de uma ofensiva de rosas, que leva regularmente quinze dias (todo Paris elegante sabe disso), costumo raptar, por uma semana, as minhas eleitas.

E mostrava-lhe os dentes.

- Pois, desta vez, acho que o senhor se enganou. Limitar-me-ei a agradecer-lhe as suas flores.

O balcânico fechou a cara.

- Não se faça de vestal. Tomei informações no prédio. Compreende? Virei esperá-la à saída e, se se fizer de mazinha, levá-la-ei à força. Até será mais interessante, mais romanesco...

Valentina precipitou-se na caixa do teatro. Pelos corredores, duas dúzias de homens abriram-lhe alas. O diretor da cena veio cumprimentá-la, com o relógio na mão, um sorriso forçado. Retiniam campainhas. Durand, que devia entrar na primeira cena, achou jeito de dizer-lhe:

- Luciano raptou Camila. Nós dois devemos estar com dor de cotovelos. Não dou um "sou" pelo êxito da peça. Não sei mesmo onde estou que não meta a cara a cara, não desapareça debaixo da Ponte Nova...

Para não ouvir mais, Valentina entrou no camarim e fechou-se por dentro. Vestiu-se com uma pressa doida. E quando ainda estava a ajeitar o chapéu, escutou a campainha surda do contrarregra que a chamava. Saiu. O homenzinho, que montava guarda á porta do camarim, tomou-a pela mão e empurrou-a para o palco. Viu-se num recinto furiosamente iluminado. O chão quis faltar-lhe, debaixo dos pés. Ergueu o braço para apoiar-se num rompimento, mas considerou que aquilo era de papel. Para lá da ribalta, ergueu-se um ruído prolongado: era o público que a recebia com palmas. Teria forças para articular a primeira palavra? Essa dúvida gelou-a ainda mais. Os olhos se lhe umedeceram. Poderia atender às determinações das rubricas? Fez, para dominar-se, um tremendo esforço.

Durand, curvado diante dela, atirou-lhe a frase:

- "Senhora condessa de Marnonte, se eu não vos conhecesse e a necessidade me impusesse a obrigação de batizar-vos neste momento, sabe que nome eu vos daria?"

- "Autorizo-vos a dizer os vossos galanteios, senhor de La Voulzie. Todo Paris sabe que vós sois o rei dos galanteadores..."

- "Dar-vos-ia o nome de Senhorita Serenidade".

Valentina teve um riso forçado. Gaston Prieur, ao escrever aquela peça, parecia vingar-se dos seus intérpretes. Mas o riso forçado, sendo dela, era também, por felicidade, do seu papel. O ponto ameaçava-a com o fura-bolos. Prosseguiu:

- "E não estaria longe da verdade, senhor de La Voulzie. Eu sou a serenidade, mas a serenidade de certas tardes de verão, núncias de trovoadas e de chuvas".

O diálogo prosseguiu. Toda a amargura recalcada na alma precipitava-se nas palavras. A fabulação seria morna e inexpressiva, mas a emoção da atriz emprestava-lhe estremecimentos de vida. Em certo passo, no final da peça, contracenando com Durand, Valentina disse: "O santo precisa ter um frascário dentro de si, o palhaço precisa ter deixado em casa um filho agonizante". Disse-o de tal forma que, do outro lado, na plateia, nas frisas, nos camarotes, nas galerias, ergueu-se um ruído surdo de admiração desacorrentada. Ao cair o pano de boca sobre a última cena, a casa quase veio abaixo, com as palmas, com os gritos de entusiasmo. Pelos corredores, só se ouvia:

- Valentina revelou-se! É uma grande artista!

Afinal, chegou ao camarim. Como já não tivesse criada, as visitas entravam e saíam a seu bel-prazer. Encontrou caras conhecidas e desconhecidas. O diretor do teatro Porte Saint Martin estava sentado ao fundo, os pés unidos, a cartola no colo, o braço estendido e espessado pela bengala de castão de ouro. Cintilava. Ao vê-la, catou o monóculo na ponta do cordão, entalou-o no olho direito e foi felicitá-la. Enquanto isso, Jeróme, crítico do Journal, parecia muito atarefado diante do espelho, espremia trabalhosamente uma espinha. Correu para ela, os braços estendidos... Mas não pôde alcançá-la, pois Gaston Prieur, o autor da peça, com seu transbordamento de provençal, entrou, ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos:

- Você é a glória. Conhecia-a esta noite, Té!

