Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/calixtoch22.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/23/10 22:15:47
Clique na imagem para ir à página-índice de Benedito Calixto
BENEDITO CALIXTO
Calixto e as Capitanias Paulistas - 22


Clique na imagem para ir ao índice da obraAlém de refinado pintor, responsável por importantes telas que compõem a memória iconográfica da Baixada Santista, Benedicto Calixto foi também historiador e produziu várias obras no gênero, como esta, Capitanias Paulistas, impressa em 1927 (segunda edição, revista e melhorada, pouco após o seu falecimento) na capital paulista por Casa Duprat e Casa Mayença (reunidas).

O exemplar, com 310 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 267 a 275):

Leva para a página anterior

Capitanias Paulistas

Benedito Calixto

Leva para a página seguinte da série

Imagem: cabeçalho de página da obra (página 267)

CAPÍTULO XVIII

O índio e o pau-brasil constituíam então "a única riqueza do país". - A lenda do "El-Dorado" se evidencia afinal. - As minas auríferas nas duas donatarias. - Dados estatísticos que mostram a "produção das jazidas auríferas". - "A cultura agrícola e a opulência do Brasil por suas drogas e minas". - O que escreve o historiador Antonil, em 1711, sobre este assunto. - As jazidas auríferas da donataria de Martim Afonso. - Antonio Pinto Coelho de Sotto Maior, capitão-mor da Vila de Cocai e o sábio naturalista Von Martius. - Os escravos africanos e o "labor infernal das Minas". - Os descendentes do último governador da Capitania de Itanhaém.

ogo após a volta de Pero Lopes e Martim Afonso ao reino, já todos os povoadores da Capitania de São Vicente e Santo Amaro estavam convencidos que a única riqueza da colônia era "o índio e o pau-brasil".

Reclamavam os povoadores ao rei e aos respectivos donatários, sucessores destes dois irmãos na segunda metade do século dezesseis, que não lhes tolhessem a faculdade do resgate com os silvícolas e a liberdade das entradas; pois se isto lhes fosse vedado, prometiam abandonar a terra, visto não poderem sustentar suas lavouras sem a "escravaria".

A cultura agrícola e a indústria - os engenhos de açúcar -, bem como os gêneros do país, o milho, o algodão, o fumo e mais especiarias, eram ainda por demais incipientes. A pecuária estava apenas iniciada no Engenho de São Jorge (S. Vicente), em Itanhaém e Piratininga.

A extração do pau-brasil era então a única indústria, o único comércio que a colônia mantinha com a metrópole, conforme se depreende dos antigos documentos e, principalmente, do inventário de Mem de Sá. Este governador, de parceria com o fidalgo d. Antonio de Mariz, organizou uma sociedade ou empresa no Rio de Janeiro, cujo principal produto de exportação consistia no lenho rubro ou pau de tintura.

A extração deste produto, porém, na Capitania de São Vicente, estava circunscrita à zona de Cabo Frio e Macaé, pois que daí para o Sul o lenho rubro se ia tornando escasso.

Para manter a cultura da cana-de-açúcar e outros cereais, bem como para procura e extração do pau-brasil, era necessário o concurso do braço escravo. O índio, porém, de 1550 em diante, já se mostrava esquivo e desconfiado e... revoltava-se contra os invasores de suas terras.

De volta dos mares da Ásia, em sua primeira viagem, o primeiro donatário reconhecia que sua colônia vicentina pouco havia prosperado, o que, certamente, o levou a desfazer-se da parte que lhe tocava, na parceria do Engenho de São Jorge, que só mais tarde, em mãos estranhas, deveria prosperar.

Quando o seu parente e amigo - o conde de Castanheira - se propunha a adquirir um latifúndio na vasta capitania de São Vicente, respondia-lhe Martim Afonso que, não só parte, mas toda a donataria lha cederia de bom grado. Isto demonstra bem desilusão no ânimo abatido do primeiro donatário de São Vicente, pelas cem léguas de costa que lhe tinham sido doadas por d. João III.

Seus herdeiros e descendentes, durante mais de meio século ainda, conforme se vê dos primeiros capítulos deste volume, pouca ou nenhuma importância ligaram às terras que constituíam o maior e o mais rico patrimônio do morgado de Alcoentre. Só despertaram "do longo letargo" depois que as minas de Cataguases - nas Gerais - vieram de novo "avivar-lhe a cobiça". - Sem ouro, sem prata, o Brasil seria intolerável...

O ouro produzido então pelas minas, nessas duas donatarias e no Brasil, conforme escreve Capistrano de Abreu, na Historia Colonial, escapa a qualquer avaliação exata.

Levando em conta uma série de dados, Calógeras calcula que Goiás e Mato Grosso, desde o começo da mineração até 1770, deram uma produção total de 9.000 arrobas, que perfaziam, ao todo, duzentos e noventa mil quilogramas.

Em Minas Gerais, avalia-se em sete mil e quinhentas arrobas, desde o início até 1725, que foi a época em que d. João V "seqüestrou para sua coroa toda a donataria de Martim Afonso" - denominada Capitania de Itanhaém.

