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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 48b

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta novela foi publicada em 17 semanas consecutivas de 1936:

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(material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

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A sombra de Julio Frank

Affonso Schmidt

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Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 10/4/1936 com o texto

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IV – Marinheiro de primeira viagem

Apenas diplomado pela mais conspícua escola da sua cidade natal, Julio Frank como desapareceu. Nem a família, nem os amigos, durante muitos dias, souberam notícias suas. Uma tarde, passava ele diante da casa do encadernador, quando foi alcançado pelo Fred, aliás Frederico Augusto Guilherme, seu irmãozinho, figura cheia de sestros e cacoetes, que lhe deu uma carta confiada por Weishaupt a Carlota, a fim de fazê-la chegar-lhe às mãos.

O bom velho, tendo desesperado de encontrar o protegido, acabara por escrever-lhe, pedindo que o procurasse. Nessa folha de papel, com as armas do ducado, escrita numa letra redondinha, com pena bem aparada, o conselheiro felicitava-o pela bonita conclusão do curso intermediário e convidava-o a comparecer ao castelo, a fim de comunicar-lhe novidades agradáveis.

Essa oportunidade, que lhe caía do céu, tão fácil, era ambição de muita gente. Pensando nisso, tomou-se de vivo contentamento e sua primeira ideia foi dirigir-se para lá. Mas, ao longo do caminho, reparou que a roupa estava no fio, os sapatos cambados, os cabelos compridos e a gravata, para falar verdade, não era gravata, mas um cachecol cor de lagartixa. Já diante da subida do castelo desistiu da visita e, achando aberta a porta da casa de um colega que há muito não via, entrou por ela a dentro.

Aquela "república" onde tantas vezes encontrara cama e cela estava sensivelmente melhorada. Novos móveis, uma estante guarnecida de poetas e dramaturgos e um fogo a crepitar na lareira. "Sibarita!" – pensou ele. Depois, tomando um livro da fileira impecável, leu o nome do autor: "Wolfang Goethe – Hermann e Dorothéa". E comentou num solilóquio: "Este rapaz está trabalhando: vai longe". Repôs o livro na estante e, vendo na mesa um cachimbo de porcelana, foi à lareira, tomou uma brasa com a tenaz e acendeu-o. Calmamente ajeitou-se numa poltrona, abriu o Virgilio que sempre o acompanhava, e embebeu-se nos versos do poeta latino.

Momentos depois, a porta da alcova contígua abriu-se de leve e uma moça que devia ter-se fechado ali para vestir-se fez menção de entrar na sala. Mas, ao primeiro passo, notou que havia um intruso. Parou à porta e, pelas costas do desconhecido, fez rápido exame. Era bem um tipo suspeito, cabeludo, de roupas largas, um trapo no pescoço e o jeito reles com que empunhava aquele soberbo cachimbo… Teve um arrepio de medo e, em silêncio, evitando até o roçagar do largo vestido de veludo que se elevava nos flancos em dois puffs, passou pelo fundo da sala, entrou na escadaria e desceu para a rua.

Pouco adiante, acercou-se de um guarda que passeava encapotado, com as mãos para as costas, e, toda trêmula, contou-lhe o que viu. O gendarme cofiou a bigodeira com as duas mãos e acompanhou-a, irrompendo ambos bruscamente no momento em que Julio Frank começava a embalar-se no ritmo daqueles versos.

- Olá!

Frank voltou-se na poltrona, viu as duas figuras e não compreendeu o porquê da intromissão. O militar interrogou:

- Que faz aí?

- Estou esperando o meu amigo Ernst.

- Quem é esse Ernst?

- O dono da casa.

- Pois esta senhora é que é a dona da casa.

Nessa altura, Frank compreendeu que estava metido numa enrascada.

- Desculpem, então; houve engano.

Mas o guarda não se deu por satisfeito:

- Essa do engano não pega: é a desculpa de todos os que são apanhados com a boca na botija. Venha comigo.

E levou-o para o comissariado. Cordelia – a moça chamava-se Cordelia e era uma atriz de segunda ordem numa companhia de segunda classe que fazia temporada em Gotha -, ficando só, pensou melhor no ocorrido e, como era rapariga de bom coração, acreditou que tudo aquilo sobreviera em razão de um engano e acabou por sentir dó do rapaz. Era evidente que ele se havia equivocado na porta, ou então o tal Ernst seria de fato o inquilino anterior.

Movida por sentimento de justiça, correu ao comissariado a fim de retirar a queixa. Na rua, como o tempo estivesse mau e ela não conhecesse a cidade, esperou que passasse um fiacre. Mas o veículo não aparecia: cansada de esperar, pediu informações a um transeunte e foi mesmo a pé, quebrando com o fino tacão de suas botinas a neve envidrada que cobria o empedramento da rua.

O comissariado era num velho mais velho do que os outros e se distinguia pela lanterna vermelha pendente da porta, na extremidade de um arabesco de ferro. A sentinela disse-lhe que subisse e ela barafustou pela escada escura que tresandava a xixi de gato. Mas, à meia subida, encontrou Julio que descia ao lado de um velho de casaca cor de pinhão e antigo tricórnio de feltro escuro. Nunca teria imaginado que aquele pandorgas fosse tão bem relacionado… E assim pensando, encostou-se à parede para lhes dar passagem. O velho era o conselheiro Weishaupt e dizia ao rapaz, na sua voz suave:

- Alguns momentos depois da sua prisão fui informado dela e corri, satisfeito por encontrá-lo. Estava com receio de que pretendesse interromper o curso tão bem iniciado. Trago-lhe carta para um professor de Goettingue e dinheiro para matrícula e primeiros tempos de universidade. Parta pela primeira diligência e, de futuro, quando for visitar amigos, não deixe de verificar melhor o número das portas, pois enganos desse gênero às vezes trazem aborrecimentos.

Já na rua, despediram-se como velhos amigos. O conselheiro tomou o carro; à frente, o sota muito empertigado dirigia as parelhas, e atrás, como pendurados no tejadilho, iam os dois tábuas, vestidos com aparato, talvez mais bem parados que o amigo particular de Ernesto II.

Ficando só na rua gelada, diante da casa sombria, Julio pareceu não saber que fazer. Virava nas mãos o envelope com a chancela do landgrave e uma bolsa de couro empanturrada de pequeninas moedas de ouro. A perplexidade era tão profunda que, para cair em si, foi preciso uma mãozinha enluvada de amarelo pousar-lhe ligeiramente sobre o ombro.

- Sou eu!

- Eu quem?

- Cordelia Heintz.

- Dá no mesmo.

- A pessoa que o fez prender há pouco mais de uma hora.

- Ah! Prazer em conhecê-la… Ou, para ser franco…

- Vim pedir perdão, retirar a queixa, tratar de sua liberdade.

- Obrigado.

- Mas cheguei tarde.

- Que pena!