Depois houve um rebuliço na porta. Eram os fotógrafos dos matutinos. Durante cinco minutos, repetiu-se a cena.

- Atenção, senhorita!

- Um sorriso para este seu criado!

- Assim, assim.

A cada frase, visavam-na com as pequenas máquinas de mão, faziam deflagrar o magnésio, fuzilavam-na. O camarim enchia-se de fumaça. Para valar verdade, Valentina nunca chegou a lembrar-se do que disse a tanta gente. Limitou-se a sorrir, ouvindo os seus elogios, a guardar os cartões com a ponta dobrada. Meia hora depois, empurrou as visitas, fechou-se por dentro e, sozinha, mudou de "toilette". Quando se viu pronta, entregou a chave à roupeira que passava, disse-lhe até amanhã e encaminhou-se para a saída. Mas teve de parar um instante.

Imagem: reprodução parcial da pagina 4 da edição de 29/9/1944 com o texto

VI – Ela e a outra

Sentados numa armação de madeira, dois homens atravancavam o caminho. Um era Gaston Prieur, outro o diretor do teatro Porte Saint Martin. O dramaturgo lembrava a história de um certo Willam:

- Nasceu em Stratford-on-Avon, no ano da graça de 1564. A gente respeitável da cidade viu-o sempre entre os moleques da redondeza e nele não notou coisa alguma de extraordinário, a não ser que tinha as unhas constantemente de luto fechado. Fez todas as estripulias de que um moleque é capaz,. Aos dezoito anos, casou. Logo depois, numa ânsia de espaço, seguiu para Londres. Tinha testa muito alta, cabelos negros e longos que lhe caiam sobre o colarinho de volta, bigode farto e barba crespa, circundando o rosto oval.

Foi vagabundo. Dormiu de favor nas tavernas. Certo dia, vendo passar uma companhia de cômicos ambulantes, procurou o empresário e ofereceu-se para pequenos serviços. O homenzinho gostou do tipo e deu-lhe papéis para copiar. Logo depois, concedeu-lhe algumas rábulas, que o canastrão desempenhou com alma, um tanto desajeitado. Mais alguns anos e era aproveitado em adaptar à língua corrente os clássicos de outros países, a fim de representá-los. Fazia aquilo com habilidade e o público gostava. O próprio rei quis assistir um desses espetáculos.

A rainha Isabel, ao vê-lo representar, interessou-se pelo canastrão e dispensou-lhe liberalidades. Começou, então, a escrever por conta própria. E os seus originais eram superiores às obras que adaptava. Novas liberalidades da rainha. Chegou mesmo a proporcionar-lhe os meios de comprar um teatro. Adquiriu-o, de fato, e para ele transportou a antiga "troupe". Mas um dia o teatro pegou fogo, ficou em cinzas e o ex-canastrão, que já estava podre de rico, resolveu voltar para Stratford, que lhe havia servido de berço, a fim de ali envelhecer, morrer em paz.

Foi. Uma tarde, quando desceu da diligência à porta da hospedaria, dois velhos que conversavam sentados num banco trocaram impressões sobre o viajante.

- "Quem era este tipo?"

- "Conheço-o. É filho de antigo lojista. Tem levado a vida flautada. Foi, sempre, a vergonha de Stratford-on-Avon".

- "E como se chama essa bisca?"

- "William Shakespeare!"

Os homens riram. E só então se aperceberam da presença de Valentina. Para dar-lhe passagem, ergueram-se, inclinaram-se.  atriz correspondeu-lhes com um sorriso. Viu-se na porta clara, diante da noite escura. Um pensamento estranho assaltou-a. Aquela porta tinha qualquer coisa de um símbolo. Para os muitos que desciam, era a porta larga que dava para a cidade dos homens; para os poucos que subiam, era a porta estreita que levava ao sofrimento e à glória. Disse mentalmente: "Voltemos, pois, para a sarjeta"... E transpôs o limiar.

