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DIA DE ANCHIETA
Anchieta em Iperoig (1)

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Anchieta na paz de Iperoig

Luiz Tenório de Brito

Foi tudo no Brasil nascente.

Catequista e cronista abalizado com a publicação no futuro de suas preciosas cartas e informações, onde se retrata com fidelidade a fisionomia da terra e da gente que a habitava, dramaturgo, poeta e musicista, consagrou-se ainda o Padre José de Anchieta o taumaturgo da América.

Mas é através das longas e penosíssimas negociações que culminaram no famoso Tratado de Paz de Iperoig que esplendem as mais puras virtudes que exornam esta singular figura de apóstolo das selvas.

***

Anchieta escreve seu poema nas areias de Iperoig
Imagem: História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, 1997, S.Paulo/SP
(reprodução de Vida Ilustrada do Padre Anchieta, padre Frota Gentil, Rio de Janeiro/RJ)

Tornando-se conhecido o roteiro que conduziu Pedro Álvares Cabral ao descobrimento do Brasil, alvoroço incontrolável passou a contagiar outras nações. Todas queriam conhecer a nova terra.

A França terá sido das primeiras a trilhar o caminho indicado. E o fez resolutamente, Primeiro, comerciando com o índio. Tentando após fixar-se definitivamente em algum lugar da imensa costa brasileira. A mais séria dessas tentativas foi a que resultou na experiência da Baía da Guanabara.

Aí desembarcando, na segunda metade do século XVI, com poderosos recursos em homens e material de guerra, alimentavam os franceses o objetivo claro de uma instalação definitiva.

A conjuntura desenhou-se grave. País pequeno, população escassa, em pleno apogeu dos descobrimentos marítimos - era ainda mister que Portugal mantivesse intactas as conquistas já levadas a efeito noutras partes do mundo.

Quanto ao Brasil, que desde os primeiros tempos se destinou à formação de vasto império - necessário se fazia defendê-lo contra investidas assim perigosas.

A presença do francês calvinista na Guanabara ameaçava, sob tríplice aspecto, a unidade brasileira: geográfica, lingüística e religiosa.

Como fator agravante da situação já de si delicada, conseguiu o intruso as boas graças da grande nação tamoia que dominava todo o litoral de Bertioga até Cabo Frio. Tornaram-se amigos e aliados na guerra.

Povo belicoso por excelência, eram dez mil arcos com que passou o francês a contar sobre os próprios recursos, que já seriam suficientes para enfrentar o lusitano em qualquer emergência.

Nunca haviam sido razoáveis sequer as relações entre portugueses e tamoios.

A aliança agora estabelecida trouxe ao índio maior estímulo nas hostilidades contra o lusitano. Resultado imediato da circunstância foi a tentativa de destruição levada a efeito contra o Colégio que, de São Vicente, passara para o planalto piratiningano, por ordem do Padre Manoel da Nóbrega, primeiro provincial dos jesuítas no Brasil.

Realmente. Vindo da Bahia, em visita às instalações do Sul, feitas pelo Padre Leonardo Nunes, não gostou o provincial da escolha de São Vicente para sede do Colégio.

E não gostou porque, na época, todo o litoral santista era constantemente flagelado pelo pirata e pelo índio adverso. Ocorria ainda que a maioria eventual de alunos viria do Planalto, de onde igualmente desceriam os gêneros alimentícios necessários à manutenção do Colégio. Questão portanto de segurança e economia.

Assim, depois de longa peregrinação pelo altiplano, desde a Borda do Campo até Maniçoba - a provável Itu dos nossos dias -, afigurou-se-lhe e com razão evidente que o local indicado seria aquele onde a 25 de janeiro de 1554 foi rezada a missa simbólica da fundação do Colégio e conseqüentemente a fundação de São Paulo de Piratininga.

A vocação de homem de Estado, que nos grandes momentos aflorava em Nóbrega, apontou-lhe a colina predestinada como o lugar certo. Dominando vastas planícies que se desdobravam em derredor, dispunha o ponto escolhido de excepcionais condições geográficas que lhe facilitariam o desenvolvimento futuro. Centro convergente de caminhos indígenas, vindos de diferentes zonas, foram eles aproveitados pelo bandeirante ousado que demandou o mundo de aquém dos Andes, até então desconhecido.

