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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (11)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Serenidade

Desatraca o paquete de chaminé vermelha e branca. Minúscula formiga puxando elefante, o rebocador arfa, arrastando para o largo o Cap Polonio.

Em jatos, a água pula dos bueiros do casco e turbilhona na popa, refervente, aos movimentos dos hélices que procuram ajudar a manobra.

Pú-ú-ú-ú - Pú-ú-ú - Pú-ú-ú, berra o transatlântico, espirrando vapor d'água pela sereia, junto à chaminé grossa e fumegante.

Lenços começam a acenar do cais, lenços respondem aos acenos, do convés de primeira classe.

Revoluteiam gaivotas sobre as águas agitadas, porque afluem cardumes de manjuba e de peixinhos faiscantes, atraídos pelo movimento das marolas e pelo lixo que o vapor vomita no estuário.

Singra a superfície lisa, ao longe, a barca do Guarujá, de barra escarlate no cimo do cano que vai largando um adeus de fumaça.

A linha dos morros azuis, na direção de S. Paulo, perde aos poucos a nitidez dos contornos. Uma barra violácea prende o céu à terra, sobre a ilha Barnabé...

No tombadilho da terceira classe, pratos ao colo ou repousados na amurada larga, os imigrantes que vão para a Argentina bebem sopa e chupam bigodes molhados, sem tirarem os bonés da cabeça.

Um batelão, baixo e sujo, com homens de camisa azul aberta ao peito, vem voltando do mar largo, onde abandonou a vasa drenada do porto pela incansável draga Vera-Cruz.

Plaque-plaque - batem os remos e bate a quilha de uma canoa, na água ondulante, fazendo gingar o corpo do canoeiro no vai-vem das maretas.

Sentado à beira da muralha do cais, Florentino contempla o monstro flutuante em cujo bojo ele ajudou a descer sacos de café e cachos de banana. Ele conhece do vapor exatamente tudo o que aquele passageiro de primeira, de boné azul-marinho, desconhece: o mundo que há debaixo da boca da escotilha - chão pegajoso de açúcar, azeite, farinha, sal, óleos, derramados através de muitos cruzeiros, e que a umidade do mar fundiu em grossas nódoas viscosas, coradas pelo carvão das fornalhas, e onde se colam as plantas dos pés nus dos homens do cais.

Quem sabe quantas gotas de sangue de trabalhadores de muitos portos não estão disfarçadas ali, no meio do óleo, do açúcar, da fuligem, do azeite, dos grãos perdidos de café!

E conhece a casa das máquinas, onde enormes bielas e mancais de aço polido sobem e descem, macios dentro do óleo, e onde carvoeiros negros de calças sungadas despejam pazadas de hulha no estômago escarlate das fornalhas.

Lembra as lições de catecismo do padre Scipião: por baixo da terra, o fogo do inferno; por cima, junto às nuvens, o paraíso. Florentino pensa: com tanta diferença, será que não existe muita revolta no outro mundo também?

O paraíso é o viajante de boné de casimira azul-marinho, fumegando um cachimbo, todo pimpão. O estivador tira, de dentro da larga faixa avermelhada que lhe serve de cinto, um cigarro Moisés, de $300 a carteira.

- Me dá fogo, Bentinho? Brigado.

Puxa uma tragada.

O Cap Polonio já está tomando o rumo do canal. Acendem-se lâmpadas no cais e a bordo. No porto, o movimento cessou de todo.

Um rosário de luzes trêmulas brilha serra acima, no trilho aberto pela Light e que vai até a represa do Alto da Serra.

Dormem, projetando sombras fantásticas na água e nas pedras, os guindastes paralisados, de longos pescoços de girafa.

O estivador olha a fila dos armazéns internos, que se espicha por quilômetros, a perder de vista: está tudo quieto.

- Ninguém tá trabaiando mais. Parece que nóis tudo ficô rico de repente...

O companheiro sorri, e solta uma baforada do charutinho a 2 por um tostão.

Um menino vestido de veludo com gola de renda branca acena para a terra, na direção deles. Florentino responde, agitando o gorro em cuia que suportou 500 sacos, um a um, por cima da cabeça.

A orquestra de bordo toca uma valsa austríaca; pelas janelas abertas do salão, vêem-se passar e repassar pares enlaçados.

O estivador acena para o menino, e, pode ser do cansaço ou da serenidade das coisas, sente-se numa feliz tranqüilidade no porto tranqüilo.

Tem a impressão de que não embarcou também, lá em cima, em primeira classe, porque não quis... Apenas porque não quis...

Desponta a lua, riscando um trilho prateado à flor do mar. E o Cap Polonio segue o caminho de prata, todo cheio de luzes, dentro da mansidão da noite.


O transatlântico Alemão Cap Polonio, atracado no armazém 5 da Companhia Docas de Santos (CDS), na altura da Praça da República, por volta de 1925

Foto: acervo do despachante aduaneiro e cartofilista Laire José Giraud