Sentiu de novo o coração apertado, pequenininho. Ia começar o outro drama. Talvez o pavoroso barão Dmitri estivesse à sua espera. Arriscou um olhar à direita e à esquerda. Viu muita gente. Uma lua diáfana pairava sobre os telhados. A cerca de buxos aparecia negra e felpuda. As mimosas, quase sem folhas, erguiam os franzinos braços para o céu. Os homens formavam grupos e conversavam animadamente. Quando chegou à esquina, esbarrou com três vultos que discutiam. O primeiro disse: "Valentina...". O segundo perguntou: "Valentina?!" O terceiro conveio: "Valentina". E nenhum deles a tinha visto a seu lado. Aquilo era a glória.

Já no bulevar, chamou um fiacre que ia passando. Nesse momento, o barão Dmitri destacou-se da sombra, aproximou-se dela:

- Não tome esse fiacre. Meu carro está ali.

- Caro senhor, peço-lhe que me deixe em paz...

- Acabemos com isto. Não gosto de cenas patéticas. Mulher nenhuma já me recusou. Eu sou aquele a quem as beldades disputam. Vou conceder-lhe a honra da minha preferência...

E, no meio da calçada, muito alto, muito teso, o fraque correto, as calças claras e vincadas, o chapéu duro um pouco inclinado para a testa, ergueu a bengala e chamou a carruagem, que estacionava a vinte metros. Mas Valentina, apressadamente, tomou o fiacre que havia parado no meio-fio e se perdeu na "feèrie" da Paris noturna. Ao chegar à Rue de Rivoli, onde os veículos formavam quaro filas, arriscou um olhar para trás. O barão Dmitri vinha-lhe no encalço. Sentiu-se tão desanimada, tão desamparada... Quando o fiacre estacou diante da porta de sua casa, pagou às pressas o cocheiro e grimpou pela escada. Lá em cima, no patamar, abrindo a porta do apartamento, apurou o ouvido e escutou uma discussão entre o fidalgo e o porteiro.

- Subo...

- Não sobe!

- Ela é como as outras.

- Convenho. Mas aqui, não. Esta é uma casa séria.

Valentina entrou desorientada. Acendeu o bico de gás. Abriu a janela dos fundos. Deitou-se no canapé, vestida como havia entrado. Quanto tempo permaneceu assim? Não chegou a saber. Sentia-se vazia, morta. Nenhum pensamento, nenhuma emoção. Era um animal acossado. Tinha entrado na toca mas, ao redor dela, a matilha farejava, atirava-se contra sua sombra, dentuça à mostra.

Paris tratava de dormir. O velhote do terceiro andar entrou dando guinadas pelas paredes. Ouvia claramente a conversa dos que passavam pela Rue Bonaparte. Fez-se um longo silêncio; depois, lá na esquina, começou a ouvir o passo lerdo de um notâmbulo que se aproximava. O ruído cresceu, chegou a parecer que o homem havia entrado no pátio, debaixo do seu quarto. Assobiava a "Valse brune". Depois o ruído declinou. A música apagou-se. Lá da Rue Jacob ainda chegou o plás plás dos seus sapatos acalcanhados, até que dissolveu na noite.

Mais tarde, novos passos ecoaram na distância. Um pisar era forte, pesado; outro era leve, vivo. Um casal. Quando eles passaram em frente à porta do prédio, Valentina ouviu o diálogo morno dos retardatários. Suas palavras eram como farrapos de outras vidas, de outros mundos. Pareciam frases malucas que ela, no tempo do Asilo, encontrava nos livros, abrindo-os ao acaso:

- Você não tem massa cinzenta...

- Eu?!

- ... tem massa azul.

Era o drama do dessentimento. O casario deveria estar mais escuro e mais silente. As lâmpadas deveriam parecer perplexas. E os passos lá se iam apagando, cada vez mais, até desaparecerem na esquina próxima.

