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DIA DE ANCHIETA
Anchieta em Iperoig (2)

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Anchieta em Iperoig

Padre Fernando Pedreira de Castro S.J.

Quando o infante, nas águas batismais denominado José, veio ao mundo, em tranqüilo e ameno povoado, o de São Cristóvão da Laguna, recanto exposto a ventos marinhos reconhecidamente saudáveis, já nasceu predestinado à mais ampla e profícua operosidade nos albores de nossa Pátria. O acaso não existe. A Providência, que tudo prevê e determina, conduziu-o pela mão com o intuito de torná-lo por antonomásia o "Apóstolo do Brasil".

Se desde a primeira puerícia se dedicou jubilosamente esse menino aos estudos e à virtude, já em 1548, contando apenas 12 anos de idade, navegou com o irmão maior para Coimbra.

Lá, naquela celebérrima Universidade, tanto progrediu nas disciplinas em curso, que os condiscípulos, entusiasmados, o enalteciam, e os mestres o cumulavam de distinções.

Tudo pois lhe sorria. A carreira das armas, da diplomacia, porventura a de glorioso magistério, mais consentâneo ao seu caráter, não se patenteavam acaso perante ele?

Diverso caminho, todavia, se lhe estendia também ante os olhos; era escabroso, semeado de cardos e calhaus, barrava-lhe de vez as riquezas e triunfos que costumam os fidalgos almejar... No entanto, sim, não fora tal o caminho de Cristo, dos apóstolos, dos mártires... que lhe tornava à mente quando orava, que em momentos de séria reflexão o atraía e entusiasmava?...

***

Vejamo-lo agora terçando as armas do espírito em Piratininga, vivendo em contato incessante com as tribos de São Vicente, de Itanhaém, ou enfrentando terrível investida de tamoios e aliados contra o primitivo arraial de São Paulo, em 1562... São apagada amostra da heroicidade que nos propomos recordar.

Ao afastar-se, com efeito, o tempo, aquela cena de dois homens inermes a meter-se voluntariamente entre bárbaros e enfurecidos antropófagos, para a salvação do seu povo, da Pátria que adotaram, depara-se-nos quase sobre-humana.

Tal era, na verdade, o furor das diversas tribos dos brasilíndios, em particular dos tamoios, contra os colonos, que sobremodo preocupou a Manoel da Nóbrega em princípios de 1563. Pôs-se ele então a pregar penitência nas igrejas, nas praças e, quanto a si, tomou a inabalável resolução de apresentar-se desassombradamente entre esses índios em Iperoig, a atual Ubatuba, qual mensageiro de paz.

Mas Nóbrega precisava de um abalizado língua (N.E.: como eram chamados então os tradutores), pois não falava o tupi-guarani; necessitava além disso de um homem venerado pelos aborígines, cuja presença os atraísse e dominasse; que soubesse pela bondade santa e efusiva conquistar-lhes os corações.

Ora, esse homem ali estava, dotado de todas essas prendas, disposto a tudo, almejando também o martírio: José de Anchieta.

Determinaram "partir em dois navios bem aparelhados" - diz a carta do Padre José - aos 16 de abril de 1563... Pertenciam as embarcações a José Adorno, italiano de nação, da principal nobreza genovesa, pessoa honrada e amicíssima da Companhia de Jesus.

***

Foi cordial o acolhimento dos índios de Iperoig. "Saíram logo a receber-nos alguns deles, bem longe da terra - lê-se na extensa carta do próprio Anchieta, que desde este ponto seguiremos de mais perto - e, sabendo ao que íamos, se meteram nos navios sem temor e depois de serem de nós outros recebidos com paz e amizade, se foram dar conta do que passava a seus principais, os quais ao outro dia... vieram todos em três canoas a tratar sobre as pazes".