Nos anos seguintes, só no período de 11 anos, renderam essas minas de Cataguases seis mil e quinhentas arrobas. Até 1820, a extração total em Minas deveria andar por cinqüenta e uma mil e quinhentas arrobas.

O rendimento dos dízimos, bem como o tributo que se cobrava das entradas de gêneros e toda espécie de mercadorias consumidas nas regiões auríferas da Capitania, taxas de escravos, gado vacum, muar e cavalar, passagens nos rios Sapucaí, Verde, Mortes, Grande, Paraíba, Velhas, Uruciba, Baependi etc., montavam também a centenas de arrobas de ouro.

Era, enfim, o verdadeiro El Dorado! Era o fagueiro sonho que se realizava! Eram, enfim, as minas tantas vezes rebuscadas pelos primeiros povoadores e aventureiros que, só agora - tão deslumbrantes em sua evidência - se manifestavam, devido unicamente à tenacidade e audácia dos bandeirantes paulistas!

Não era só o imenso produto das minas auríferas, que na última metade do século XVII, e no início do século seguinte, atestavam já as opulentas riquezas das capitanias do Brasil, disputando a cobiça do mundo inteiro.

No livro escrito por André João Antonil [70] e publicado em 1711, sob o título Cultura e Opulencia do Brasil por suas Drogas e Minas, lê-se um série interessante de dados estatísticos sobre os principais produtos da época. A obra de Antonil é dividida em cinco partes e trata de engenhos de açúcar, fumo, gado, minas etc.

Sem amplificações, em forma tersa e severa - diz Capistrano de Abreu - adunava ele algarismos e mostrava o Brasil tal qual se apresentava, à visão de um espírito investigador e penetrante.

Ficava-se então sabendo da existência de cento e quarenta e seis engenhos, só na Bahia, com a produção anula de catorze mil e quinhentas caixas de açúcar; de duzentos e quarenta e seis engenhos em Pernambuco, produzindo dez mil e trezentas caixas; de cento e trinta e seis engenhos no Rio de Janeiro, produzindo dez mil, duzentas e vinte. Somava tudo trinta e sete mil e vinte caixas, de trinta e cinco arrobas cada uma, apurando Rs. 2.535:142$800.

Antonil não nos dá, infelizmente, as rendas dos importantes produtos das capitanias paulistas, que deveriam ser tão ou mais importantes que as de Pernambuco e Bahia.

Em S. Paulo, desde 1587, segundo informam Anchieta, o padre Fernão Cardim, padre Balthazar Borges e Gabriel Soares, já se cultivava a terra com muito proveito. Entre os principais "gêneros do país" avultava o cultivo do trigo, da cevada, da uva, oliveira etc. Mais tarde, segundo outros cronistas, foi também notável a produção do chá e mais especiarias da Índia.

O maior e mais importante comércio das capitanias paulistas, nesta primeira época, foi a cultura da cana-de-açúcar e da marmelada, que eram exportadas em caixas. Sobre este último produto - a marmelada - a Câmara de São Paulo legislou e tomou medidas enérgicas contra os falsificadores, em conseqüência do desenvolvimento e procura do produto, nas demais capitanias e mesmo nas metrópoles. A pecuária teve também sua época e com ela se desenvolveu a indústria dos curtumes, sobretudo das célebres "peles de porco", com as quais se faziam os encostos das "cadeiras de espaldar', que ainda hoje são bem conhecidas em todo o Brasil.

A Bahia produzia vinte e cinco mil rolos de fumo, Pernambuco e Alagoas dois mil e quinhentos, rendendo anualmente Rs. 334:540$000.

Para avaliar o gado, bastava lembrar, diz o mesmo historiador, que os milhares de rolos de fumo iam encourados, para bordo dos navios. Além disso, exportava-se, da Bahia, cinqüenta mil meios de sola, e quarenta mil de Pernambuco e Rio, tudo na importância de Rs. 201:800$.

"E não são todos estes 3.743:972$800 da opulência do Brasil, que vão engrossar os réditos de Portugal, não incluindo aqui o grandioso produto das minas..."

As minas da Capitania de Itanhaém, situadas em uma parte do território de Cataguases, que tanto impulso deram à vila de Taubaté (rival da vila de São Paulo), enquanto estiveram fazendo parte da mesma donataria, passaram depois a fazer parte da Capitania de Minas Gerais.

Foi dessa data em diante que as demais vilas ribeirinhas ao Paraíba caíram em decadência, visto que o comércio das lavras passou então a ser feito pelo distrito do Rio de Janeiro, já também desmembrado da dita donataria de Martim Afonso.

As jazidas auríferas de Minas continuaram, porém, a ser exploradas, mesmo depois da descoberta das ricas minas de Cuiabá e Goiás.

Foi para essas minas de Pitangui, da antiga Capitania de Itanhaém, que se retirou desiludido, em 1721, o último governador de Itanhaém,  Antonio Caetano Pinto Coelho de Soutto Maior, quando se viu desautorado pelos camaristas de Taubaté e desprestigiado pelo capitão-general de São Paulo, Rodrigo Cezar de Menezes.