Ela riu. Não era bonita, mas tinha certa graça. E seguiram pela velha rua calçada de pedras chatas, ouvindo o gelo moer debaixo dos pés. Viraram uma esquina, depois outra, ainda uma terceira…

Lá em baixo, ela parou. Era a porta da sua casa. Olharam-se novamente e sorriram, lembrando talvez o que havia ocorrido pouco antes. O mesmo gendarme que continuava a passear pela rua, de mãos nas costas, ao vê-los assim, levou apressadamente as mãos à bigodeira e se pôs a torcer as guias, para não mostrar o sorriso. Alhures alguém cantava uma canção em voga, de músico desconhecido, um certo Schubert.

Subiram de mãos dadas.

O resto da tarde decorreu numa doce intimidade, ao pé do fogão acolhedor e amável. Quando chegou a hora de Cordelia ir para o teatro, Frank recebeu uma poltrona de favor, com direito a ir à caixa, nos intervalos. Não se lembrava de ter ido a um teatro, mas havia lido tantas peças e discorria tão facilmente sobre autores, que não ocorreu à atriz perguntar-lhe sobre o assunto. Quando, porém, entre o segundo e o terceiro ato, o rapaz conseguiu romper a chusma dos corredores e alcançar o camarim, ela disse-lhe a rir:

- É a primeira vez que você entra aqui!

Ele não respondeu, mas corou.

Findo o espetáculo, saíram juntos: um fiacre levou-os a certo restaurante fora da cidade, famoso pelo vinho que cheirava a pétalas de rosas. Ah! A vida deveria ser assim, eternamente assim – pensava o estudante. Mas esse sonho de felicidade durou apenas 123 tálers, isto é, pouco mais de uma semana. Gasto o dinheiro, a companhia continuou na sua excursão por outras cidades e Cordelia Heintz, como despedida, deixou-lhe um bilhete a lápis, entregue pela mulher que alugara o quarto.

Partia sem vê-lo para poupar-se da cena pungente da despedida, que toda noite fazia no palco, mas que não gostava de representar na vida cotidiana. Levava como recordação as últimas moedas que ele havia esquecido ao pé da estante e o botão do casaco que Frank, na véspera, lhe havia pedido para repregar, e que ela não fizera, por falta de agulha, de linha, de tempo, de préstimos e de vontade.

Afinal, Cordelia partiu com saudades e ele ficou sem dinheiro.

Foi preciso uma ginástica tremenda, uma verdadeira subscrição entre antigos camaradas, para que certa manhã, diante da Hospedaria das Sete Noivas, pudesse tomar a diligência de Goettingue.

Durante o dia inteiro foi sacolejado por estradas desertas e intermináveis. Pela portinhola, a cortina corrida, via desfilarem os burgos parecidos uns com os outros. O cocheiro descia, entrava numa casa de vinhos e voltava enxugando os beiços na manga da blusa. As mudas eram lentas, em praças encardidas, onde havia sempre o mestre ferrador e a tasca de nome pomposo. Depois, eram os compridos muros das quintas, o cheiro acre que subia das medas fermentando ao sol, o gemido das noras, o mugido das vacas nos estábulos escuros. Os castelos grudados nas encostas, os vinhedos secos esgalhando-se no chão empedrado, as pontes com guardas a quem os viajantes mostravam os papéis. O envelope com as armas do ducado produziam sempre o melhor efeito.

Durante a viagem, os passageiros se iam substituindo na diligência: rendeiros e pequenos proprietários subiam aqui para descer além. Era impossível conversar com essa gente que dava a impressão de viver outra vida em outro mundo e exprimir-se em outra língua sobre assuntos que absolutamente não poderiam interessá-lo.

No fim da viagem, faltou-lhe dinheiro para as refeições. Era com inveja que via o cocheiro peludo e o ajudante ruivo amesendarem-se nas bodegas das mudas e pedirem grandes pratos de salsicha, que eram devorados à claridade de bojudos jarros de cerveja. Na manhã seguinte, para que não suspeitassem da causa do jejum, declarou-se doente e não almoçou; à tarde continuava indisposto e à noite nãopodia mais de fome.

Foi quando tomou assento a seu lado uma repolhuda dama com a sua cesta de vime em cujo interior os olhos experimentados do estudante descobriram frangos de forno, presunto, geleias, queijo, um baltazar para quem se encontrava de forçado jejum havia muitas horas. Embalde ele lhe sorriu amavelmente, afastou-se para lhe ceder maior parte do banco, suspirou, esboçou um namoro… Nada. Aquela mulher era de pedra. Mas, em certa altura, Frank lobrigou a palavra Altona em um de seus papéis. Meia hora depois, compondo o sorriso mais triste que encontrou à mão, exclamou como para si mesmo:

- Ah! Como tudo isto é diferente da minha querida, da minha inesquecida Altona!

Na dama gorda houve mutação à vista. A máscara severa amoleceu, os olhos ríspidos adoçaram. Um sorriso promissor alumiou-lhe a fisionomia:

- Como? É de Altona?

- Sim. E a senhora?

- Também.

- Que feliz coincidência. E de que família, poderei saber?

- Hoffer.

- Ah! Mas nesse caso somos parentes!

Exclamou e teve medo às consequências. Felizmente, foi a mulher a primeira a falar, levada por uma grande satisfação. Sabia de quem se tratava; antes mesmo já havia suspeitado. Era o Gerald, não era? E ele não teve mais do que aceitar o nome que lhe era dado, atrás do qual não sabia se estava um santo ou um bandido. Nada disso, felizmente: estava um primo que de lá havia partido muitos anos antes, sem mais falar de si. Era primo para cá, prima para lá. E uma hora depois, dentro daquela diligência, houve um verdadeiro banquete em que o estudante levantou várias vezes o copo em honra dos Hoffers, de Altona.

Logo depois o cocheiro voltou-se para os viajantes e informou-os de que estavam próximos de Goettingue: os muros, as casas de campo que iam passando, já eram os arredores da cidade; dentro de vinte minutos estariam no ponto de desembarque. Então Frank, para evitar possíveis encontros com indesejáveis parentes da mulher, que para o caso seriam também seus, resolveu tomar medidas enérgicas. Mais adiante, disse-lhe em tão misterioso:

- Não conte a ninguém que me encontrou.

- Já sei, quer fazer uma surpresa aos nossos…

- Não: tenho medo…

- Aposto que é um caso de amor…

- Não, minha prima, coisa de maior monta…

- Duelo?

- Upa!

- Jogo?

- Upa!

Ela não atinava.

Então ele, em voz cavernosa:

- Eu me fiz ladrão de galinhas…

Desde aquele momento, a dama gorda não mais deu mostras de conhecê-lo. Assim, refeito e em boa paz, entrou na douta cidade universitária de Goettingue.

