Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult082z05.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/31/09 20:15:39
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (05)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

Leva para a página anterior

Cais de Santos

Alberto Leal

Leva para a página seguinte da série

Cadeia

José Praxedes passou sessenta dias na cadeia de Santos. No xadrez 3, o do chão de cimento, o que tem mais percevejos nos colchões e nas esteiras de palha podre, o que tem mais muquirana na roupa dos presos e nas paredes de pedra.

Comeu, num pedaço de jornal e até em prato de folha, a bóia fornecida pela Santa Casa e rotulada com o número sete, nas dietas do Hospital. Conheceu o Maneco Cabeleira, rapaz de fala fina, que roubava mendigos - a gente mais endinheirada da cidade, conforme lhe ensinou.

- Mêndigo - dizia o Cabeleira, fazendo a palavra proparoxítona - não pode deixá dinheiro na caxa econômica, nem em casa, porque não tem. Traz sempre todo o dinheiro na rôpa; o úrtimo que depenei tinha 805$600! Fora o chapéu!

Conheceu o Bemtevi, um negrão forte, aguardando julgamento porque matara o Zé Peru, numa pensão de mulheres por cima do café Flor da Praia, e que era o juiz dos presos.

Quando entrava um "bicho novo", Bemtevi olhava, olhava, e se gostava do cara convidava: qué drumi comigo esta noite?

Rapazinho até 16 ou 17 anos, metido no xadrez 3, não escapava mesmo. Se era acomodado, muito bem. Se não, o Bemtevi mandava os outros dar uma sova de cinta e cabo de vassoura no recém-chegado, depois do que o surrado ia para debaixo do chuveiro a muque, e em seguida era posto de mãos e pés atados com cintos sobre a única cama daquele xadrez: a do juiz Bemtevi, onde um lençol estendido fazia de cortina, velando o estranho harém.

Quando o juiz estava de veneta, mandava dar em qualquer um, recém-chegado ou não, e os presos obedeciam às suas ordens, porque um juiz de presos é amigo e pessoa de confiança do carcereiro, pode sair para o pátio, e a sua palavra vale mais que a de todos os outros presos juntos. Uma pessoa com a qual é perigoso andar de ponta, ou olhar a não ser com um sorriso nos lábios, dentro do xadrez. José Praxedes Lloyd levou à entrada o "visto" do juiz Bemtevi: uma sova de correias e de pau de vassoura, com banho frio por cima. Mas ninguém se fez de macho com ele, à noite, porque, um a um, o estivador era homem para derrubar os cento e trinta e quatro encarcerados do xadrez 3.

O Maneco Cabeleira logo se mostrou amigo do Praxedes: pôs-lhe água nas feridas e nos arranhões da briga, e consolou-o com a idéia de se desforrar no primeiro preso que entrasse depois dele. O próprio Bemtevi apanhara, ao entrar, a mando de um tal Maceió, que era então o juiz dos presos. Praxedes não sabia o que era um juiz daqueles?

- Olhe: o seu Carneiro escolhe sempre um brutamontes, que possa surrá os outros, p'ra garantir a orde e providenciá a faxina dentro do xadreis. Com parte disto, ele dá em quem qué, e p'ra mantê a disciprina dorme com quem le agrada. Eu também já fui amigo dele, sabe? Mas eu não gosto dele, não!

A voz do Cabeleira ficou ainda mais fina, alisou os crespos cabelos do Praxedes e disse:

- Eu gosto é de você. Como é o teu nome, hein, simpático?

Praxedes deu-lhe um pontapé, o Cabeleira rolou no chão, teve uma crise de lágrimas, soluçando em falsete.

Mas depois ficaram amigos. Cabeleira iniciou Praxedes nos segredos daquela vida, entre paredes úmidas e janelas gradeadas.

- Ali em frente é o xadrez 4. É de gente condenada. Agora tem 43 lá dentro. Eu converso com o Gringo por meio de sinais. O Gringo é aquele de pijama, ali na porta. Matô o sócio da quitanda e pegô quinze ano. esperando p'ra i p'ra São Paulo, cumpri a pena. Arrepare com muito jeito, ai atrás de você. É o Ceará - maluco de uma vêis. Tá ruizinho, não pára roupa no corpo dele - tira tudo e rasga. Otro dia levô uma sova daquelas, porque rasgô um lençol do Bemtevi.