Rac, rac, rac...

Toc, toc, toc...

Viu na parede fronteira, mesmo diante de seus olhos, a imagem da bem-aventurada. Sua atitude era serena, eterna. O linho que lhe envolvia a cabeça parecia dourado. A fronte inclinava-se sobre as rosas, pensativamente. Ali estavam duas mulheres no mesmo retrato: a que fenecera serenamente no claustro longínquo, numa época apagada, e a outra, morta de fadiga, com os pés, os vestidos e a própria alma salpicados de lama. Valentina estendeu a mão, dormente pela continuidade da posição, e tocou num objeto frio. Era o folheto trazido por frei José. "A vida virtuosa e edificante da bem-aventurada Rosello..." Abriu-o, ao acaso, e leu:

"... todas as glórias de Nosso Senhor. Desde menina, Deus pareceu chamá-la a si. Seus pais eram de escoimada linhagem, insignes pela devoção e pelo amparo espiritual que davam aos camponeses de uma légua ao redor de seus generosos vinhedos. A donzela, vivendo sozinha num castelo que daria para abrigar a mais de cem famílias, foi dirigida desde os ingênuos brincos infantis por venerandas madres que lhe imprimiram na alma eleita todas as doçuras, todas as delícias do céu. Sua infância foi angélica. Sua mocidade inteiramente votada às preces, às mortificações e aos atos de misericórdia. Embalde os cavaleiros apearam à porta sempre fechada do castelo, estadeando o brilho dos brasões, o galardão das riquezas. Ela não cedeu às tentações do mundo. Preferiu às alegrias terrenas, tão efêmeras, as glórias do céu, que são eternas..."

O folheto caiu-lhe da mão. Voltou a olhar a bem-aventurada que continuava, angelicamente perplexa, diante de suas rosas. E Valentina pensou:

- Eu também senti na alma a vocação das coisas admiráveis. Se tivesse nascido naquele recanto, há cem anos, minha vida seria diferente. Estou a ver o castelo a cavaleiro da povoação. Léguas e léguas de vales plantados. Revoadas de pombas sobre torres e fossos. Serenidade no céu e na terra. A infância passada nas cem salas austeras da mansão multissecular. Os cuidados maternos. As preceptoras vestidas de cinzento, com grandes toucas engomadas, batidas pela viração, como se quisessem alçar voo. O Crucifixo no peito, o livro de Horas apertado na mão.

Aos domingos - continuava a pensar - a missa na capela, cercada pelos pais, pelas religiosas, pelas alas, pelos camponeses de mãos vermelhas de mosto, os olhos bovinos, foscos de humildade e de inconsciência. Ah! Minha amiga, minha sósia! Nasceste para a bem-aventurança! Não fizeste, em realidade, nenhum milagre! Milagre terias feito se, nascida e criada em tal meio, não chegasses a ser o que hoje és. Agora, suavíssima Roselle, vê o meu caso. Um século depois nasceu outra menina, que, segundo o testemunho de madre Bonifacia, é o teu retrato em carne e osso. O mesmo corpo, os mesmos gestos, as mesmas atitudes. Mas essa menina - que sou eu - viu a luz em Paris, na Rue Faubourg Saint Germain, viela que talvez não chegue a ter uma braça de largura. É a bitesga mais pobre de Paris. No entanto, por escárnio da sorte, corta pelo meio o bairro mais aristocrático do mundo. Serve-lhe de trapeira, de arrecadação, muitas vezes, de monturo.

Seu comércio é pobre e sujo. As lojas não têm mais de uma porta. Carvoeiros, adelos, tintureiros, latoeiros, amoladores, agiotas, estancos de sal, tabaco e selos, vendedores de batatas fritas, restauradores de quadros, estofadores, negociantes de passarinhos, de queijos, de chouriços, de móveis e utensílios de segunda mão, de ferragens que as donas de casa entregam ao preço de se verem livres delas.