Receando eles, porém, que se entrassem todos nas embarcações os capturassem, pediram troca de reféns. Assim se fez, "levando - diz-nos o Irmão José - a dois dos nossos, indo um a um lugar e outro a outro, onde dormiram uma noite e praticaram largamente até ficarem satisfeitos, sem suspeita de nenhuma mentira, sabendo que iam os padres, dos quais têm notícia que não tratam senão de ensinar a palavra de Deus, parecendo-lhes que tinham boa prenda em nós outros se ficássemos em suas terras... E, desejando eles que saíssemos à terra, para ver seus lugares, para se acabarem de assegurar, saímos, e com nós outros oito ou nove dos portugueses, ficando muitos dos inimigos nos navios, já não como reféns, mas de sua própria vontade, como em casa de amigos.

"Chegados à praia, pusemo-nos de joelhos, dando graças a Nosso Senhor e desejando abrir-se já alguma porta por onde entrasse sua graça a esta nação que tanto tempo está apartada dela".

Visitaram logo as duas tabas mais próximas do mar, indo Anchieta explicando alto pelas casas, conforme costume daquela gente, os motivos da sua vinda... E acrescentava a intenção de lá permanecerem, a fim de ensinar-lhes "as coisas de Deus, para que lhes desse abundância de mantimentos, saúde e vitória de seus inimigos, porque esta geração, sem este escalão, não querem subir ao céu, e a principal razão que os moveu a quererem a paz não foi o medo que tivessem dos cristãos, aos quais sempre levaram de vencida, fazendo-lhes muitos danos..."

No entanto, sem que alguém o exigisse ou insinuasse, meteram-se em uma canoa 12 mancebos, a modo de reféns, e seguiram para São Vicente, sendo lá recebidos com particular amizade e conforto.

Nesse dia abrigaram-se os padres na cabana de um dos principais que fora cruelmente maltratado por certos colonos, mas que convertera agora o ódio em amor pelos missionários.

Ser-nos-ia impossível, neste resumo, acompanhar passo a passo a relação anchietana; assinalemos, pois, só alguns dos eventos mais conducentes a aquilatarmos aquele magnânimo e prolongado empreendimento, decorrido entre esperanças e sobressaltos.

De ordinário tratavam os índios aos ilustres hóspedes do melhor modo que sua pobreza lho permitia. Pretendiam até entregar-lhes mulheres e filhas, de acordo com seus bárbaros costumes... E pasmaram incrivelmente, quando os padres as recusaram, explicando que se não casavam para se dedicarem de todo a Deus e ao próximo... Tal fato aumentou sobremaneira o acatamento e confiança dos selvagens.

Desejando, porém, cada principal hospedá-los, juntava-se o incômodo da freqüente mudança de domicílio aos demais sofrimentos, máxime o de viverem de contínuo entre gente rude, de hábitos escandalosos e pagãos.

Começaram eles muito em breve a reunir meninos e meninas para o catecismo, acorrendo com as crianças também homens e mulheres. Falavam de Cristo, de sua Mãe, que os índios, é claro, totalmente desconheciam. O maior preceito que se lhes impunham era abster-se de comer carne humana.

No primeiro domingo, aos 9 de maio, ergueram altar num bosque próximo, e lá disseram a primeira missa; a 14 do mesmo mês já celebraram na cabana que o tal cacique lhes reservara.

***

Ao propalar-se, todavia, na Guanabara, a notícia das tentativas de pazes em Iperoig, recusaram-se peremptoriamente os franceses e tamoios a confirmá-las. Já haviam mesmo estes índios aprestado acima de 200 canoas de guerra, sendo algumas delas de 20, até de 30 remadores.

A pouco e pouco vinham penetrando na enseada de Ubatuba diversos grupos de tais combatentes, desconfiados, atrevidos, a fim de apurar o que lá se tramava. "Assim que nós outros - observa Anchieta - cada dia esperávamos por alguns destes..." Pavorosa, em verdade, era a situação dos religiosos!

Passamos em branco o encontro do sanguinário Aimbiré com os missionários, o de cinco ou seis outros jovens caciques, também vindos do Rio de Janeiro, que lhes teriam por vezes infligido a morte sem a presença do valente Adorno e sobretudo do grande morubixaba Pindobuçu. Voltara o capitão inesperadamente de malograda viagem à Guanabara; quanto a este índio, cobrara íntimo respeito a Nóbrega e muito em especial a Anchieta.

