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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (24)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Encontro

O cais fervilha de gente. Marinheiros de todos os quadrantes, operários da Docas, estivadores suarentos, conferentes e funcionários das firmas interessadas nos embarque e nos desembarques.

Passam guardas da alfândega, vencedores de maçãs e de laranjas, passageiros de boina à cabeça com máquinas fotográficas a tiracolo. Passam e repassam sobre a calçada do cais, falando, gritando, praguejando, apregoando...

O sol tira dos telhados de zinco dos armazéns chispas que parecem furar os olhos, de tão luminosas. O suor escorre de todos os pescoços e trescala de todos  os corpos.

Aquela moça argentina tem manchas úmidas nas axilas, desbotando a seda verde do vestido.

Aquele estivador negro tem a camisa ensopada nos sovacos, que se mostram quase a nu, erguidas as mãos à cabeça para segurarem a saca de café que vai para bordo.

Um marinheiro ruivo procura a sombra do armazém, na calçada alta, porque o calor que sai das pedras ao sol passa através da sola das botinas grossas.

Na polia de um guindaste que geme e roda de cá para lá, a graxa derreteu e vem correndo, aos pingos, negra, braço de ferro abaixo, como gotas de suor que a máquina suasse.

Na popa do Itaité, quatro novilhas de raça que vêm do Rio Grande do Sul põem fora a língua vermelha e arfam ruidosamente.

De espaço a espaço, uma gaivota fecha as asas e mergulha, atrás de peixe ou pelo prazer do banho na tarde sufocante.

A bola de ferro do guindaste desaparece na boca da escotilha do Tambaú, e logo sobe, retesado o cabo de aço, com uma lingada de sacos de açúcar mascavo, rescendendo a melado.

Uma locomotiva vem em marcha à ré: vuque-vuqe-vuque-vuque. Um homem levanta a mão, o maquinista diminui a marcha, vai encostando nos vagões parados: plaque-plaque-ploque-pléque...

Vão batendo uns nos outros os pratos dos pára-choques, desde o primeiro vagão onde a máquina engatou até o último, cento e cinqüenta metros para trás. A máquina espirra vapor d'água pela sereia: pi-i-i-í, e arranca para a frente, pondo fumaça aos bufos, pelos dois lados - vuque-vuque-vuque-vuque...

O cais está quase todo tomado pelos vapores, desde o armazém 1, onde o Itapoan descarrega carvão de Imbituba, até o Frigorífico, onde o Augustus descarrega turistas de vários países do mundo.

- O serviço juntou todo hoje, hein? - observa a motorista de uma lancha da Bocaina a um amarrador de navios.

- É verdade! Parece o tempo de antes da guerra da Alemanha!

As dalas vão carregando, na correia sem fim, uma a uma, as sacas para bordo, silenciosas, sem praguejar como os homens que em longa fila carregam também sacas à cabeça, desde os portões que abrem para a Rua Xavier da Silveira até as cobertas dos navios. Desde os portões, onde se enfileiram enormes caminhões com reboques, longas carroças da C.U.T., abarrotados de "Santos - a bandeira brasileira - Estado de São Paulo - Café do Brasil".

No fundo do porão do West-Imboy, o calor parece ter o peso daquela quartelada que os estivadores levantaram faz pouco, para deixar escancarada a boca da escotilha.

Parece que não é o sol que jorra pela abertura, mas os próprios travessões maciços da quartelada inteira, feitos luz por algum encantamento mau, que descem do alto e pesam sobre os ombros e a cabeça dos estivadores.

Algum barril de aguardente deve ter vazado ali por perto, porque o ar da 4ª coberta está cheio de evaporações de álcool, como um botequim do cais. Aquele cheiro se mistura com o acre odor de couros mal curtidos, amontoados a um canto - os de boi por baixo, os pelegos de carneiro por cima.

- Isto vira o estômo!

Agenor careteia, arrumando um fardo.

Desce nova lingada com três volumes enormes. Vem descendo sobre a cabeça dos homens. Eles pulam para os lados, ajeitam a lingada, ainda suspensa, para que a carga fique em lugar certo.

