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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (10)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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O sonho de José Praxedes Lloyd

Praxedes dorme, agitado. Não são os percevejos do colchão que o incomodam, porque a sua pele já perdeu a sensibilidade para mandíbulas de parasitas, nestes cinqüenta dias de carceragem.

A sessão do júri que decidirá da sua liberdade está próxima. Mais grades ou a luz do sol? Seja como for, está disposto a não casar com Graciema: pois aquela perversa não fora dar parte dele? Cadela! Ele pensando que a estava caçando, piando como quem pia nhambu no morro, e vai daí ela é que o estava cevando, bem cevadinho, para obrigá-lo a fazer aquilo, no capinzal do Paquetá, e ter marido para o resto da vida!

Praxedes estava resolvido: mesmo que pegasse trinta anos, prisão perpétua, cadeira elétrica! Cadeira elétrica aqui não tem, mas que tivesse! Não casaria com a Graciema, fosse ela dona do cais de Santos, com armazéns, locomotivas, sacas de café, vapores estrangeiros, barca do Guarujá, tudo!

José Praxedes Lloyd dorme agitado porque de dia pensou muito que vai ser solto, talvez, ou talvez ficar preso por muitos anos, como for a vontade de sete homens na próxima sessão.

O professor explicou que vence a maioria: basta que quatro jurados queiram, o zinho está no pau.

Praxedes passou o dia ensaiando coisas bonitas para dizer ao juiz e aos jurados. Pensa que o vão interrogar, e que ele terá que se defender por si mesmo. O professor lhe perguntou: você não tem advogado?

Não tinha. Para quê?

- Sô home p'ra dizê as verdade de tudo!

- Se vai dizer as verdades - disse o professor - não precisa de advogados: iriam atrapalhar.

Praxedes pensa que é homem para sustentar o que fez. Chegaria ante a justiça pública e diria: foi eu, sim, que fiz mal na Graciema. Pensei que tivesse piando nhambu, e vai , a caça era eu e Graciema era o caçadô!

Será que jurado entende de caçá nhambu? É meió dizê de otra manêra: foi eu, porque macho e Graciema era a fêmea que eu queria. Tirei o cabaço dela e sostento!

Via-se no banco dos réus (seria um banco comprido como aqueles do galpão que serve de refeitório, lá em frente ao Frigorífico, aos operários das turmas da Docas), e se levantava, altivo, para dizer à justiça: que fiz eu de mais, gente? Se é crime um home andá com mulhé, todos os pais de voceis são gente criminosa também! A Graciema era virge? Arguém tem que o primêro, senão como é? Não nasce mais criança! É isto que os senhores tão querendo?

Aí o promotor - o professor explicava que era o sujeitinho que implica com os presos - o promotor se levantava e dizia: mais seu José Praxedes Lloyd, o sinhor não dêxa de a sua razão, porém se case c'oa moça, senão ele fica jogada, por aí... Case, que nóis sórta você!

Praxedes fulminava o promotor: você é besta, seu! Case você cum ela. Foi ela que me asseduziu p'ra pegá marido. Marido é burro de carga - tem de trabalhá de sór a sór e até de noite, p'ra levá o leite p'ros filho. O doutô é porque não conhece o Florenço, um estivadô do cais, nem o Romualdo, nem o Chico Spanhór que usa carça de veludo e morre de fome, nem o Pedro Bispo, que é um bispo magro! Uns coitado, tudo arreiado de mulhé e filharada. Eu não caso - se é p'ra casá, prefiro cadeia. Cadeia tem comida e telhado, home pobre casado muita veis não tem.

Cruzaria os braços e diria: seus jurados, se faça-se a vossa vontade! Seria soberbo!

Mas às vezes uma vozinha trêmula parecia dizer-lhe ao ouvido: e se tu, José Praxedes Lloyd, se tu negasses?

Poderia dizer, com o seu ar mais admirado, eu não sei de nada. Nunca fui nos capinzá do fundo do cemitério (diabo! era melhor ignorar o lugar, senão desconfiavam!). Namorei a Graciema, mas isto que se diz é uma...

- Professô, quando se levanta um farso de arguém, quem é que se diz?

- Manda-se o sujeito que o levantou àquela parte...

- Não é isto, o farso, como se chama?

- Calúnia.

- Brigado! - Pois, doutô promotô, é uma calúnia!

Agora, Praxedes dorme. No seu sonho, o juiz de roupa preta, comprida como saia de padre (juiz de tribunal deve vestir assim), tem uma cara esquisita. Olhem só! Quem havia de dizer: é o próprio juiz dos presos, o Bemtevi! O negro Bemtevi, que pega menores à força no xadrez 3! E quer julgá-lo! Então já não se lembra do Anastácio? É só gritar no júri: o juiz Bemtevi comeu um defunto! Todo o mundo se virará contra o juiz e baterá palmas para ele, Praxedes.

Mas porque vem para a sala esta cama verde tão grande? E a Graciema vem em cima! Está toda despida, como ele a fazia ficar no quartinho da Rua Dr. Cockrane.

Quatro soldados o seguram: me larguem! Debate-se, morde o travesseiro, dá pontapés no cobertor. Os soldados o atiram em cima da cama, junto da Graciema, que está nua, com os seios miúdos marcados de roxo: foi brutalidade dele!

Praxedes quer descer da cama verde. Graciema o segura, aperta-o nos seus braços macios e quentes.

Os soldados põem reposteiro verde em volta da cama. Não se vê mais ninguém, só se ouve, longe, o ruído dos bondes e o ranger de âncoras puxadas, e as sereias dos vapores. Parece que o cais está ali perto.

Graciema o segura, ele foge dela. Então a moça começa a piar de nhambu, docemente, sorrindo para ele. Praxedes está na beira da cama; ela pia, de braços abertos, na outra beirada. Aquele pio tem uma força irresistível - ele vem chegando, e ela sorri sempre, e lhe diz: eu caso com você, Praxedes, não tenho medo!

Ele duvida: casa mesmo? você jura?

Sente já o vento morno que sai das narinas da mulher, que fala: juro, sim, Praxedes!

Ele lhe encosta a mão num seio, deixa-a escorregar pelo ventre abaixo, apalpa-lhe o sexo peludo, esquece que está no júri, numa cama verde muito grande, entre reposteiros verdes, e goza, goza intensamente, como jamais o fez, o corpo palpitante da moça.

E quando se sente amolecido de volúpia satisfeita, o nome dela lhe sobe à boca, e Praxedes o diz da maneira mais doce por que podem os seus lábios de homem rude dizer um nome de mulher: Graciema!

E ela responde, ofendida: Graciema não, Praxedes Lloyd! Eu o teu Cabeleira!

Ele volta à realidade e à cadeia, atira fora do colchão o companheiro de xadrez, com pontapés.

Do chão, a voz humilde e aflautada sobe: obrigado, Praxedes, meu amor!


Postal datado de 3/11/1934 mostra o canal de Bertioga e parte da área continental santista. No primeiro plano, a Praça José Bonifácio, com o Coliseu e a Catedral. No centro da margem direita, a região do Paquetá com o edifício do Tráfego da Companhia Docas

Imagem: acervo do professor e pesquisador santista Francisco Carballa