Ao retirar-se, levou Adorno uma carta dos padres para os maiorais de São Vicente, suplicando-lhes que de nenhum modo entregassem a Aimbiré, ou a seus amigos, os índios lá refugiados, que eles exigiam com o fim de matá-los, comê-los em terreiro, e isso, acrescentavam, não obstante o perigo que assim incorriam os próprios missionários.

Quanto ao navio, aportou com tão bons ventos em Bertioga que, quando bandos de tamoios inconformados com qualquer idéia de reconciliação, e ávidos de morticínios, para lá navegaram em suas velozes canoas, encontraram "o capitão da terra... esperando com muita gente, e lhes tinham mandado ao caminho alguns dos que cá estavam em reféns, com cuja palavra aquele principal (Aimbiré) vinha já manso, e entrou em estas vilas pregando que muito folgava com as pazes...".

***

Padre Manuel da Nóbrega, por Franciscus Franco (1938)
Imagem: História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, 1997, S.Paulo/SP

Durante as duas semanas de concórdia e promessas de amizade em São Vicente, Anchieta e Nóbrega angustiavam-se em Ubatuba, prevendo incursões dos tamoios do Rio e dos que haviam ido com feroz propósito a Bertioga, e por lá ficavam...

Ora, se estes últimos na realidade se aquietaram, não se deu o mesmo com os outros. Aos 9 de junho, estando os dois religiosos "no fim da praia", apareceu-lhes uma piroga vinda do Rio de Janeiro, que anunciava gravíssima e patente agressão.

Com efeito, foi "o maior, ao menos dos maiores perigos que o Padre Manoel da Nóbrega teve em sua vida", garante-nos a carta. Iam, então, os nossos devotados reféns atravessar, não pode haver dúvida, algumas das mais pavorosas e tétricas horas de toda a sua estadia em Iperoig.

Ante a morte iminente que se aproximava nas garras daqueles tigres, resolveram eles, quais mansos cordeiros, abrigar-se à sombra de Pindobuçu. Todavia, a aldeia do amável morubixaba ficava distante, além de larga ribeira e no cimo de elevada colina. Demais, para maior aflição, a saúde dos magnânimos embaixadores, que nunca fora robusta, achava-se agora combalida pelas incessantes comoções e carência de apropriado alimento; Nóbrega, idoso, debilitado por vários achaques, tendo as pernas chagadas, mal conseguia caminhar...

Puseram-se, apesar de tudo isso, a correr, porque a piroga inimiga já tocava a areia... "de maneira que - insiste Anchieta, falando de Nóbrega - o tomei às costas e o passei, mas em o meio do rio vínhamos já todos molhados, e como minhas costas ainda cansem e doem como soíam, e tem mui poucas forças, não o pude bem passar e foi forçado o padre a lançar-se na água, e assim passou todo ensopado, de maneira que escassamente tivemos tempo para nos poder meter pelo monte e encobrir-nos com as árvores..."

Terrivelmente dolorosa foi a subida pela encosta, por entre a mata. Ia Nóbrega, apoiado embora em seu bastão, escorregando, caindo, e nunca chegaria aonde morava o amigo morubixaba sem o auxílio de um índio, que, a pedido insistente de Anchieta, e boa paga, transportou o avelhantado sacerdote, ora às costas, ora arrastando-o pela extremidade do bordão.

Mas, para total desamparo humano, constataram que desgraçadamente estava ausente Pindobuçu.

Na piroga viera um filho deste respeitável ancião, chamado Paranapuçu, mancebo ferocíssimo, famigerado na maldade, chefe de outros 30 jovens de sua laia e dono de sete ou oito pirogas de combate.

Estando tal mancebo já aprestado a avançar contra os portugueses, soube de quanto se passava em Iperoig. Inflamado logo de dementada raiva, saltou numa das canoas, decidido a cortar de golpe qualquer tratado de paz, trucidando-lhe os embaixadores.