V – Até as pedras se encontram

Desembarcou em Goettingue numa tarde de inverno e com as mãos abanando. Não trazia consigo peça de roupa, objeto de valor, uma moeda que fosse. Em compensação, era um nababo de esperanças. Apenas pôs pé em terra, seguiu pela rua que estava na sua frente e, depois de muito caminhar, parou por hábito diante de um sebo. Também por hábito, meteu a mão no bolso e de lá tirou o compêndio de demonologia, matéria que no momento o interessava bastante. Ainda não tinha lido esse livro. Pensou em vendê-lo e ao mesmo tempo teve desejo de conhecer-lhe o misterioso conteúdo. Dentro de Frank estabeleceu-se então a luta: ler ou comer? O pão do espírito ou o pão do estômago? Como acontece sempre, venceu o estômago, pois a carne é fraca e o estômago é um nobre órgão. Assim, vendeu o livro e comprou o pão…

A noite caía. As avenidas cobertas de uma fina camada de neve estendiam-se diante de seus olhos frouxamente alumiadas pelos lampiões pendentes das esquinas e de algumas frontarias. As janelas estavam claras e amiúde ouviam-se músicas e cânticos. Os carros passavam apressados ao trote dos cavalos, conduzindo uma sociedade brilhante: aristocratas, oficiais, artistas, mulheres do grande mundo, burgueses abastados, sacerdotes e figuras suspeitas.

Nas sarjetas amontoava-se aquele povo escuro, calado, que se comprime contra a parede das casas para fugir à lama que as rodas atiram na passagem. Eram homens, mulheres e crianças. Uns vinham do trabalho, outros iam não se sabe para onde. Vendedores de ramalhetes, de jornais, de brinquedos, de quinquilharias de toucador; gente de grossos sapatos orlados de pregos e com largas fivelas de metal. Músicos ambulantes contavam moedas debaixo de um lampião.

As casas de comércio tinham fechadas as portas de vidro e, pelos cristais toldados, entreviam-se os interiores festivos, com linhas de candeias. O vento agitava as tabuletas fixadas em ângulo reto sobre as frontarias. Quando alguém entrava ou saía das casas viam-se, pelo vão das portas que se abriam e fechavam, as mesas dos restaurantes e confeitarias, cercadas de fregueses alegres. Então, um hálito quente, com o perfume das viandas e dos molhos finos, acariciava o rosto do estudante. Mais adiante, eram os teatros, alguns dos quais iluminados a giorno, com fieiras de tigelinhas luminosas.

Que fome! Que frio!...

E os carros passando…

Chegou, sem saber, ao bairro universitário. Conheceu-o logo pela população vistosa e folgazã, em contraste com o velho casario escuro, lazarento, empilhado como para mudança. As cervejarias estavam repletas e de dentro delas chegavam aos seus ouvidos cânticos em coro e risadas. Nas ruas estreitas, rapazolas de boné característico alternavam-se com moçoilas estouvadas e, segurando as mãos uns dos outros, formavam longas cadeias que, numa espécie de quadrilha, cortavam barulhentamente a multidão, afastando uns, derrubando outros.

Julio chegou-se a um rapaz que fumava encostado à porta e deu-lhe, como a falar consigo mesmo, a senha da Universidade. O rapaz olhou-o inexpressivamente. Mais adiante, repetiu a palavra de passe quase ao ouvido de um escolar que seguia de livros debaixo do braço. Nada. Aproximou-se de uma daquelas moças e proferiu o sésamo… Ela voltou-se para ele, examinou-o e concluiu que estava ao pé de um maluco.

Decididamente, os escolares de Goettingue eram diferentes dos de Gotha. Mas, à porta de uma escura vivenda coletiva, encontrou certa cara que lhe pareceu já ter visto algures. Então, de modo firme, deu-lhe a senha; o interrogado respondeu sem pestanejar. Era mais ou menos conhecido; tinha feito os preparatórios em Gotha e de lá viera, sem meios de subsistência. Julio, ao encontrar aquele rapaz, teve um suspiro de alívio:

- Pois eu preciso de vocês…

- E eu também…

- Estou sem casa e ainda não jantei…

- Idem, idem, na mesma data…

Desde aquele momento, já não era apenas um à procura de socorro: eram dois. Passaram ainda algumas horas a caminhar pelas ruas, que pouco a pouco se iam despovoando. Por fim, os pés já estavam duros de frio e começaram a inchar. Os teatros ficaram abertos até mais tarde, mas antes da meia noite começaram a apagar as lâmpadas de azeite das frontarias, a recolher os grandes cartazes e de um momento para outro as avenidas ficaram animadas de carros e de pessoas que demandavam os lares. Esse movimento logo cessou e a cidade caiu no silêncio; apenas se encontravam varredores, bêbados, bandos de estudantes que recolhiam, mulherinhas embuçadas e cães assustadiços.

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 17/4/1936 com o texto

5

Andaram, andaram…

Exaustos, entraram numa larga porta encimada por dúbia lanterna, em cujo vidro se lia um número, e sentaram no primeiro degrau da escadaria interior. Queriam apenas descansar os pés. Dali a meia hora, encostaram-se no segundo degrau; logo depois, ressonavam a sono solto. Lá pelo alvorecer, o porteiro encontrou-os a dormir e despejou-os, a socos, no meio da rua. Para não cair, Julio agarrou-se a qualquer coisa de escuro, mole e cheiroso que encontrou na frente.

Era uma mulher que voltava de qualquer cervejaria; estava bêbada como um odre. Segura assim por Julio, pôs-se a rir de um modo irritante. Só então, à luz mortiça daquela lanterna, reconheceu Cordelia. Parecia ter-se plantado no seu destino. Ria ainda mais irritantemente e com a língua pegajosa ia inquirindo:

- De onde vem você a esta hora?

- De uma reunião, no clube…

- Que vai fazer agora?

- Vou para a Hospedaria do Grande Frederico, onde a Universidade me reservou aposentos…

- Quer vir comigo?

- Já que você exige, faço-lhe essa concessão.

Então segurou-a pelo braço, a fim de ampará-la, e desse modo levou-a para onde ela quis ir e que era a sua casa. Antes de partirem, porém, pediu-lhe uma moeda para dar ao seu secretário, visto não ter dinheiro trocado. Ela abriu a bolsa e deu-lhe duas. Julio passou-as ao estudante desconhecido e disse-lhe:

- Visconde, vá à Hospedaria do Grande Frederico e informe à sua alteza que só voltarei pela manhã.

Abertas as matrículas, Julio entrou para a Faculdade de Filosofia da Universidade de Goettingue. Aclimatara-se logo naquela cidade. Dentro de pouco já havia recomeçado a sua antiga existência de Gotha, morando e fazendo as refeições por toda parte. Tudo, porém, começou logo a melhorar. Sua inteligência breve conquistou a colegas e professores e a universidade inteira pareceu tomar a peito a tarefa de encaminhá-lo na vida.

Chegou a conhecer dias de abundância. Logo no começo do ano, organizou um serviço de apostilas: ouvia com a atenção de sempre as preleções dos mestres e chegando a casa resumia-as, tirando cópias que eram fornecidas a estudantes ricos, amigos das chinelas ou incapazes de apreenderem até ao fundo as exposições da cadeira. Por outro lado, os lentes encarregavam-no de pequenas tarefas remuneradas, de modo que no segundo ano letivo Julio Frank se dava a um extraordinário luxo: quarto mobiliado, fatiota nova, estante com obras escolhidas e longas horas de sossego para o estudo.