- Que fêis o Ceará, p'ra tá aqui?

- Nada: ele é maluco, não vendo? Tem mais 35 demente aqui dentro: o que sentado na estêra, com o terço na mão, rezando todo o dia reza que ninguém entende. Aqueles dois lá no canto, que parece que tão conversando, mais tão só falando sozinho. Tem aqueles que tão dormindo no cemento, este que vem passando e o otro de barba grande. Veje aquele, trabaiando no colchão: arrancando a paia de dentro, diz-que tem dinhêro lá dentro. Nois chamamo aquele ali de Denderah, porque onde a gente dexa, ele fica, parado no mesmo logá o dia intêro; parece encaiado, como o navio Denderah lá na barra. O que vem vindo agora é o Hum-hum-hum, porque ele só diz isto.

Um dos dementes pôs-se a andar, agitado, de cá para lá, e de repente começou a gritar, a dar murros nos outros e nas paredes, tropeçou ns colchões, caiu sobre dois homens deitados, levantou-se, investiu contra a porta, urrando e babando. O juiz Bemtevi deu ordens: cinco presos, o cabo de faxina e mais quatro, se atiraram sobre o louco, arrancaram-lhe as roupas, arrastaram-no para o chuveiro, a um canto.

- Dão banho frio nele?

- Dão! P'ros bêbados parece que adianta, mais p'ra lôco, o mió mesmo é chá de vassoura.

- Que é isto?

- Tu já vai vê, amigo Praxede. Espera um pôco.

Dois homens haviam também tirado as roupas e seguraram o louco debaixo do chuveiro aberto.

O banho ainda tornou o demente mais agitado, e ele saiu da água forcejando com os cinco homens, que mal o continham.

O juiz Bemtevi passou a cinta pelas pernas nuas do doente e o derrubou. Amarraram-lhe as mãos e as pernas, e o Bemtevi e o cabo puseram-se a bater nele, com o couro dos cintos e com os paus das vassouras de fazer faxina.

Os gritos do louco se foram abafando, e as vozes dos homens que jogavam dominó, sentados no chão, tornou-se nítida: doble-cinco! Tome - Bem jogado! e ouviu-se o ruído das pedras pretas, batidas com força no cimento, conforme se joga nas mesas dos botequins da beira do cais.

- Teve um aqui que entrô gritando: foi ela a curpada! Foi ela a curpada! O Bemtevi e o cabo de faxina fizeram tudo p'ra ele se calá: banho fio, surra de cinto, vassôrada... Pois olhe: não dexô ninguém durmi. Teve treis dia, e, quando levaram ele embora, eu pensei que já tava quieto, mais quando passou por eu ia dizendo baxinho: foi ela a curpada! foi ela a curpada! baxinho, porque não tinha mais vóis!

- Aqui do nosso lado tem o xadreis 2, que é de processados e condenado, e despois tem o xadreis 1, que é de mulheres. A gente daqui não vê elas, mais escuta elas gritá e brigá como os homes. Tem umas que diz palavrões mais feios que os de nóis. Bem dizia o Cinco de Paus, que home só diz aquilo que aprende, e mulhé inventa palavras feia p'ra xingá.

Cabeleira fala muito, com a sua vozinha de flauta desafinada.

- Qual é o seu artigo, Praxedes?

- Que artigo, seu?

- O artigo do código - Cabeleira sabia coisas e gostava de exibi-las - em que você caiu?

- Sei lá: comi uma zinha no mato.

- Menó d'idade, hein, Praxedes?

- Burrada! Eu sabia que a poliça não dêxa a gente tirá cabaço.

- Artigo 267, explicou o Maneco Cabeleira.

***

O primeiro preso que entrou, depois de Praxedes, foi o professor. Entrou com o jeito de um inglês rico em visita a um jardim zoológico. Só faltava a máquina de tirar retratos e o capacete. O monóculo e a pose ele tinha.

O carcereiro veio em pessoa acompanhá-lo, e, deixando-o entrar, parecia dar apenas lugar a um ilustre visitante, digno de toda aquela reverência que lhe fazia, curvado assim sobre a porta.

Mas o carcereiro realmente se curvara para fechar a porta, porque o professor vinha para ficar.

O juiz Bemtevi apertou a mão do novo preso, parecendo comovido com a honra que este lhe dava, cedendo-lhe a mão para o cumprimento.