Assim disposto, entrou aquele homem-fera pela cabana paterna, deparando lá os forasteiros; ouviu porém do tio, irmão de Pindobuçu, tantos elogios aos missionários, que pareceu aplacar-se... Dentro em pouco, entretanto, sentindo renascer-lhe o ódio, tornou ao furioso desígnio, à ânsia de matar.

Seria pela tarde, rezavam fervorosamente os padres na choupana, implorando o auxílio divino, quando de novo lhes atravessa a porta o jovem tamoio com seus bárbaros sequazes, levando na mão luzida espada, e assenta-se ao lado dos reféns.

Ali, contra toda a expectativa, começa a falar de assuntos vários, mas reiterando a cada instante suspeitosas perguntas sobre as intenções dos embaixadores...

Então, inesperadamente, despediu-se com estas palavras que Anchieta nos deixou exaradas e que nós de bom grado transcrevemos à letra:

"Eu vinha a fazer isto e aquilo, mas quando entrei a ver os padres e lhes falei, caiu-me o coração e fiquei todo mudo e fraco, e pois eu não os matei, que vinha furioso, já ninguém os há de matar, ainda que todos os que vierem hão de vir com o mesmo propósito e vontade!"

Em arriscados passos como este, via José de Anchieta, com evidente acerto, a intervenção divina... Não teria sido tal episódio o perigo supremo de toda a embaixada em Iperoig?

***

Deu-se, a seguir, um momentoso evento que, embora de diverso gênero, deixaria o mais moço dos reféns sem o arrimo espiritual e o conforto moral do companheiro.

Aos 20 de junho - diz-nos sempre o Irmão José - "mandou-nos o capitão um bergantim, para que nos viéssemos (a São Vicente)". Prossegue anunciando que naquela vila julgavam as pazes já bem asseguradas, ao passo que os mesmos embaixadores não as tinham de modo algum por certas. Decidiram então, para manter a confiança dos tamoios, que Anchieta continuasse entre eles, como refém, e Nóbrega partisse na embarcação.

Era sem dúvida o mais prudente, porque a influência de Manoel da Nóbrega impediria qualquer passo incauto das autoridades vicentinas e insistiria em que se tratassem com tais mostras de amizade os tamoios lá em visita, que os dispusessem a total concórdia.

Todavia, ao retirar-se, em 21 de junho, confrangia-se-lhe o coração por deixar naquela aldeia indígena, circundado dos perigos mortais atrás narrados, o companheiro, só, sem amparo seguro; e este sentia sumamente a ausência do grande amigo e superior.

Consolava-se, então, o solitário refém de Iperoig pensando no martírio e, assegura em sua carta, que a companhia de Antônio Dias, pedreiro, que para lá se havia transportado com os padres no navio de José Adorno, constituía agora o seu único apoio humano. Dele fala Anchieta na mesma carta:

"Em minha companhia se ficou um homem muito nosso devoto e amigo de Deus, cuja mulher, filhos e escravos e uma cunhada lhe haviam levado, havia quase um ano..."

Arrebataram-nos os tamoios, e Antônio Dias acompanhara os missionários para tratar de resgatá-los... O Irmão José, ainda relativamente jovem, comprazia-se com esse arrimo, e apresentava o pedreiro aos índios como construtor de igrejas, a fim de livrá-lo de ser comido... Outros brancos, segundo consta, também lá permaneceram por algum tempo.

Já a 25 de junho teve o missionário de presenciar, sem meios de impedi-la, selvagem orgia com matança de um prisioneiro e de um escravo do dito Antônio Dias. Repetiram-se a seguir tais atos de antropofagia, embora, segundo parece, mais afastados do jesuíta; e os tamoios do Rio de Janeiro continuavam a desembarcar em Iperoig, para matá-lo e assim reavivar o ódio das próprias tribos contra os portugueses... É que, não havendo um chefe de todos os tamoios, alguns chefetes aceitavam e outros recusavam as pazes.