Mas ele não nascera para viver a pequena velocidade…

Uma das praxes mais respeitáveis da vida universitária alemã era o duelo. Um estudante batia-se todas as semanas e por qualquer motivo. Geralmente não era preciso motivo. Esse heroico costume, que proveio da Idade Média e ainda hoje subsiste, era, há um século, a própria segurança da vita universitatis. O código de honra dos estudantes ainda era o mesmo da Távola Rotonda. Quando algum escolar era suspeitado de haver tomado parte em repreensível aventura, conduziam-no à presença do juiz universitário – o único capaz de julgá-lo – e se afirmava sob palavra de honra estar inocente, ficava isento de punição.

Há poucos exemplos de que se tenha faltado à palavra para eximir-se da responsabilidade. Mas, quando isso acontecia, o que era raríssimo, uma vez cada dez anos, o faltoso era segregado pelos colegas e expulso da universidade. Tal código permitia que universidades com milhares de alunos, entre os quais temperamentos indisciplinados, agressivos e turbulentos, fossem mantidas em rigorosa ordem pela direção, mediante o débil policiamento dos bedéis.

Logo à entrada, Julio viu que a Universidade era espontaneamente dividida em corporações, mais por afinidade dos membros do que por outro motivo. Cada corpo tinha um presidente, em cuja eleição não prevalecia nada: talento, força, idade, comportamento, nome de família ou serenidade de espírito. Não se sabia precisamente o que levava um determinado rapaz à chefia do grupo a que estava filiado.

Cada semestre de estudos começava e terminava por uma reunião conjunta. Era o que eles chamavam de commers. Tais commers eram bem diferentes entre si: o da entrada começava por grandes libações, como também o commertium abeundi no fim do ano. Neste último cessavam os desafios, esqueciam-se as rixas: havia uma confraternização geral.

Mas no commers do início dos estudos, qualquer coisa era uma provocação: a gravata de Fulano, o sorriso de Beltrano ou o bigodinho implicante de Sicrano.

Ninguém escondia ojerizas; não se leva desaforo para casa. Quando tais suscetibilidades não bastavam para assegurar estocadas a todos, a um sinal do presidente de cada corpo os rapazes trocavam doestos e, quando Deus queria, umas taponas. Por esse meio, faziam uma provisão de duelos para o semestre. Os membros de cada corporação provocavam um número ilimitado de estudantes de outras e isso era conscienciosamente registrado, comunicado ao respectivo presidente; este informava protocolarmente aos seniors presidentes dos demais corpos. O programa dos dias de encontro era organizado de modo a que cada estudante tivesse pelo menos um duelozinho por semana…

Desde que Julio Frank transpôs o limiar da universidade, tornou-se alvo de desafios; ele, por seu lado, se indispunha com quantos encontrava pelo caminho. Por dá cá aquela palha, trocava estocadas, acutilava, recebia schmissen, que eram os lanhos nas bochechas. Por isso, mais de uma vez por semana, ele e outros estudantes se dirigiam para um famoso albergue fora de portas. Antes de chegar, desmanchavam o grupo e cada qual seguia sozinho para o aprazamento, a fim de não alarmar a curiosidade da polícia. Como se tal precaução fosse pouca, para não serem colhidos de surpresa, colocavam sentinelas em redor da granja onde se realizavam os encontros.

Os estudantes repartiam-se em grupos de oito: o juiz que presidia a luta, escolhido entre os seniors dos corpos não representados no duelo; o médico, que ficava pronto para socorrer o ferido; os dois combatentes; as duas secundanten, cujo fim era segurar as armas antes de começar os encontros ou durante os repetidos halts determinados pelo juiz, e as duas testemunhas escolhidas entre os amigos íntimos dos espadachins.

Os combatentes eram resguardados por peitorais e braçadeiras de couro e agasalhados de modo a apresentarem apenas a cara. O juiz colocava-se ao centro, o pé numa cadeira, e ia marcando os golpes com um pedaço de carvão no espaldar a que se apoiava. Tinha na mão um relógio para contar os quinze minutos regulamentares da peleja. Diante dele, um defronte do outro, ficavam os combatentes que, por sua vez, tinham aos lados as secundanten que lhes amparavam os braços, pois o espadim e a braçadeira só por si fatigavam rapidamente os contendores. Ainda ao lado dos combatentes ficavam as testemunhas. Numerosos estudantes constituíam a galeria. No meio deles, o pankdoctor antecipadamente preparava esparadrapos, agulhas desinfetantes, parches, todo o material destinado a pensar as cutiladas. Quando tudo estava pronto, o juiz dava o grito:

- Silentium! Auf mensur, fertig, los!

Os secundantes largam os braços dos combatentes, as testemunhas se aproximam… O corpo inclinado, o braço estendido, os longos e finos espadins de ponta para baixo, avançam… Começam os golpes… Os metais relampejam… Há sobre as cabeças uma chuva de relâmpagos, os ferros cruzam com tinidos finos de lâminas compridas, flébeis e trêmulas. Vergam em pontaços ou silvam em chicotadas. Durante o encontro, os seniors tomam nota dos golpes dados ou recebidos pelos seus homens. Quando a espada dobra ou quando o sangue espirra, o juiz grita halt e tudo para. Nos casos de ferimento, o médico é quem diz se o encontro pode continuar ou não. E isso se prolonga por longos quinze minutos, em que não são contados os altos.

Terminado um duelo, começa outro: há dez, quinze encontros por dia. Os que chegam envergam as braçadeiras ainda fumegantes e as armas ainda vermelhas do último duelo. Mas se a polícia é assinalada nas imediações, há uma fuga geral ocultando-se os petrechos bélicos nas gateiras da granja e, quando há tempo de sobra, aparece o homem da gaita campesina e começa a tocar uma ária providencial. Os milicianos então encontram um baile de estudantes em que não raro os contrários de há pouco aparecem dançando vertiginosamente nos compassos malucos de uma polca…

Julio Frank ficou encantado com esse regime. Gostou tanto dele que, com o decorrer do tempo, já não se contentava em lanhar bochechas de colegas: ia para as cervejarias elegantes e desafiava todo bicho-careta que lhe passasse pela mesa sem pedir desculpas. E como os seus golpes eram um tanto desastrados, "teve de comparecer três vezes perante o Conselho Universitário, duas por duelo e uma por excessos praticados num campo de tiro".

VI – Na alta roda

Assim, pelo talento, dedicação ao estudo e galhardia de atitudes, Julio Frank conquistou a universidade. Os professores não lhe regateavam elogios e os colegas disputavam-lhe a amizade, embora nem sempre fossem acolhidos de boa sombra. Tudo lhe era desculpado de envolta com um sorriso de simpatia.