Em Paris, quem precisa de um certo parafuso, quem quer comprar um papel encorpado para remendar caixilho sem vidro, quem quer empenhar a aliança sem ir ao Mont-de-Pielé, ou ainda quem precisa de informações sobre uma senhora que, todas as manhãs, toma o ônibus na esquina do Campo dos Clérigos, vai àquela ruazinha... Mas vai com cuidado. A passagem está sempre atravancada de fogareiros, de gaiolas, de quadros restaurados, de sacas de carvão e de caixas onde se expõem livros a um vintém o volume.

As casas têm a cor esverdeada das paredes onde nunca bateu o sol. Cheiram a fumaça, a cenouras e a miséria. Na parte superior dos prédios, há pequenos escritórios: geralmente constam de uma mesinha, uma cadeira, um tinteiro e papéis impressos. O proprietário arma a sua teia na rua e fica à espera dos clientes. Ali se fazem pequenas transações de tirar o couro e cabelo. São frequentados por homens que sentem a corda no pescoço. Os que chegam do bulevar caminham com receio. Têm medo de encontrar conhecidos. E quando dois homens de fora ali se encontram, um não conhece o outro. Os velhos sentam à porta e fumam cachimbo. As mulheres insultam-se de janela para janela, sobre a rua indiferente. Os jovens, alta noite, conversam debaixo dos lampiões de arco, que pendem das esquinas.

Estás ouvindo, Roselle? Foi nessa rua que eu nasci. Meu pai era latoeiro. Minha mãe vendia bonés, clandestinamente, para não pagar matrícula. Andava sempre com três bonés debaixo do avental. Quando encontrava uma cara mais ou menos acessível, levantava o pano e mostrava a mercadoria. "Quer comprar um?" Depois, disfarçava. Imiscuía-se nos ajuntamentos. Desaparecia de casa. Voltava três dias depois, a arrastar-se de canseira e de fome. Eu sim, Roselle! Fiz um milagre! Eu, cem anos depois, pude servir de modelo para que um mestre pintor eternizasse a tua pureza e a tua santidade!

Ergueu-se. Ficou hirta, no meio do quarto. Estava desfigurada. A boca retorcida. O cabelo a cair-lhe pelos olhos. Estendeu os braços para o quadro, invocou-o com as mãos que mais pareciam garras:

- Por que não nasceste naquela rua? Vamos! Teu pai trabalharia de manhã à noite, soldando tachos. Aos domingos, percorreria as tascas. Voltaria bêbado, como um odre. Talvez te espancasse, com tua mãe. E as duas, alta madrugada, teriam de despencar pela escada e cair entre grupos de malandros que as apupariam. Ali se respira a perdição, como em Rioz se respira santidade. Não há um dia em que a gente não receba quatro propostas. E o estímulo das companheiras de infância. "Lucette foi boazinha para o retalhista de vinhos e hoje é sua esposa". "Florise deu uma cabeçada, mas gora está rica; sustenta os pais e manda os irmãos à escola". "Rosine fugiu com o marçano do açougue, mas agora tem um negócio na Rue de la Boule". Uma velha reprovaria a tua atitude: "Menina, você quer guardar a sua beleza para a terra banquetear-se?" E riria, com a boca negra. Nada que te elevasse. Ninguém que te tomasse pela mão e mostrasse o céu. E, como argumento decisivo, os dias de jejum forçado, os invernos sem carvão nem agasalho, as madrugadas em que o cacete cantava nas costas. Por que não nasceste na Rue Faubourg Saint Germain?

Meu pai acabou louco. Quando ele partiu para o Hospital, num carro preto, a dizer sandices, minha mãe adoeceu e morreu de tristeza. Aquela mulher amava aquele homem! Ela, sim, fez um milagre! Foi-lhe fiel a vida inteira. Naquela rua,naquela biboca de latoeiro, naquele catre onde as sevandijas nos comiam em vida, é que eu queria ver até onde chegaria a tua pureza. Invertidos os casos, nascida eu no castelo e tu na sarjeta, nascida eu há um século e tu há vinte e poucos anos, talvez eu fosse a bem-aventurada e tu talvez não chegasses a ser o modelo para que se eternizassem as minhas graças e virtudes. Neste momento, estarias tu de pé, nesta sala, e eu nesse quadro, com a fronte pensativa sobre uma braçada de rosas. Estás ouvindo, Roselle? Estás ouvindo?