- Sinhô professô, tudo que percisá deste seu criado, é só mandá!

O Cabeleira cutucou Praxedes: o Bemtevi arrespeita ele, de verdade! Quem será o bruto? Parece doutô!

O professor passou a gozar regalias extraordinárias: não era escalado para fazer faxina, não apanhava de ninguém, dava ordens ao Bemtevi e até lhe tomara a cama, porque o negro oferecera e o professor aceitara. Então o juiz Bemtevi veio dormir no chão, sem reclamar nada.

Um dia entrou um polaco bêbado e os presos quiseram dar nele, porque não ficava quieto. Mas o professor disse: deixem ele! e todos deixaram. O professor levou o polaco para um canto, pô-lo contra o muro, começou a dizer umas palavras e a pasasr as mãos diante dos seus olhos. O polaco ficou quieto e dormiu até o dia seguinte.

O Cabeleira descobriu que o professor sabe coisas extraordinárias: adivinha o pensamento, lê o futuro na menina dos olhos de qualquer um, hipnotiza, e predisse ao Bemtevi, lá fora, que ele ia matar um homem. Por isto o Bemtevi tem tanto respeito assim.

O professor conversa com todos, e fazem roda para escutá-lo. - Sabe p'ra burro! - exclama o Cabeleira, entusiasmado - este home é p'ra sê presidente da reprubica, e não p'ra está aqui no xadreis!

O professor dá lições sobre tudo. Até corrige os jornais. Outro dia, por exemplo, o jornal deu a notícia de umas baleias que andaram por Santos e chamou os bichos de peixes.

O professor mostrou o jornal para o Praxedes, para o Cabeleira, para o Bemtevi, que estavam mais perto, e disse que aquilo era uma grande besteira, chamar baleia de peixe.

- Pois não é? - indagou o Maneco.

- É nada! Baleia é mamífero, como o homem. Tem jeito de peixe, anda no mar, mas não é peixe.

- Tão parecido! - exclamou o Cabeleira.

- Mas não é! - gritou o professor, zangado.

O Bemtevi tomou logo as dores por ele:

- O professô sabe mais que quarqué um sacana, ouviram? Quem dissé que baleia é peixe, que se chegue p'ra cá!

O Espírito de Porco, que é o preso mais arreliento, foi o único que negou, lá do fundo do xadrez:

- Baleia é peixe, sim!

Então o Bemtevi foi até lá e deu dois socos na cara do Espírito de Porco, que ficou dormindo na esteira, com a boca cheia de sangue.

Por unanimidade, no xadrez 3, baleia ficou reconhecida como não sendo peixe, e tudo sossegou novamente.

***

Duas vezes por semana, às quintas-feiras e aos domingos, os presos recebem visita.

As visitas ficam no pátio, dentro do quadrado que as duas barras de ferro, correndo por todo o perímetro, limitam. Três metros de distância separam presos e visitantes.

É impossível roçar ao menos uns dedos noutros dedos, aflorar os lábios numa fronte, trocar qualquer contato em que epidermes se rocem, exprimindo melhor uma emoção, uma bênção, um conforto.

Soldados de armas embaladas vigiam, em todos os ângulos. Qualquer embrulho é aberto e examinado na sala da carceragem, antes de entregue.

Junto às grades da porta de cada xadrez, os presos se comprimem, vociferam, batem-se, na ânsia de ver um rosto conhecido ali no pátio, no afã de dizer uma palavra a uma velha mãe, a um pobre pai, a um filho, à mulher.

E as conversas são feitas de gritos que se cruzam, entremeadas de palavrões zangados e de urros dos loucos do xadrez 3.

Sentado numa esteira, Cabeleira explica a Praxedes: eu não arrecebo ninguém. Minha família agora é você, Praxedes Lloyd.

- Não seje besta, Cabeleira! Eu não quis famia lá fora cum mulhé, vô querê aqui dentro cum macho... Cum macho não: cum você, que é cumo a baleia que o professô disse - tem jeito de peixe, mais não é!

Maneco Cabeleira revira os olhos e aflauta mais a voz, procurando comover: não seje ingrato, Praxedes! Eu le amo!

Praxedes se levanta e vai para perto da porta.