Quando no fim de 1827 chegou a Goettingue o jovem duque de Coburgo para matricular-se na classe de Filosofia, o dr. S., a quem sua alteza vinha recomendado, chamou a Frank, seu aluno de um curso gratuito de aperfeiçoamento, e convidou-o para repetidor das lições ao fidalgo, declarando-o naturalmente indicado para desempenhar tão insigne tarefa que lhe abriria as portas da popularidade. Por acréscimo, pingues proventos lhe adviriam do trabalho.

O estudante aceitou, agradeceu, mostrou-se sensibilizado pela lembrança do professor. Mas o forte de Julio Frank não era, precisamente, um espírito prático. Sentiu-se ao primeiro sorriso da fortuna no dever de preparar-se para uma vida esplêndida. Faria isto e mais aquilo. Teria carro e criados de libré. Uma linda biblioteca e uma primorosa adega. E, descendo as escadas do dr. S., depois da aula em que lhe foi feita a animadora oferta, ele esboçava projetos, urdia planos, falava sozinho…

Com o trabalho de quase três anos, havia amealhado pecúlio suficiente para levar a cabo o curso. Economizara cerca de 1.500 tálers, soma fabulosa para qualquer estudante, notadamente para ele, familiar das noites de relento e das gélidas horas de jejum. Mas com o rumo que ora tomava a vida - novo mas não inesperado, que ele tinha cega confiança no destino -, bem poderia dispor do pecúlio, melhorando a apagada apresentação social que, amanhã, já não condiria com a sua situação de quase preceptor de príncipes. Além disso, dispunha de crédito, amigos ricos e poderosos…

Caminhava satisfeito, sorria para todas as coisas, devia estar resplandecente. Ao quebrar a primeira esquina, um mendigo caiu-lhe nos braços. Nada mais, nada menos, que o Andorinha. Esteve a pique de não reconhecê-lo. Se o diacho do rapaz não tivesse lembrado a serenata aos mortos e o rapto da cabrinha, talvez nunca o tivesse identificado naquele vadio.

- Como? Você por aqui?

- Em carne e osso. Há cerca de um ano deixei Gotha.

- Para a Escola Naval, na conquista das estrelinhas de almirante?

-Não. Fugido da polícia. Numa noite de chuva dei várias tesouradas na barriga de um indivíduo.

- Ah!

- Vim a pé. Não sei há quanto tempo não durmo nem sento à mesa para comer.

- Dou-lhe emprego; você vai ser meu mordomo, até poder continuar os estudos navais…

Nesse mesmo dia comprou libré para o Andorinha, alugou um apartamento mobiliado, encheu o guarda-roupa de bem talhadas casacas. Daí por diante, pela mão dos admiradores, que tinham crescido muito em número, penetrou nos salões literários em voga e onde o brilho de sua inteligência alcançou imediato êxito.

À noite, paravam ricas carruagens à sua porta: eram gentis-homens que iam buscá-lo para concertos, bailes, passeios. Chegou a receber em casa já não a sociedade, que casa era por demais exigente, mas um número escolhido de estudantes, artistas, moças cultas e lindas. Passou a ser disputado e, mais do que nunca, a fazer leilão de amizades. Foi em tal meio que um desmedido orgulho desabrochou em sua alma, tornando-o irreconhecível.

Por esse tempo, supondo-o rico, os pais, que pouco se haviam interessado por ele, começaram a escrever-lhe comovidas cartas. Julio nem as lia: atirava-as com tédio para o fogão.

O mordomo andava numa dobadoura.

O dinheiro em sua mão escoava-se como água em cesto.

Esvaziava-se assustadoramente o cofre.

Por outro lado, o dr. S. demorava-se em apresentar-lhe o jovem duque; nos últimos tempos, sem ao menos uma desculpa, havia suspendido o curso gratuito que lhe ministrava em sua residência. Limitava-se a mandar dizer pelos criados que não estava em casa.

Sobrevieram as dívidas.

Era, pois, necessário acabar com aquilo; chamou o Andorinha e, com a largueza que era muito sua, com o desamor pelo ouro que levava os colegas a chamá-lo de Anargyro, à semelhança de conceituado santo, passou-lhe para as mãos furadas o que restava da abundância, dizendo:

- Salde todas as dívidas; dentro de pouco seremos ricos e célebres.

O Andorinha, nessa mesma noite, fugiu com o dinheiro.

Soube depois que, antes de partir, fora à polícia denunciá-lo como autor de não se sabe quantos crimes; queria, certamente, vê-lo preso para fugir mais à vontade.

Frank só acreditou na infâmia do amigo depois de inutilmente esperá-lo durante três dias. E desde esse momento, a miséria de casaca entrou-lhe pela casa, de onde haviam fugido também o tempo e o gosto pelo estudo.

Naquele cenário quase de luxo, passava dias sem almoço. Fazia, às vezes, complicada ginástica a fim de obter a moeda indispensável para tomar o fiacre e apresentar-se no salão onde era esperado. Não raro, era o criado do vizinho que lhe emprestava vinténs, sob régias promessas.

Pela última vez quis falar ao dr. S. e saber de uma vez quando o pequeno duque iniciaria as lições. Estava cansado de respostas vagas que valiam por evasivas. Chegando à sua casa, teve de entender-se com os criados, no patamar da escada. Quando a porta se abriu, lobrigou no cabide chapéus e capas do professor e do duque; naturalmente estavam lá dentro a assentar o horário e a retribuição do seu trabalho. Pensava nisso quando o criado voltou e disse:

- O professor saiu.

- Mas o chapéu e a capa dele e do duque estão lá dentro…

- Não é verdade, digo-lhe eu.

- Está bem…

Retirou-se com um nó na garganta, ao mesmo tempo com vontade de esbofeteá-lo. Na mesma noite veio a saber que o professor S., talvez esclarecido sobre a importância de alcançar a intimidade do duque pelo aparato com que Frank se havia preparado para isso, achou que devia guardar para si honras e proventos. A cólera do estudante subiu então ao auge e, munido de um compasso, ficou horas inteiras rondando a residência do mestre, disposto a vingar-se.

Os amigos começaram a afastar-se de Frank, a princípio discretamente, em seguida sem a menor reserva; seu lugar foi sendo tomado por interesseiros e bajuladores. Despeitado pela ausência de uns e exacerbado pela insistência de outros, descarregou sobre os últimos o mau humor, submetendo-os a descabeladas fantasias. O pior é que eles tudo aceitavam de boa sombra. Era de exasperar. Ao fim de cada ceia, após copiosas libações, tinham de sair para a rua com a roupa pelo avesso, ou com os sapatos trocados, pisando ovos. Prestavam-se de boa mente, achando graça no que lhes era imposto. E o estudante, no paroxismo do desgosto, mordia os pulsos para não gritar.

Os credores entravam de fazer cauda diante da porta. Começaram os pedidos de espera por mais alguns dias, os protestos dos recalcitrantes, as desculpas esfarrapadas, as fugas pela porta de serviço, todo o drama do homem endividado. Adeus estudos, amizades, relações sociais; já não tinha tempo para nada.