***

Entrementes, diversos morubixabas, muitos índios, homens, mulheres e crianças afeiçoavam-se a Anchieta, e sobre todos o velho Pindobuçu, que o venerava, atribuía-lhe dons sobrenaturais, conversas íntimas com Tupã, conhecimento do futuro e do que se passava a muitas léguas; chamava-o "meu filho José", garantia-lhe que ninguém lhe faria mal, provia em geral a que nada lhe faltasse de quanto havia em sua taba, e pedia-lhe com freqüência que, em troca, alcançasse de Tupã, para ele, abundante caça e longa vida. Por seu turno, mostrava-se-lhe o missionário sinceramente agradecido.

E, levado pelo zelo, pelo que julgava o maior bem dos índios, nunca deixou de reunir crianças para o catecismo, acolhendo também benignamente os adultos, que em bom número acorriam a palestras doutrinais.

***

Foi por estas semanas que, ao permanecer ali desamparado, vezes sem conta exposto à morte, e por entre constantes torpezas, resolveu o religioso entregar-se ainda mais à santidade, preparando-se eficazmente para quando Deus o chamasse e, com particular voto, comprometeu-se a compor um poema sobre a Virgem Santíssima, que tinha por Mãe... Disso não nos fala em sua carta, mas por outras vias é tal fato garantido.

Vemo-lo, então, na descrição de seus biógrafos (entre os quais Simão de Vasconcelos, Crônica, Ano 1563, nº 22, segs.), apoiados em testemunhas de vista, tomar de uma taquara e pôr-se a passear pela praia onde a areia era mais lisa. Contemplava dali o céu, o oceano, meditava seus primorosos versos, escrevendo-os com a vara naquela superfície plana e úmida... Depois decorava-os, e sua privilegiada memória reteve-os, de modo a poder mais tarde exará-los em papel e legá-los à posteridade.

A matéria do poema podemo-la hoje ler com encanto, em nova e formosa edição devida ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, obra crítica e aprimorada, com magnífica tradução em vernáculo dos seus 5.765 versos. Contém ela toda a vida da Mãe de Jesus.

Há porém um pormenor suave e poético na feitura daqueles dísticos, a princípio confiados à brandura da areia:

"Foi depoimento comum dos índios - assegura-nos Simão de Vasconcelos na Crônica há pouco citada - que viram por vezes nesta praia uma avezinha graciosamente pintada, que com brando vôo andava como fazendo festa, enquanto José ia compondo e escrevendo, e lhe saltava, brincando, ora nos ombros, ora nas mãos, ora na cabeça, ou para mostrar a José o cuidado que o céu tinha dele, ou para mostrar aos índios o com que haviam de respeitá-lo. Isso que os índios afirmaram, depôs também que vira um homem português..."

Mas eram horas de poesia em dias tormentosos.

Com efeito, por entre os riscos incessantes para Anchieta no seu desterro, muito são de notar os boatos caluniosos que já para o fim dele se proclamavam: - Um tamoio que teria sido morto em São Vicente, bandos de outros que para lá haviam ido confiadamente, mas que voltavam fugindo...

O santo refém contradizia brandamente os tais rumores, profetizava, e estes embustes em breve se desfaziam com a presença dos que tornavam das vilas portuguesas.

Aliás, o Padre Nóbrega, ao qual também chegaram os falsos dizeres de Iperoig, afligia-se por haver lá deixado Anchieta, e redobrava esforços pelas pazes: desfez dúvidas, reuniu na igreja índios entre si contrários, onde se congraçaram, o mesmo conseguindo os padres de Piratininga; de maneira que tais guerreiros, congregados, afugentaram com muitas flechas um avultado bando de refratários à concórdia, já às portas de São Vicente...

Em Iperoig, ainda que enfrentando infindáveis perigos de vida, e o mais das vezes muita fome causada por descuido de seus hospedeiros, comumente embriagados, conseguia o ínclito Apóstolo do Brasil multiplicar amigos pelo seu trato amável, sempre igual, pela fama de poder sobrenatural, muito em especial pela habilidade em curar doentes, em lancetar apostemas, em desfazer inchaços, mas sobretudo pela constante dedicação aos infelizes que, por incuráveis, seus mesmos parentes abandonavam aos sofrimentos e a lenta morte.