O guindaste desce os fardos em pequenos arrancos, e mal eles encostam no chão, mal se afrouxa o estropo, já um estivador os desprende do gato, onde enfia outro estropo vazio, que sobe pelos ares, levado pelo guindastes em busca de nova carga sobre a calçada do cais.

Volta outra lingada de três fardos, bate no vime, ao tentar entrar na escotilha. O guindaste guincha, ergue a carga, procura posição. Um homem ajuda, junto ao vime - empurra a lingada para o meio do buraco, e o motorneiro executa a manobra de descida. O homem levanta a mão, o guindaste uiva e estaca. Os fardos rodopiam no ar, suspensos sobre as cabeças dos estivadores que estão no fundo do West-Imboy. Cada volume daqueles pesa 150 quilos: algodão em bruto, comprimido.

O homem segura o cabo de aço, trepa em cima de um fardo, e o guindaste geme e vai descendo o homem e o algodão pela boca da escotilha.

- Ei! Sostenta isto, Remualdo! - grita Agenor, porque a lingada fez um rodopio e pendeu para um lado. Mas logo encostou no chão, o estropo afrouxou, o homem pulou de cima do fardo.

- Já cabei de carregá as banana do Saverne, pessoá. Agora vim ajudá voceis neste americano.

- Ah! É você, Praxedes? - e Romualdo pendura o cabo vazio no gancho do guindaste.

- Agenor! - Praxedes abre os braços - tanto tempo! Des-que fui preso não via você, negro feio!

- Como vai, Praxedes?

- Diabo! Você zangado, home? Não se arrecebe assim os amigo!

- cansado. muito calô, Praxedes, descurpe.

Praxedes vai ajudar a empilhar os fardos, Agenor dirige-se ao lado oposto, rolando uma pipa para fazer espaço para o algodão.

***

Na saída do trabalho, Praxedes veio procurar o amigo de outros tempos.

- Tu não é mais meu amigo, Agenor?

- !

- Parece que porque eu tive preso tu foge de mim.

- Fujo nada. mais é cansado. Trabaiei extraodenaro onte à noite no Avila Star. cansado.

Dirigem-se, lado a lado, para o ponto do bonde. Agenor espera que Praxedes se vá.

O 19 vem tinindo, cheio de trabalhadores, no elétrico e no reboque. Agenor segura-se a um balaústre, firma-se em pé no estribo do reboque: logo, Praxedes!

Mas este pula também no estribo, atrás dele.

- , eu também moro por esta banda!

Agenor tira um níquel e dá ao cobrador:

- Duas, cobre aí.

- Brigado, não percisava se incomodá.

O bonde parou para que uma mulher gorda subisse. Ela procura lugar, de banco em banco, em vão.

- Não tem mais logaire! - avisa o cobrador, dando o sinal de partida.

A mulher gorda fica, aborrecida, à margem da linha.

- Que traste, hein, Agenor? A gente cum pressa p'ra armoçá...

- Pois é.

O bonde para de novo; uma outra turma de operários, de paletó jogado ao ombro, assalta os raros balaústres desocupados, pisando no estribo os pés dos que já estão acomodados.

- Pise no chão, seu! Me esmigaia os calo!

O desastrado ri:

- Descurpe. Não tenho raiva dos seus calos. Não foi por querê.

O 19 corre pelo longo cais, sob o sol forte. Passa pelo Frigorífico e alguém observa: eu queria ali dentro, agora!

Alguns riem. Um operário já velhote e prudente observa: aquilo é bom p'ra dá pumonia! Já trabalhei lá e peguei uma que quase me levô!

O bonde vai tinindo, para que a carrocinha da padaria Estrela Nova saia dos trilhos. O padeiro desvia a carroça para um lado, mas fica zangado com a assuada dos passageiros, e mostra o punho fechado para todos. Os operários vaiam, em gritos e assovios.

No cruzamento da Avenida Rodrigues Alves desce um magote de homens.

Agenor espera a todo o momento que Praxedes desça. Mas o 19 percorre toda a Rua Senador Dantas, e nada! Na avenida Pedro Lessa há já bastantes lugares nos bancos.