Serviram ainda tais veredas de roteiro à transposição de insondáveis obstáculos que as serranias, que circundam São Paulo, ofereceram à instalação das paralelas de aço na sua missão de levar o progresso a imensas regiões do hinterland brasileiro.

***

Fracassara o ataque ao Colégio. Após dias sucessivos de assédio e gritaria, retornaram os índios às suas bases.

Aos dias que vieram após a vitória, sucederam-se medidas de segurança tomadas pelo provincial Padre Manoel da Nóbrega. Desses momentos de apreensões e angústias vem o anel de postos avançados que em torno se formou, constante dos aldeamentos dirigidos pelos padres, de São Miguel, Itaquaquecetuba, Guarulhos, Emboaçava, Carapicuíba, Itapecerica e Ibirapuera - Santo Amaro de hoje.

Eram esses pontos passagem forçada dos peabirus que, de diferentes regiões, demandavam os rios piscosos de Piratininga.

O índio que, isolado ou em bando, tentasse a travessia, seria visto e denunciada a sua presença ao Colégio. Não haveria mais surpresas.

A confiança voltou à população e o trabalho readquiriu o seu ritmo normal.

Um homem, no entanto, continuava intranqüilo: o provincial dos jesuítas.

Era o Padre Manoel da Nóbrega dotado de extraordinária visão política.

As oportunas e sábias sugestões levadas ao Rei - através de suas cartas famosas hoje conhecidas, o documentário da época que nos dá conta dos seus atos em prol da consolidação administrativa do País que surgia do nada - testemunham e justificam o alto conceito em que ora é visto esse vulto notável do Brasil quinhentista.

Sabia ele e com fundadas razões que o índio insistiria no ataque. Refeito do malogro sofrido, reaparelhado nos seus petrechos de guerra - ele voltaria, para a desforra. E o faria sucessivamente, até que levasse o desânimo ao bloco civilizado.

Era da natureza do índio. Sobre isso não mantinha ilusões o Padre Manoel da Nóbrega. Que fazer, no entanto? Noites intermináveis de ansiedade e insônia povoavam de trágicas visões a mente febricitante do genial jesuíta, responsável, perante Deus e perante o Rei, pela sorte do magno empreendimento. De repente, fantástica resolução faiscou-lhe o cérebro. Pensou sobre ela a noite inteira. Pesou-lhe os prós e os contras. Amadurecida a idéia, aos primeiros clarões da madrugada, despertou o irmão José de Anchieta, seu secretário (Anchieta, a esse tempo, ainda não era padre).

Aprovado pelo discípulo o plano do mestre, puseram-se os dois a caminho de São Vicente. Ouviu-lhes José Adorno o projeto fabuloso e nele se integrou resolutamente. Era José Adorno genovês de origem e com os irmãos armador em São Vicente.

Tem sido a história parcimoniosa em louvores à ação benemérita desse extraordinário vulto do Brasil dos primeiros tempos, empenhando que esteve sempre na luta em prol da preservação da unidade da pátria em formação.

Numa de suas frágeis embarcações, por ele próprio guiada, conduziu José Adorno os dois padres a Iperoig. Nenhum cronista refere a existência a bordo de roupas e outros objetos.

Pequeno surrão, contendo modestos paramentos e símbolos litúrgicos, constituiria talvez toda a bagagem da fantástica viagem dos dois estóicos padres.

Iam silenciosos, olhar fixo no vácuo, à procura do desconhecido que os fascinava; corações esperançosos, pensamento no alto, esperando a graça de uma inspiração.

Nem bem se aperceberam, e chegavam ao destino. Mal pisaram a areia, se viram cercados. Homens e mulheres, perplexos, examinavam aquelas estranhas figuras humanas que uma canoa deixara na praia, navegando a seguir em busca do mar alto.