No meio da aflição, escreveu uma carta a Weishaupt, lembrando o passado e pedindo-lhe dinheiro. A resposta não se fez esperar: mandou 20 tálers, quantia insignificante para as suas aperturas. Necessitava de muito mais! A seguir, expediu-lhe outra carta, enérgica, desesperada, a que o velho achou prudente não responder. Logo depois, uma terceira, em que lhe atirava em rosto supostos compromissos, supostos crimes. Mas Weishaupt se manteve ainda dessa vez e para sempre numa imperturbável mudez.

Certa manhã, recebeu do porteiro uma carta de Gotha, com as armas do castelo. Abriu-a sofregamente, na esperança de que o conselheiro tivesse resolvido atende-lo. Mas a carta era de Carlos Frederico, tomado de súbito entusiasmo, congratulando-se com o êxito do filho em Goettingue, e pedindo-lhe que, na abastança em que se encontrava, não esquecesse os velhos pais. O estudante primeiro empalideceu, depois escangalhou-se de rir.

Ele, que era o dono da casa, entrava e saída pela escada de serviço e ao longo do caminho topava com os serviçais do prédio que lhe mostravam os dentes com escárnio, como satisfeitos com o desastre. Na universidade, o seu prestígio havia baixado muito. O professor S. urdia contra ele um enredo de descrédito, sem lhe dar quartel. Amigos e inimigos pareciam eclipsar-se à sua presença. Um ambiente de chumbo esmagava-lhe o derradeiro entusiasmo.

Murmuravam-se intrigas pelos corredores. Adiantava-se que o Conselho Universitário ia reunir-se para expulsá-lo. Que rebentaria um pavoroso escândalo. E o autor de toda a trama de calúnias era o professor do duque. Voltou desesperado para casa, a fim de munir-se de uma arma e ir procurá-lo. Mas, quando transpôs o portão, viu as poucas coisas que lhe restavam empilhadas no centro do pátio do prédio: tinha sido despejado. Alguns ociosos, parados diante dos objetos, faziam comentários jocosos.

Desde aquela hora, como que perdeu a noção de si mesmo; tornou-se uma coisa perdida, rolando sem destino pela sarjeta…

Certa noite, ao ser posto fora de uma cervejaria, encontrou o estudante desconhecido, aquele a quem se dirigira pouco depois da chegada a Goettingue. Reconheceu-o logo. Ele tomou-o pelo braço, levou-o para outro lugar e disse-lhe:

- Estou encarregado de comunicar-lhe que você vai ser expulso da universidade. Seus inimigos trabalham para isso. Acho melhor, portanto, retirar-se de Goettingue por algum tempo, pelo menos até saldar as dívidas, e depois voltar para concluir o curso. Compreende?

Julio repuxou a boca, num rictus de vencido. O outro continuou:

- Hoje você dorme no meu quarto, visto que eu já tenho quarto; amanhã cedo, embarcará para Berlim e levará o com que viver nos primeiros dias… Depois, com vagar, tudo se arranjará…

- E quem faz essas coisas por mim?

- Não sei. Quem me incumbiu da tarefa foi o conselheiro da universidade.

No dia seguinte, pela manhã, Julio Frank tomava a diligência e seguia para Berlim. Na praça, ainda deserta àquela hora, só ficou uma pessoa a agitar o lenço num adeus – o estudante desconhecido.

Imagem: reprodução parcial da pagina 3 da edição de 24/4/1936 com o texto

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VII – Um grito de angústia

Em janeiro de 1828, Julio Frank contava vinte anos de idade, encontrava-se em Berlim e morava num pobre quarto da Grosse Friedrichstrasse. Tinha a alma aniquilada de um velho, embora de quando em quando, mercê da primavera de seus anos, repontasse uma flor de sonho sobre as ruínas.

Só alimentava um desejo: entrar na Universidade de Berlim e ali completar os estudos. Mas a época não lhe era propícia. O ambiente social e político trepidava; o futuro bem próximo estava grávido de acontecimentos e os estudantes eram tidos quase como inimigos.

A direção da universidade exigia papéis, documentos, provas de boa conduta… E ele não estava em condições de satisfazer a tais exigências.

Para ganhar o pão, trabalhava como revisor de provas numa pequena tipografia. Dava também lições particulares. Poderia ir assim através da existência. Mas, com o seu talento e o seu temperamento, assustava-o a ideia de gastar a vida inteira naquilo. Nos raros momentos de descanso, atirava-se ao comprido do catre e punha-se a fazer arrojados planos de futuro. Se não fosse um grande homem – era essa a sua obsessão – daria um golpe arriscado, que para tanto lhe não faleciam habilidade e audácia. Mas não faria semelhante coisa: preferia o pão negro da miséria, a que já se havia costumado.

De quando em quando, passava uma noite de vigília, a escrever versos repassados de profundo misticismo. Bruscamente resolvia partir para a África ou para a Índia, Nova York ou Paris. Mas logo lhe voltava o desejo dominador de prosseguir os estudos universitários. Numa dessas horas de angústia, veio-lhe certa ideia que lhe pareceu bastante razoável: escrever ao conselheiro da universidade, que mostrara por ele tanta simpatia. Quem sabe lá… Primeiro foi à gaveta e, tomando diversas poesias, escolheu a que melhor dissesse dos seus mais recentes estados de alma. Depois de a ler com vagar, corrigindo aqui e ali, foi par a mesa e copiou-a numa folha de papel. Feita a cópia, pôs-se a caminhar de um lado para outro, pelo quarto, como a conversar consigo mesmo. Em seguida, assentou-se à mesa, molhou no tinteiro a comprida pena de pato, e sobre o papel branco traçou com mão febril as palavras que se seguem:

"Venerando sr. conselheiro da Universidade – Há já muito tempo que eu vos devia dizer algo da minha situação e da minha vida. Tê-lo-ia feito antes, se o pudesse. Sem dinheiro e sem recomendações, cheguei a Berlim quase sem recursos. Felizmente encontrei logo amigos, uns da Universidade de Leipzig e outros da de Goettingue, os quais me foram ajudando até que minha situação melhorasse. Neste momento há ainda bastante a desejar para que ela seja excelente. As lições que dou garantem-me cama e mesa. Com escritos, trabalhos de revisão etc., ganho algum dinheiro que, espero, dará, pelo menos, para todo o necessário. Há, porém, um fato que ainda me priva do gozo tranquilo desta situação: a incerteza de poder ficar aqui. Noutros tempos, para serem acolhidos aqui, os estudantes não precisavam trazer atestados. Depois, porém, que em grande número começaram a vir para cá estudantes exilados ou egressos, a minha matrícula tem esbarrado em muitas dificuldades, acrescendo que, ao chegar, também não dispunha de dinheiro para isso. Animei-me portanto a vir à vossa presença para vos pedir me faculteis um meio de obter os recursos de que preciso para saldar o que já devo a meus credores, podendo garantir-vos que tais recursos são principalmente pedidos para esse fim; quanto ao mais, se não fosse o respeito ao que é dos outros, a que os outros me merecem, há muito que eu teria tomado outro 'caminho', cujo termo facilmente adivinhais.