Os presos se afastaram um pouco, porque o juiz Bemtevi está conversando com uma visita. O juiz Bemtevi está todo derretido. Fala com uma mulher grande e alva, sardenta e de dente de ouro na frente, toda inclinada sobre o corrimão de ferro do pátio, e que lhe responde numa voz roufenha de velho gramofone.

Praxedes indaga:

- Minêro, quem é a cuja que fala com o Bemtevi?

- Aquilo é a mulher dele. Tem uma perna de pau, mas o juiz não gosta que se diga. É louco por ela. Ela o corneia com um açougueiro meu conhecido des-que o Bemtevi foi preso.

- Bem feito, ele também não dorme com macho?

O professor meteu-se na conversa:

- Nenhum dos dois é culpado. A sociedade desconhece que um preso é um ser humano, com as mesmas necessidades biológicas dos que estão livres. O menor mal que se faz ao preso é tirar-se-lhe a liberdade. A hipocrisia faz os homens lá de fora ignorarem todos os problemas sexuais dos homens que estão aqui dentro. Apontou para Praxedes: você é um castrado!

O estivador passou a mão na correia que lhe segurava as calças: le mostro se capado, professô de bobage!

O professor insistiu: é capado, sim! Desde que entrou aqui, a sociedade o castrou; você pode ter mulher? Não pode! Se você não descer da sua dignidade e não andar dormindo com os frescos, aqui dentro, até se esquecerá que é macho.

O Bemtevi dava adeus à companheira, porque soara o sinal de fim de visita, e ele devia ser o primeiro a dar exemplo de disciplina.

Mas deixou-se ficar junto às grades, com o negro nariz chato apertado contra um varão de ferro, aquele bruto homem, juiz dos presos, a dar adeuses com a mão enorme para a mulher sardenta de perna de pau, até que ela desaparecesse no umbral da enorme porta também gradeada que dava entrada para o pátio.

Então, de cabeça baixa, ele passou pelos três homens que o contemplavam, e Praxedes viu que o negro trazia gotas d'água embaçando as veiazinhas finas do branco dos olhos.

- Aquela é mesmo mulhé dele?

- Mulher no juiz e no padre.

- E não podem dormi junto, nem nos domingo?

- Enquanto o Bemtevi for um preso, será um capão como eu ou você. Capão por mais um mês ou capão por trinta anos conforme a sentença que pegar.

- Quando o Bemtevi vê a mulher - contou o Mineiro - não dorme a noite toda. Pobre do que ele escolher p'ra dormir com ele! Amanhece quase morto. O preto fica furioso como deve de ser um gorila quando está no cio.

- Deviam de dá a mulhé dele. Eu burro, mais isto não tá dereito! Obrigá um home a dormi cum otro home!

- Você acabará assim também, com o Cabeleira.

- Eu não, professô! Nunca tive gosto p'ra esta caça. Mas porque é que preso não pode tê mulhé?

- A sociedade acha imoral que um preso tenha necessidades que todos têm. O instinto que a lei protege e a religião abençoa, para os que estão soltos, é uma vergonha e um ato infame para os que estão presos. Encarcerado não pode amar.

- Mas os poliças não têm mulhé?

- Claro que sim!

- O juiz - o outro, que interroga a gente - não tem?

- Ninguém o proíbe de ter.

- Os jurados não têm?

O professor abanou a cabeça, que sim.

- Todo o homem que não é aleijado não tem mulhé?

- Tem, Praxedes, tem!

- Pois então, professô, porque só p'ra nóis fica feio tê mulhé?

O professor encolheu os ombros e repetiu:

- A sociedade acha imoral!

- Quar suciedade, professô?

- A sociedade dos outros homens todos, que não estão presos!

- Ah! é assim? Pois então, - e fez o gesto: , p'ra esta suciedade!

O Bemtevi ouviu aquilo e quis logo saber:

- Isto é comigo, seu?

Mas o professor apaziguou tudo:

- Está louco, Mário Antunes! O rapaz estava até com raiva por causa de tratarem mal a você!

- Tratarem mal eu?

- Decerto! Você, como juiz dos presos, deveria ter direito de dormir com a sua mulher, ao menos uma vez por semana!

O pretão suspirou, estendeu a mão para Praxedes e disse: não sabia que tu era meu amigo - aperta estes osso!


A Cadeia Velha, na Praça dos Andradas, no início do século XX
Foto de cartão postal da época