Acompanhados pela turba aos chefes tamoios, disseram, rezando, dos intentos que os moveram vindo à presença deles. Reações diversas ocorreram então. Havia os que pretendiam logo imolá-los. Venceu a opinião de outros desejosos de ouvi-los. Entre estes encontravam-se Pindobuçu e Cunhambebe, chefes que conseguiram acalmar os amigos mais exaltados.

Vencidas estas primeiras e sérias dificuldades, iniciaram-se as conversações. Diária e interminavelmente repetiam-se as mesmas coisas.

Queixavam-se os índios dos portugueses que os maltratavam. Procuravam os padres refutar-lhes as acusações, aduzindo argumentos com os quais tentavam convencê-los de que deveriam cancelar a aliança feita com os franceses, voltando à amizade com o lusitano. Este o tema constante.

Variantes ocorriam, levantadas pelos padres, consistentes em debates sobre religião, mais sensível à mentalidade do índio, e assuntos de interesses da comunidade luso-brasileira.

Era o Padre Manoel da Nóbrega indiscutivelmente um gênio político, porém gago: expressava-se mal. Ao passo que Anchieta, artista - músico e poeta -, fazia-se compreender com facilidade na língua geral. Os índios gostavam de ouvi-lo. Assim, recebia Anchieta, de Nóbrega, os temas em discussão, transmitindo-os ao índio em modulações poéticas e musicais. Daí o encanto com que era ouvido. Havia, ademais, afinidades que aproximavam o índio de Anchieta.

É Gonçalves Dias quem o afirma. Quando o poeta maranhense resolveu dar forma ao indianismo brasileiro que criou, escolheu a raça tupi como capaz de fornecer ao cenário que iria pintar os heróis do drama imaginado. Para tanto, confrontou os elementos conhecidos. Das leituras a que se entregara com afinco e dos conhecimentos pessoais que tinha sobre os diferentes tipos raciais do índio brasileiro: o do Norte, o do Sul, o do Centro. Não havia que vacilar. O tupi era o indicado. Seduziu-lhe a nobreza do guerreiro nos prélios sangrentos a que se entregava. Fascinaram-no os códigos de honra que orientavam o complexo do viver da grande nação tamoia, cujos filhos nasciam, cresciam e morriam tendo a guerra como lema e meta a atingir.

Admirou-lhe igualmente Gonçalves Dias os dons artísticos, aduzindo em arroubos românticos: "Entre os tupis era tudo música e poesia: as festas, o amor e a religião, a linguagem e a vida, tudo era poesia" (Brasil-Oceânia, página 237).

E continua: "Eram prezados por bons cantores e as mulheres mesmo sabiam improvisar e as águas da Carioca passavam por ter o condão de maviosidade ao canto dos tamoios. Enquanto os tapuios arrancavam sons duros da garganta, semelhantes ao regougar dos guaribas, ásperos como o roçar dos leques pelos troncos escabrosos da palmeira - os tupis bebiam na solidão do mar e à entrada das florestas os sons mais doces da natureza. Na sua linguagem harmoniosa e quase toda labial, travada e intercalada de vogais, imitavam o ciciar da brisa a correr sobre as ondas espelhadas do oceano a agitar levemente a igara, derivando à tona d'água e a enredar-se pelas folhas dos bosques que aromatizavam o litoral. Valiam-se de comparações para exprimir o pensamento e dos gestos para os rematar. Falavam cantando por que a poesia e a música andavam intimamente ligadas na sua linguagem onomatopaica: o cair da fruta, o estalar dos ramos, o correr das fontes, o peneirar da chuva, eram sons imitados da natureza; e elevando-se das regiões mais altas - no trovão, no raio, no relâmpago - ouviam a voz, viam o olhar, sentiam os efeitos da ira de Tupã; expressões felizes que admiramos, imitadas do hebraico em um poeta alemão cantando a grandeza de Deus. Para os homens, escolhiam nomes que exprimiam a força, a robustez e a coragem: era a anta, o tigre, o ipê, a palmeira, a flecha e o arco; para as mulheres, os objetos mais brandos, mais doces, mais delicados - das aves, dos frutos e das flores, era o romper d'alva, o cipó flexível, a junca do brejo, e com o sentimento do belo que não era muito esperar neles tomando o nome da flor do manacá; designavam com ela a mais bela moça da tribo".