"Dignai-vos, portanto, vir mais uma vez em meu auxílio, agora com um 'atestado' que virá decerto consolidar a minha permanência aqui, fato que por sua vez garantirão que devo a meus credores, os quais, inteligentes que são, deixarão de parte o lado judicial e o paterno da questão, cientes desde logo de que meu pai, que não me vê com bons olhos desde que nasci, e que jamais despendeu um vintém comigo, não irá agora despendê-los em meu favor. Ficareis decerto admirado de ter eu tido a coragem de vir perante vós com este pedido. Mas é que, para mim, a nobreza de vossos sentimentos é penhor da vossa benevolência,não somente com qualquer infeliz, mas também para comigo que, em verdade, sou um desgraçado. Não há dúvida de que só eu sou o culpado da desgraça em que me vejo; mas se conhecêsseis as causas que me levaram a ela, se o meu íntimo fosse visível ao vosso olhar, vós não me condenaríeis in-totum.

"Mui duramente estou eu pagando pelo que pequei; porque, se há uma 'vingança terrível', onde ela está é na consciência de que provocamos nos outros o próprio sofrimento que nos punge. Pudesse eu ter pressentido que iria atolar-me nesse tremedal, não no de maldade (comparativamente menos fundo) mas de baixeza e de desprezo – certo não teria conservado a minha vida até hoje, porque sempre me horripilaram as ideias de maldade e de baixeza. Pensamentos pecaminosos tive-os, é verdade; mas ainda há em mim um certo pudor congênito – pois se não deixei de praticar atos de que me envergonho, mais desprezível ainda seria eu se tentasse agora fugir-lhes às consequências.

"Voluntariamente caiu a culpabilidade dos outros no meu infortúnio, cujas origens datam da aurora da minha infância, porque cedo tive de passar pelas mais tristes provações. Transbordando em sentimentos de amizade, expus-me ao maior perigo em prol de um amigo, e foi esse amigo quem me denunciou e perdeu. O dinheiro que, para custear os meus estudos, penosamente ganhei na escola, me foi tirado pelas pessoas mais chegadas. Enfureci-me, não pela perda do dinheiro, mas pelo assassínio do meu ideal. E então, precocemente desenvolvido em todos os sentidos, atirei-me à libertinagem para me vingar do que eu chamava o 'meu destino', esse assassino do meu belíssimo ideal. Sem exceção, eu era ilimitadamente louvado por todos os mestres, e da minha parte esforçava-me por pagar-lhes em moeda dobrada. Então, a um indomável orgulho veio associar-se uma enorme ambição de glória que me abriu um caminho completamente errado. Meus pais, porém, o viam com prazer porque, ao palmilhá-lo, eu frequentava casa de famílias ricas – pois desde os 12 anos de idade que fiquei sem mesa para comer nem roupa para vestir, tendo que adquirir tudo isso à minha custa. Esse o motivo por que me acostumei a uma vida mais livre do que a permitida pelas minhas condições. A ninguém queria eu obedecer, visto que o meu maior empenho estava em libertar o próximo, no menor lapso de tempo possível, de suas atribulações – pois no tempo em que eu devia estar aprendendo a religião, já o mundo se me afigurava um ridículo teatro de bonecos e o que eu mais queria era 'não ser joão-minhoca', mas simplesmente um 'espectador'.

"Daí, vieram-me as sátiras que eu aplicava a tudo, principalmente ao burguesismo, ao qual nunca pude submeter-me. Por isso o espírito que me movia era um espírito instável, esquisito e que só encontrava sossego no seu próprio desassossego – também daí o enfado que produziam em mim as minhas relações de amizade, quando começavam a perdurar sem esperanças de perturbação. Nesses casos, as mais vantajosas dessas relações eram por mim postas em risco de se romperem, não por inúteis, mas porque, oferecidas, me eram incômodas. Era, portanto, fatal o soçobro, tanto mais que fui indo até a zona dos bajuladores, os quais, por um jantar (e eu lhos pagava diversos) faziam tudo que eu quisesse e até podiam 'dançar' a meu gosto. Assim, debaixo de tempestades torrenciais, fi-los sair a cavalo, e o meu ridículo orgulho ficava satisfeito quando, em cumprimento de ordens minhas, praticavam toda espécie de extravagâncias. Mui caro me custou tudo isso e o meu orgulho está hoje horrivelmente abatido.

"Eu vos descrevi tais excentricidades para que pudésseis ver até certo ponto o que vai pelo meu íntimo, o qual às vezes ainda me domina diabolicamente.

"A vossa benevolência me perdoará a extensão desta carta, pois sei que vos interessais por alguém que deseja sinceramente reparar o mal que fez. É por isso que, mais uma vez, me animo a pedir-vos o favor já enunciado, que me trará o sossego de que aqui preciso, que me impedirá que eu seja de novo enxotado como, há pouco, fui de Goettingue, onde, fiado nas melhores promessas do dr. S., tudo perdi só para o servir. Fiquei sem as suas lições e ele me abandonou, tendo eu caído na triste vida que passei nos últimos dias de minha estada lá. Gratíssimo ser-vos-ei por tamanha bondade. Não a desejo, porém, se entenderdes que não a mereço.

"Para obter esse sossego apelei para a Poesia, que é a grande consoladora, e como também rendeis preito às Musas animo-me a vos mandar alguns versos, para verdes que o meu espírito tomou pelo menos outro rumo. Decerto não têm esses versos a vibração que eu lhes daria em melhores tempos. Apesar disso, aí vão eles na falta de coisa melhor, para vos provar que sou grato à vossa indulgência. Escolhi um assunto religioso por ser o que mais corresponde à minha tendência atual. Mas se isso vos desagradar, então permaneça em vós ao menos a lembrança de que o meu pensamento já visa coisas diversas das que visava outrora. No mês vindouro poderei mandar algum dinheiro para Goettingue. Com devotamento, J. Frank, da Classe de Filosofia – Berlim, 24 de janeiro de 1828 – Grosse Friedrichstrasse, 174".

(N. A.: A propósito deste documento, transcrevemos um trecho da carta que o sr. Alexandre Haas, em 7 de junho d e1932, recebeu da direção da Universidade de Goettingue: "Prezado senhor – Em resposta às suas linhas de 5-3-32, participamos que não pudemos verificar a data do nascimento de Frank. Encontramos, porém, no nosso arquivo,uma carta de Frank, da qual segue cópia. É de esperar que seja do seu interesse. Frank deixou Goettingue sem tirar o certificado de retirada,pois que não pôde pagar suas dívidas. Em coisas políticas (ao menos aqui) não se achou envolvido. Perante o reitor da Universidade teve de comparecer repetidamente, duas vezes por duelo e uma vez por desmando em um campo de tiro. Mais não se pode averiguar aqui: também não se ele pertenceu a uma Liga".)