- Tem logá aqui, Agenor, Vamo sentá.

Puxa conversa.

- Sabe, eu morando com uma mulhé daqui! Se chama Luísa, o apelido dela é Lú. Nunca mais sube da Graciema; tu tem visto ela?

Agenor tem um sobressalto.

- Eu? Eu não, Praxedes.

- Ué, home, não percisa ficá zangado, perguntei pur perguntá. Não tenho nada c'oa vida dela. Vai que já na vida, aquela semvergbonha!

- Tu tá enganado, Praxedes, Garciema não é destas! É mulhé às dereitas, tu é que enganô ela!

Praxedes ri:

- Foi um trabainho bem feito, confessa! Piei ela cumo a gente piava nhambu no Jurubatuba, se lembra? Assim: pi-i-i - pi-i-i. Tu tem caçado muito, Agenor?

- Não tenho, não.

- Nem mulhé?

- Nem. Isto é... às veis.

Agenor vai despedir-se, porque o seu ponto de descida é aquele poste listado de branco, ali na esquina do canal 5. Mas Praxedes também se levantou para descer:

- Ué! Nois moremos perto, hein?

Vão caminhando agora pelo areão. Parece que este sojeito tá brincando de me acompanhá - pensa Agenor - Será que ele sabe de arguma coisa? Quem sabe se...

- Praxedes, tu tem visto a dona Maria dos Anjo?

- Eu não. Des-que fui p'ra cadeia não vi mais aquela bisca. Sabe da vida da gente cumo quarqué rodinha de farmaça ou cumo um promotô!

Então, se não falô, ainda não sabe! É esquisito! E o negro tenta decifrar o mistério.

Não precisa: Praxedes parou junto ao chalé onde mora aquela mulher que provocou Agenor já três vezes, antes da Graciema vir para ali.

- Moro aqui, Agenor. servido de armoçá?

- Brigado. Bom porveito! logo!

Ora vejem! O Praxedes seu vizinho! E amigado com aquela mulhé... Hum... aquilo é mulhé eu sei d'onde...

Vai entrar em casa. Praxedes ainda não entrou.

- Eu moro aqui, Praxedes. Semos vizinho.

O mulato ri:

- Que engraçado, hein? Quarqué dia eu e a patroa vamo te visitá, Agenor.

***

Graciema se assusta: que cara é esta? Está aborrecido, Agenor?

Agenor senta-se junto à mesa onde o feijão fumega na terrina. Mete a mão calosa na cuia de queijo Palmira que serve de farinheira, apanha um pouco e diz: tu percisa não falá com estes vizinho aqui do lado. Nem chegá no quintar. Não dá trela p'ra mulhé, nem nada. Até nois arranjarmo otra casa.

- Que gente é? É gente ruim?

- Pior que ruim! É gente muito ordenara. Percisa tê cuidado.

- Meu Deus! E eu estive falando hoje de manhã com a dona Lú!

- E ela te falô como se chama o home dela?

Fica suspenso, esperando a resposta:

- Não, não falou. Como se chama, hein, Agenor?

- É... é um tár de... (procura um nome estrangeiro, bem difícil. No jornal que aquele companheiro vinha lendo no bonde, na sua frente, havia a notícia de um homem que estava vendendo muitos canhões na China, com a última revolução: como era, mesmo? Ah!) diz-que é um tar de Wu-Pei-Ho!

- Chinês?

- Quar nada! Pelo nome deve de sê russo ou polaco!

Agenor espalha a farinha pelo feijão, satisfeito da sua estúcia. Vai metendo boca abaixo aquela massinha escura que formou, mexendo com o garfo o feijão e a farinha.

- Agenor!

- Qui é?

- Não se põe a faca na boca, Agenor! É muito feio!

- Dêxa, Garciema! Quando eu ficá capitalista eu não boto mais, sim?

Fazer o percurso agarrado ao estribo era uma habilidade da qual os homens se orgulhavam
Foto publicada em A Tribuna em 20/5/1947, recuperada do arquivo particular do autor,
o repórter fotográfico José Dias Herrera