Aí o complexo perfil da gente que Nóbrega e Anchieta enfrentaram nas praias de Iperoig, traçado pela incontestável autoridade de Gonçalves Dias.

Homens destemerosos, altaneiros, indomáveis na guerra, mas sensíveis ao trato ameno que lhes dispensaram os padres. E compreensivos também.

Tanto assim que, após longos meses de repetidas discussões, concordaram com as razões defendidas pelos embaixadores da Paz. Romperiam a aliança com os franceses. Não seria prudente no entanto que se retirassem, juntos, de uma só vez, os dois abnegados servidores da unidade do Brasil. Era do conhecimento deles a freqüente presença em Iperoig de elementos fiéis aos franceses, vindos da Guanabara com o objetivo de influir nas decisões a serem adotadas entre os chefes tamoios e os padres.

Mister se fazia prevenir.

Em conseqüência dessas reflexões de Nóbrega, mais uma providência heróica se impunha. Nóbrega iria a São Vicente levar a boa nova. E até que as autoridades competentes resolvessem sobre pormenores, Anchieta continuaria em Iperoig. penhor de segurança na manutenção de combinações verbais levadas a efeito com homens de resoluções instáveis quanto os índios. A experiência adquirida em meses consecutivos de dolorosas alternativas e de altos e baixos nas soluções dos temas ventilados, aconselhava prudência. E o Padre Manoel da Nóbrega era um homem previdente.

Se, até o momento da separação, a fantástica aventura desses dois homens predestinados assumia proporções do inacreditável, havia ao menos, para amenizar-lhes as agruras do viver cotidiano, o conforto da convivência amiga, a troca de pensamentos em torno do ideal que os unia, o precioso auxílio mútuo nas horas de desalento, que incertezas eventuais inevitavelmente traziam.

Agora não. Anchieta passou apenas a contar com o embevecimento espiritual que lhe despertava a natureza exuberante que o cercava, convidando-o, com maior intensidade, à meditação e ao misticismo. No enleio em que todo se envolvia, não contava o missionário com o recrudescimento do pecado que desde o começo o perseguia. Grupos de tentadoras cunhãs surgiam em cada lugar onde se achava. Defendendo-se, empregava ele todos os recursos ao alcance da ocasião.

Eis que, em dado momento, a inspiração lhe veio, impetuosa e ardente. E os versos magnificentes do Poema da Virgem brotaram-lhe do coração lacerado, cantantes e formosos. Escrevia-os na areia movediça da praia e antes que o vento os apagasse gravava-os indelevelmente na memória! A posteridade recolheu esse tesouro da graça divina, transformado em bênçãos sobre a nacionalidade que nascia. Milagre quase inconcebível que se operou em virtude do esforço dessas duas almas gêmeas no ideal e no sacrifício. A história os consagrou unidos. Capistrano de Abreu costumava dizer que "quanto mais estudava Anchieta mais admirava Nóbrega". E Antônio de Alcântara Machado, em seu livro Anchieta na Capitania de São Vicente, escreveu: "Tentar isolar Anchieta de Nóbrega é diminuí-lo na perspectiva da história". São ambos de estatura imensurável nos benefícios que prestaram ao Brasil.

Na arrancada final contra o intruso, contou Estácio de Sá com a colaboração de São Paulo. Uma expedição de 300 homens, organizada em São Vicente e transportada nos barcos de José Adorno, foi de efeito decisivo na expulsão do invasor da Baía da Guanabara. Guiavam-na os inseparáveis paladinos da boa causa: Padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta. E nela integrados, filhos e netos de João Ramalho.

Era São Paulo que se iniciava no seu destino histórico: servir o Brasil.

***

Traduzindo a Paz de Iperoig o primeiro acordo diplomático concluído em terras da América, significa ainda o marco inicial da generosa política do Brasil: resolver pendências externas através de tratados, na mesa das conferências.

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