Meteu carta e poesia num grande envelope e foi levá-las à estação da posta. E, desde esse momento, começou a sua dolorosa espera. Andava de um lado para outro, falava, gesticulava, sorria, ou ainda passava sarabandas em ignotos interlocutores.

Meses depois, recebeu uma carta que não o alegrou; dentro dela vinha outra, dirigida a um armador de Hamburgo, na qual se pedia que facilitasse o transporte do portador até o Rio de Janeiro. Junto, também, vinha uma ordem de 70 tálers em seu nome.

Era o que o conselheiro da universidade lhe podia fazer.

Pouco tempo depois, tomou a diligência e partiu para Hamburgo. Naquele tempo, quem procurava o Brasil era como quem metia uma só bala no revólver e, depois de virar o tambor, até perdê-la de vista, disparava a arma no ouvido. Se a bala estivesse na agulha, era um homem morto; se não estivesse, tinha ainda cinco probabilidades a seu favor.

VIII – A caminho do Brasil

Em 1828, ainda havia em Hamburgo, no bairro de Saint Pauli, de armadores e embarcadiços, uma esconça viela que tinha o pitoresco nome de Rua do Caçador de Patos. Era estreita, calçada de pedras, sem passeios laterais e descia dos arruinados bastiões para perder-se nos cais do Elba.

De lés a lés, esforçando-se por manter o alinhamento, uniam-se barrigudos sobrados de um andar, com a janela do sótão plantada a meio da platibanda. Nessas trapeiras, geralmente habitadas por trabalhadores do mar, viam-se roupas grosseiras estendidas pelas locarnas, na inútil espera de um raio de sol.

Aquelas casas não eram pintadas e o tempo se encarregava de lhes dar a pátina verdoenga tão característica do velho bairro, entalado entre os bastiões e o porto. A rua, por seu lado, não figurava entre as mais frequentadas. Durante o dia, os transeuntes eram quase sempre os mesmos e poderiam ser contados a dedo: a mulher de lenço na cabeça, xale escuro e cesta debaixo do braço; frequentemente um palmípede levantava a tampa da cesta e escancarando as colheres do bico soltava gritos agudos.

A segunda figura indefectível dessa ruazinha era o camponês à cata de condução fluvial para o lugarejo ribeirinho; vestia roupa de veludo cozida ao corpo, chapéu enorme e suas pernas arqueadas terminavam em botas de couro, ainda sujas pelas relhas do arado.

Mas ainda eram encontradiços por ali o gordo estalajadeiro, de avental e gorro, a espairecer na porta da locanda; o adelo, que costurava sentado numa banqueta defronte do negócio; o caldeireiro que montava a minúscula oficina diante de cada freguês, soldando bules e frigideiras; o mendigo sentado no frade-de-pedra (N. E.: coluna pequena de granito colocada nas ruas para impedir a passagem de veículos), o amolador postado na esquina, fazendo as lâminas fagulharem e cantarem ao serem comidas pelo rebolo e, como encanto da vizinhança, a bonita senhora Helm, na florida varanda de sua casa, distribuindo migalhas de pão aos pássaros, dizem que para mostrar a alvura alpina dos braços.

À noite, porém, o movimento era mais animador. É que a ladeira contava numerosas tavernas em cujas insígnias de lata os mestres pintores se haviam apurado em evocar cenas adequadas a ilustrar o nome do estabelecimento. Lá estavam "O Rei de Thule", "A Bela Segadora", "A moça de Fuklen", tantas outras casas onde o patesca entrava, tomava uma fieira de copázios de cerveja e comia salsichas à discrição.

Nesses lugares, a pilsen, além de gostosa e substancial, era servida por moças de penteado alto, colete de veludo escuro muito justo, e vestidos claros e rodados que mal chegavam aos joelhos, deixando ver botinhas de camurça que se prolongavam perna-acima em fitas entrelaçadas. Tais caixeiras não eram absolutamente ferozes, principalmente para os marujos que chegavam do outro lado do mundo e traziam um punhado de moedinhas de ouro amarradas na ponta do lenço de ramagens.

Bebia-se e cantava-se. Da meia noite para o dia, garganteava-se o coro do "Grumnete que foi colher campânulas". Quando Deus era servido e aparecia o velho do realejo, dançava-se também. Os embarcadiços eram grandes, pesados e lentos como ursos; as caixeiras, para disfarçar as pisadelas, riam como malucas. Uma patuscada de alto lá com ela! Mas à hora de fechar a casa, se o taverneiro encontrava um bêbado debaixo da mesa, tomava-o ao colo como se fora uma criança e, chegando à porta, atirava-o para a sarjeta. Depois, fechava a tasca, corria as tramelas, desligava o martelo da aldrava e ia dormir com Deus e a Virgem Santíssima.

Certa manhã de outubro, um jovem de vinte e poucos anos, com cara de estudante, segundo a opinião da mulher da cesta que, àquela hora, conversava com o caldeireiro, subiu pela Rua do Caçador de Patos, olhando frequentemente para cima, a fim de ler as tabuletas. Deparando o estalajadeiro que, como de costume, parecia petrificado à porta do seu estabelecimento, desbarretou-se e aventurou um pedido de informação. O homenzarrão levantou o braço de presunto e indicou-lhe uma casa próxima:

- É ali, mas nos fundos.

O transeunte dirigiu-se para o local indicado, que era a Vaca Lunada, e viu-se diante de uma sala escura e deserta. Espiou para o interior. Não havia ninguém. As grandes mesas toscas e quadradas tomavam todo o recinto. Junto a elas, alinhavam-se os mochos. Atrás do balcão, erguiam-se os barris de vinho e cerveja. No fundo, um medalhão de terracota, uma cabeça de vaca tendo um fino crescente de ouro a servir-lhe de aspas. Era aquela, certamente, a vaca lunada que dava o nome à casa.

- Que quer?

O intruso – que era Julio Frank – estremeceu. Mas, como observou logo, a voz não saía da cabeça de vaca; quem o interrogava era um rapazelho encarapitado no alto de uma pipa, como um gnomo, a trinchar maçãs. Então Frank perguntou pela pessoa que procurava e o garoto, sem mesmo olhar para ele, tão habituado parecia a essa pergunta, informou:

- No fundo; suba a escada.

O estudante obedeceu. Por cima da tasca havia um escritório. Subia-se pela escadaria de madeira, de um só lance, que começava no fundo da sala, com uma pinha azul na ponta do corrimão, e se esgueirava unida à parede em direção à frente do prédio.

A casa cheirava a cevada podre. O ambiente enojava de escuro e úmido. Frank teve de parar um pouco diante do primeiro degrau para averiguar se ali havia uma escada ou um poço. Era, de fato, uma escada. Subiu por ela acima, fazendo-a estalar nas traves. Chegando ao patamar, estacou diante de uma porta cerrada, sobre a qual se alinhavam os dizeres: "H. B. Schwartz – Agente e fornecedor de navios". Depois de ligeira hesitação, empurrou a porta e espiou para dentro.