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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (20)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Manteiga

Dona Carmen lava roupa para fora. É vizinha de Maria Augusta, a viúva do Florêncio.

D. Carmen tem fama de alcoviteira. Já uma vez foi chamada à polícia porque queria desencaminhar a Ziza, uma mocinha sem pai nem mãe que mora com uma tia velha na Travessa nº 2.

Queria levar a Ziza para a pensão de uma russa. Decerto ganha comissão. Mas quase foi dormir na cadeia, quando a tia da Ziza deu parte dela.

D. Carmen lava roupa para fora, para gente graúda. Arranja mulheres novas para os seus fregueses velhos e ricos. Ninguém gosta dela, no bairro operário.

Vive preparando a desgraça dos outros, para ganhar comissão dos homens velhos e das "madamas" da Rua do Rosário.

D. Carmen tem tido umas conversas esquisitas com Maria Augusta. Outro dia lhe disse: a senhora, dona Augusta, assim moça e com este rostinho formoso, não era p'ra está aí, neste quarto escuro, c'os fios passando necessidade. Não era, dona Augusta! Eu, no seu logá...

Maria Augusta não quis ouvir mais a conversa, mas ficou pensando, pensando, e as lágrimas correram. Faz quinze dias que na sua mesa não há carne. Tem que pôr água no leite para chegar para os cinco filhos. Ela não precisa, bebe café ralo, mesmo, comprado dos moleques que varrem e juntam na rua, em frente aos armazéns das grandes companhias, os grãos perdidos e quebrados.

Já cansou de procurar emprego - a Tecelagem está cheia, nos armazéns há catadeiras demais, na fábrica de fumo do Marapé não há vaga, nem na de farinha de banana, nem na de papel, no Cubatão.

O jornal está cheio de "oferece-se" e quase vazio de "precisa-se". parece que gente rica não usa mais arrumadeira, copeira, cozinheira. Em nenhuma parte lhe dão trabalho.

Parece que só nas pensões das "madamas" russas e polacas há lugar para uma mulher nova que tem filhos com fome.

D. Carmen tornou a insistir no assunto; agora é outra história, muito mais clara: que ninguém precisa de saber, que dona Augusta pode receber alguns senhores - todos muito distintos! - no próprio quarto dela, Carmen. Que se alguém vir, a má fama será da dona da casa, não de Maria Augusta.

- A vida é a vida, d. Augusta!

- Mas d. Carmen, isto é uma vergonha!

- Qual nada! Tem tanta mulher da alta que anda se encontrando com home nos quartos de hotel da cidade. E mulheres que têm marido, dinhêro, automóvel. Estas é que podem ser censuradas, mas a senhora, d. Maria Augusta, que tem filhinhos com fome...

A viúva baixa a cabeça. D. Carmen lembra sempre a fome dos seus filhos, porque sabe que é a coisa que mais lhe dói.

- Mas eu mandei meu nome e o nome das crianças p'ra uma sociedade que diz-que socorre os pobres: é o tal clube Utopian. A senhora não acha que eles mandam me ajudar?

- A sinhora já me diz isto faiz seis meses des-que morreu o falecido. Rico ajuda pobre, sim, porém é perciso que o pobre não seje também orgulhoso, d. Augusta!

- Isto não é orgulho, d. Carmen! Isto é vergonha que toda a mulher deve de ter!

- Pois sim. Eu falo é pr'o seu bem, d. Augusta, e porque me corta o coração ver as crianças com fome...

D. Augusta disfarça uma lágrima, fingindo ajeitar uma mecha de cabelos junto aos olhos.

- E... a sinhora conhece alguém, d. Carmen?

- Se conheço! Tem um senhor muito distinto que já me falou da sinhora. Ele gosta da sinhora, d. Augusta!

- Se me gostasse, não precisava exigir nada, p'ra me auxiliar.

- Mas a sinhora sabe, ele percisa ter provas de que a sinhora corresponde, porque - e pisca um olho - amor exige amor!

- E... quanto ele me daria?

- Acho que até uns trinta mil réis.

- Só?

- Pois olhe que é generoso. Os outros não dão tanto. Em todos os causo, quem sabe se eu arranjo cinqüenta?

D. Augusta pensa um instante: é a conta do leite, exatamente. Se não pagar, o leiteiro corta o fornecimento.

- Está combinado: cinqüenta! Fale com ele.

- Fique adiscansada. E não se impressione c'oas criança - eu fico cuidando.

***

Num penhoar emprestado pela intermediária, Maria Augusta espera, no quarto de d. Carmen, a chegada de um homem que lhe dará 50$000.

D. Carmen pintou-lhe a boca e os olhos, polvilhou-lhe o rosto de pó de arroz, pôs-lhe água de cheiro entre os seios e nos cabelos.

Maria Augusta espera o rico generoso que lhe pagará a conta de leite. Ela precisa de ser uma "pobre sem orgulho", como diz d. Carmen, porque o leiteiro ameaçou cortar o fornecimento.

Umas pancadinhas discretas na porta. O coração de Maria Augusta pula que pula. Terá coragem? e a conta do leite?

- Entre!

***

No dia seguinte, na rua barrenta, a molecada rodeia o Tonico, segundo filho de Maria Augusta.

Tonico mostra aos molequinhos sujos uma coisa sensacional: macacada! voceis sabe que é isto aqui? Aqui em cima do pão?

Ninguém sabe.

- É manteiga, macacada! Minha mãe comprô!

A molecada suja olha admirada para o Tonico, que come pão com manteiga por cima. Um menorzinho estende a mão e pede: dêxa eu prová?

Tonico dá-lhe um pedaço.

- Dá um pedaço p'ra mim?

- P'ra mim, Tonico!

- P'ra eu também!

Tonico ficou sem pão com manteiga. Mas não faz mal: mamãe há de comprar mais; d. Carmen disse que agora mamãe tinha tomado juízo, e podia ganhar muito dinheiro! Todo o dia pode comer manteiga.

Que bom, manteiga!

Rua do Rosário por volta de 1920, futura Rua João Pessoa

Foto: coleção Laire José Giraud