Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult082z17.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/31/09 20:17:26
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (17)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

Leva para a página anterior

Cais de Santos

Alberto Leal

Leva para a página seguinte da série

Unhas de gente rica

Maria dos Anjos vai levar a roupa lavada à casa nº 150 da Rua Tupis, onde mora o dr. Guedes. É o bairro que o bom-humor popular conhece por Vila Rica.

Maria dos Anjos se orgulha da freguesia que tem ali: é só graúdo, doutor, "gente de dinheiro", que mora na Vila Rica. Conta na bacia do Macuco: ali, todos me pagam, não dão cano! Gente besta p'ra burro de tão emproada, mas lá isto é verdade: pingam os nicolaus!

Maria dos Anjos toca a campainha com o dedo indicador e repara: chi! que unha suja! Foi das couve que andei prantando!

Uma criada de avental branco rendado, com minúscula touca presa de banda sobre os cabelos, abre-lhe o portão.

Maria dos Anjos dá bom dia e vai entrando, com a trouxa de roupa lavada. Entrando e pensando: p'ra que esta bobage deste paninho amarrado na cabeça?

Dona Aglae examina as peças, reclama um pontinho de ferrugem num lenço Pyramid.

- Já tava, dona Aglae! Juro por Deus como já tava!

Beija os dedos em cruz, enquanto dona Aglae franze a testa, duvidando.

Maria dos Anjos fala na gente da Vila Santista e das três travessas da bacia. Dona Aglae não sabe onde é!

- São treis travessinha, madama, lá no fim da linha do 15. Perto da linha Forte Augusto. É tudo cheinho de casinha de pobre. Uma gente tão pobrezinha, dona Aglae! A famia do estivadô Florenço, por inzemplo. Não sabe quem são? Não leu nos jornais? Pois foi aquele que levô c'o a barra de ferro na cabeça. Abriu o tampo, saiu os miolo; não leu? A famia tá na miséra: dona Augusta e cinco fios!

Dona Aglae se lembra vagamente: também, são tantos desastres aí no cais! A gente não pode se lembrar de todos, mas deste se lembra, sim: não foi um que ficou esmagado pela caçamba de carvão?

Maria dos Anjos se escandaliza com tamanha ignorância: quar nada, dona Aglae! Este já foi no outro meis, foi o coitado do compadre Inaço. Agora foi o Florenço, casado com dona Augusta, pai de cinco fios! Não se alembra?

Dona Aglae conta os níqueis tirados de uma bolsinha de prata, de malhas finas: dois, dois e seiscentos... três... cinco... oito mil e quatrocentos... Fico devendo um tostão.

- Tem os ovos, dona Aglae, aquela meia dúzia que eu trouxe na quinta-feira...

Dona Aglae pensa, pensa: não foram só quatro?

- Não sinhora! meia duza, juro por Deus!

- Ah! é que dois estavam podres. Só pago quatro. Vou lá dentro buscar mais mil e duzentos.

Maria dos Anjos sabe que os ovos estavam fresquinhos (bem que ela espiou um por um contra a luz) e que aquilo é desculpa de madame para regatear o preço. Suspira: puxa, que até na Vila Rica tem gente pão-duro! E é mulhé de doutô, grã-fina!

Madame voltou e estendeu a mão com os níqueis. A mão é branca e fina, terminada em unhas pontudas, rosadas, polidas, nacaradas. Maria dos Anjos nunca viu coisa tão limpa e tão brilhante. Nem broche da casa dos dois mil réis!

Que vontade tem de perguntar assim: a sinhora, dona Aglae, nunca prantô couves p'ra comê, pois não?

***

Agora vai à casa do comendador Pereira. Sabe a história toda dele, e rememora: é um portuguêis que já foi carrocero (a comadre Hermenegirda conheceu ele na boléa) e que agora empresta dinheiro p'ros que tão enforcado. O enforcado sente a corda no pescoço, percura o portugueis, dá o chalézinho onde mora com a famia, em segurança do dinhero. C'os cobres que o portugueis empresta, afróxa um poco a corda e suspira. Depois, quando menos espera, o judeu do home puxa outra veis a corda, manda o pai de famia espirrá os juros e o cobre de quarquer jeito, e acaba tomando a casinha do enforcado. Já teve um pai de famia que se matou deste desgosto! Tem portugueis bão, mais tem cada um! (Maria dos Anjos puxa um pigarro, e o escarro que expele é dedicado a todos os agiotas da cidade).