***

Cunhambebe, que só voltava a sua aldeia em 14 de agosto, tendo ficado mês e meio com os vicentinos, dissipou em boa parte a desconfiança ainda reinante em Iperoig. Além disso, prometeu a Anchieta reconduzi-lo dentro em pouco a São Vicente, conforme assegurara ao Padre Nóbrega.

Procrastinava, todavia, por este ou aquele motivo, o cumprimento da promessa. O missionário, considerando que, afinal, estavam as pazes concluídas quanto era possível à volubilidade de gente sem lei nem rei, apressava a viagem.

Agora, porém, surgiam empecilhos de diverso gênero, máxime entre as mulheres que, de mais a mais, o veneravam e se consumiam de saudades. Uma das companheiras de Pindobuçu, já idosa, que cobrara pelo Irmão José maternal afeto, e de certo queria vê-lo, amargurava-se, por outro lado, com a sua próxima ausência; algumas, entretanto, falavam em retê-lo, lembrando que ele era o garante da salvação de seus maridos ainda entre os brancos...

Antônio Dias, único seguro amparo que ficara ao religioso desterrado, pouco antes se afastara, deixando-o em completa solidão.

Mas, um dia, enfim, já a 14 de setembro, embarcou José de Anchieta na canoa de Cunhambebe, seu particular amigo. Eram 20 os navegantes.

Foi a travessia dificultada por rija tempestade, sobretudo ao aproximar-se da fortaleza, quando Cunhambebe se pôs, ora a animar o missionário, ora a rezar alto: "Padre Deus, ó Senhor Deus, amanse o mar!"

Salvaram-se quase a nado, atingindo a terra a meia légua de Bertioga, distância que Anchieta percorreu a pé, extremamente enfraquecido e a tremer de frio, só entrando nesse arraial a 21 do mesmo mês, portanto com longos dias de lutas e dissabores.

Se na verdade tal viagem demonstrava, patentemente, ao ex-refém a sua vitória, pagava-a ele, até ao termo, com gravíssimos riscos e padecimentos.

"De mais perigosa embaixada nunca ninguém se encarregou" - garante-nos um protestante, falecido em 1843 (Roberto Shoutey, Hist. do Brasil, I, pg. 145, ed. da Editora Progresso, Bahia).

***

Anchieta escreve o poema à Virgem nas areias de Iperoig
(de Cândido Portinari, óleo sobre madeira, 0,56 x 0,46, acervo do Banco Itaú)
Imagem: Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Ed.Nova Cultural Ltda., S.Paulo/SP, 1998, vol. 2

Em Bertioga, muito mais em São Vicente, receberam triunfalmente, como a genuíno herói, aquele que muitos julgavam morto, já devorado por feras humanas, e agradeceram-lhe de coração as pazes.

Foram estas reais quanto o poderiam ser entre gente bárbara. Houve pelo menos temporário mas eficaz apaziguamento, evitaram-se freqüentes ataques às povoações portuguesas, o aprisionamento, o cativeiro, o assassinato de homens, mulheres e crianças...

E com isso conseguiu-se abalar a soberbia dos franceses e tamoios da Guanabara, enquanto se aguardava maior socorro do governador Mem de Sá.

São de fato incalculáveis as felizes conseqüências para a unidade do Brasil, em território, língua e religião, propiciadas pelo episódio de Iperoig.

"É mais do que provável - escreve Roberto Shoutey, na obra atrás citada, pg. 246) - que fosse esta embaixada a salvação das colônias portuguesas".

Ora, os mais conspícuos pesquisadores de nossas crônicas, de novo o frisamos, quando a fundo se ocuparam de tal embaixada, de modo algum discordam do simpático historiador inglês.

***

Bem hajam, pois, os que, amando o passado, o presente, e confiando no futuro de nossa Pátria, se vêm dedicando a comemorar condignamente a magnânima empresa de Anchieta e Nóbrega, os seus ingentes labores na formação cristã do povo brasileiro, na fundação de São Paulo, do Rio de Janeiro...

Bem haja o Irmão José, esse primeiro Mestre e suave Amigo de Piratininga, esse vidente santo que profetizou a hodierna e a porvindoura grandeza da Metrópole Paulistana.

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