Acabou por perder a cabeça. Caminhou, agressiva, para o quadro...

Serafina, como havia dito, foi buscar o resto da roupa depois do espetáculo. Mas, ao passar pela quermesse da Place de l'Alma, atrasou-se numa roda de companheiras, a ver o movimento e a tomar grandes copos de limonada. De regresso à casa da irmã, resolveu passar pela casa de Valentina. Era muito tarde, mas a criada sabia que a antiga patroa, muitas vezes, ficava acordada até amanhecer. Arriscou uma visita. Subiu a escada, com receio. Não fosse encontrar ali alguma cena inconveniente. Chegou ao patamar. A porta estava apenas cerrada e no interior havia luz. Escutou. Nenhum ruído. Então, mais segura, empurrou a porta e espiou para dentro. Mas quase não acreditou nos próprios olhos.

Valentina estava de joelhos, as mãos postas, o olhar fixo no próprio retrato, e rezava:

- Santa Roselle! Dai-me de novo o meu catre da Rue Faubourg Saint Germain, onde o pão era menor do que a fome, onde as cobertas não correspondiam ao inverno, mas onde a realidade ficava muito aquém do meu sonho de menina. Quero voltar a ouvir meu pai, de manhã à noite, martelando na bigorna. E ver minha mãe vendendo bonés, debaixo do avental. Tirai-me esta coroa de espinhos a que os inimigos chamam de glória.

A criada ficou estupefata. Primeiro, persignou-se; depois, julgando que a patroa tivesse enlouquecido, cerrou a porta atrás de si, deu dois passos na meia luz do patamar e precipitou-se pela escada, descendo os degraus dois a dois.

***

Arranjou outro emprego, numa casa comprovadamente séria e, uma noite, meses depois, foi buscar os cacarecos que restavam em casa de Valentina. Tomou a escada e já ia a subir quando o porteiro chamou-a:

- Aonde vai?

- Ao primeiro andar; tenho lá umas roupas.

- Na casa de quem?

Serafina ficou corada pela primeira vez, mas era de vergonha.

- Na casa daquela...

O homenzinho lembrou-se de quem se tratava.

- Valentina?

- Isso mesmo.

- Chegou tarde. A sra. Valentina não reside mais aqui. Casou-se com o escritor Gaston Prieur. Agora reside no bulevar de Val-de-Gracde, n. 56. Fez uma bela carreira.

- Como?

- Como artista. Repare naquele anúncio afixado ali, no quiosque... Sabe ler?

Serafina seguiu o conselho do porteiro e viu um cartaz sobre fundo luminoso. Lá descobriu o retrato de Valentina, com o vestido afogado, o cabelo para a frente, o chapeuzinho de rendas e plumas. Nos grossos caracteres conseguiu ler: "Theatre Porte Saint Martin - Hoje e todas as noites - 'Rosas de Paris', peça em 3 atos de M. Gaston Prieur - Maravilhosa criação de Mme. Valentine, a grande trágica do moderno teatro francês". (N. E.: o Theatre de la Porte Saint Martin foi construído em 1781 para abrigar a Academia Real de Música - atual Ópera Nacional de Paris -, cuja sede tinha sido destruída por incêndio. Tornou-se patrimônio nacional em 1799 e em 1802 reabriu com o nome atual. Incendiado em 1870, foi reconstruído três anos depois. Sarah Bernhardt foi uma das atrizes mais famosas que ali atuou).

Affonso Schmidt

Neste trabalho, Affonso Schmidt usa como referência a esquina das ruas Jacob e Bonaparte, em Paris, que foi onde se hospedou quando ali esteve, como relatou em Velhos Amigos:

Vista de 2009 da esquina das ruas Jacob e Bonaparte, em Paris, onde Affonso Schmidt se hospedou no então Grand Hotel d'Isle, segundo sua descrição da viagem à Europa

Foto: Google Maps/Street View (captura em 2/7/2012)

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