Mora num palacete, que sim sinhô! Escada de marmor, lampião no jardim, repuxo com pêxe vermeio dentro. E um casarão! Tudo aquilo feito c'os chalezinho dos pobre! Só a sala das visita deve de tê custado umas deis famias no oio da rua, sem teto, p'ro portugueis podê arrecebê gente graúda que vem conversá com ele. Sim sinhô! Tem portuguêis bão, mais tem cada um! Aquele tem até sangue na consença!

Maria dos Anjos contempla o muro do palacete: onde já se viu isto? Aqueles letrero nas pranchinha de metar dorado (deve de sê oro memo de vinte e quatro quilate!) tão escrito assim: pão-carne-leite-jorná.

Por baxo tão as caixinha preta com cadiado. Diz-que é assim: o padêro chega abre a caxa e dexa o pão; o açoguéro vem, abre a otra caxa e dêxa tudo que é carne de premera, até carne de porco, se o portugueis mandá! Vem o leitêro e põe uma porção de garrafa cheinha de leite... Vem tudo trazê na porta.

Na Vila Santista não vê que é assim! Coitada da dona Augusta, viúva do Florenço! Não espera que o pão e o leite venha no quarto dela: ela é que vai na padaria, no açôgue, na carrocinha do leite, e percisa falá muito e pedi muito, e assim mêmo às veis não traiz nada p'ros fios! Então, ela, Maria dos Anjos, ajuda como pode e Deus dá. Mais não faiz mar: se Nosso Sinhô for justo, no outro mundo o Florenço vai casa com caxa p'ra pão no muro, e o portugueis há de trabaiá no cais, no cais do inferno, que deve de sê grande, quente e perigoso como o cais de Santos. Bem feito!

Enfia o polegar - porque está com raiva - no intervalo das grades, e calca com fúria o botão elétrico. Depois empurra o portão e vai entrando: na casa do portugueis não tem cachorro - pensa - só o dono.

Entrega a roupa lavada à filha do comendador Pereira. É feia e usa óculos, mas não é má, sempre paga uns quebrados a mais à lavadeira.

- Quanto é tudo, dona Maria dos Anjos?

Finge que calcula, batendo os dedos da mão direita na alma da mão esquerda: duas combinação, treis calças, quatro corpinho, cinco paninho... tem as cueca do seu pai...

- Do papai, não, do Mário. Papai só usa ceroula comprida.

- Ah! cumo eu havéra de sabê? Pois tem duas celoura cumprida de amarrá na canela, tem oito lenço... É tudo.. dexa vê.. cinco, mais treis... quatro veis cinco...

Puxa um papelzinho, onde o compadre Romualdo já calculou tudo e diz: doze mil e cem.

Cem, é mentira. A conta deu exatamente doze mil réis. Mas a moça não regateia os quebrados, arredonda-os sempre, e Maria dos Anjos quer pescar, com aquele cem, dez tostões mais além da conta certa.

Está suspensa, com o coração bate-que-bate, esperando que a moça erre a soma e pague treze mil réis.

- Não tá certo, dona Ritinha?

- Não está! Na minha conta são 12$300. Tome treze mil réis, não precisa troco!

- Obrigado. Posso trazê os ovos quando vinhé buscá a rôpa suja na sexta-fêra?

- Pode. Duas dúzias. A como é que estão?

- Tão a... a dois mil e cem, sim senhora.

- Bem, traga. Até logo.

- logo, dona Ritinha.

Maria dos Anjos reparou também naquelas unhas: são pintadas a vermelhão, assim como sangue, e compridas, pontudas, nacaradas, limpas, brilhantes...

A vendedora de ovos não tem dúvidas: agaranto que esta moça, com estas unha, não é capaiz de experimentá e dizê si uma galinha vai ponhá ovo hoje ou só aminhã...


Palacetes, na Rua Sete de Setembro, confluência com Avenida Conselheiro Nébias

Foto enviada a Novo Milênio por Ary O. Céllio, de Santos/SP