Vejamos, pois, em que estado se achavam ainda as riquíssimas lavras, em Minas Gerais, na antiga Capitania de Itanhaém, no início do século XIX, quando nelas habitava um ilustre descendente de Antonio Coelho de Soutto Maior, último governador de Itanhaém.

Ao descrever a vila de Cocais, conta-nos o sábio naturalista Von Martius um diálogo que tivera com o neto do dito governador de Itanhaém:

"Ao chegar a Cocais - refere Martius - disseram-me que o capitão-mor, Felicio Coelho Pinto de Soutto Maior, estava em sua propriedade de Cachoeirinha, para onde me dirigi, pois não é longe do Arraial [71].

"Lá cheguei às 5 e meia da tarde, mandei-lhe  carta de apresentação do capitão-general d. Manoel Portugal.

"Apareceu logo o capitão-mor e, com muitas amabilidades, me fez entrar em casa, excelente edifício de nobre aspecto, mobiliado suntuosamente.

"Declarou que estava à minha disposição e mandou que me levassem ao quarto de hóspedes, onde encontrei dois escravos destinados ao meu serviço. Era este aposento ricamente adornado de finos móveis e belos cortinados e espelhos; o leito era de baldaquim e imenso, de jacarandá maciço, sobre um estrado, munido de ricas colchas e cobertas. Mudei de roupa e vim à varanda conversar com o meu hospedeiro.

"Era o capitão-mor um homem de fidalgo aspecto, muito cortês e atencioso, alto, com a bela barba branca bem tratada, vestido com simplicidade e apuro. Chão e singelo, notei logo, por isso, que não era destes que apreciam as liberdades e familiaridades excessivas.

"Serviu-me um excelente jantar, mostrando, à mesa, os hábitos perfeitamente corretos e europeus em que se comprazia.

"Finda a nossa refeição, voltamos ao terraço; os negros da sua lavra recolhiam-se às senzalas; pareciam-me bem nutridos, mas com aquele ar de tristeza que têm os infelizes escravos dos mineradores, sujeitos os infernais labores das minas.

"- Meus negros não trabalham em furnas, mas sempre ao ar livre!... - disse-me o capitão-mor, com certo ar de orgulho.

"Perguntei-lhe se estava satisfeito com o rendimento das lavras. Disse-me que não. - A mina está morrendo, mas ainda dá alguma coisa: recolhi ao ano passado mil e seiscentas oitavas, quando, em 1808, tive onze mil oitavas e em 1806, treze mil!... O azougue está caríssimo e a minha cata está quase na piçarra.

"- Meu irmão, breve, não poderá mais minerar; já perdeu uns poucos de escravos asfixiados nas galerias. Meu genro também está tirando pouco proveito...

"Notei que, ao dizer isto, o capitão-mor ficou profundamente impressionado. - Não me faltam meios para adquirir outras jazidas, continuou ele, mas... estou velho... E, depois, tenho tido grandes desgostos, ultimamente, que me tiram a energia para um novo estabelecimento. Tenho aqui uma instalação que me custou pra cima de 200.000 cruzados. Aliás, já estou mais que habituado a estes lugares; aqui casei, aqui me nasceram os filhos, aqui perdi minha mulher...".

Os "grandes desgostos" aludidos pelo capitão-mor provinham - diz Alb. Rangel - das graves e desmoralizantes perturbações da casa de seu filho, em São Paulo [72].

Os escravos empregados então nos "labores infernais das minas" já não eram os míseros índios do país "descidos pelos capitães-do-mato", ou tirados das aldeias jesuíticas que já estavam dispersas e extintas nessa época, mas sim, os negros, trazidos das costas d'África, que, apesar de sua robustez, morriam asfixiados nas galerias e furnas, ou pereciam sob os maus tratos de seus desalmados senhores.

O ouro, arrancado assim do solo, embebido e manchado com o sangue de tantas vítimas, não trouxe e nem podia trazer o progresso e almejada felicidade dos mineradores!

A verdadeira riqueza do país e principalmente o notável surto e progresso de São Paulo, só mais tarde, pela cultura da terra sob o "braço livre", é que deveria manifestar-se, conforme já tivemos ocasião de referir em outros capítulos.


[70] Diz Capistrano que André João Antonil é o pseudônimo ou anagrama do benemérito jesuíta João Antonio Andrioni.

[71] Arraial ou vila de Cocais, em Minas.

[72] Este filho do capitão-mor de Cocais, neto do último governador de Itanhaém, era o alferes Felicio Pinto Coelho de Soutto Maior, moço fidalgo, primeiro marido de d. Domitilia, a que foi mis tarde "Marquesa de Santos". Felicio estava casado há poucos anos e, desse infeliz matrimônio, houve três filhos, antes de 1822. O alferes Felicio, surpreendendo a mulher em adultério com certo fidalgo português, célebre em São Paulo, tentou assassiná-la, em flagrante, com uma faca; proveio daí o processo de divórcio, ficando os filhos em poder de d. Domitilia, já então amasiada com o imperador d. Pedro I.

O alferes Felicio pediu remoção para Minas e foi viver em casa de seu pai, desgostoso e acabrunhado por tais ocorrências e escândalos. Eram esses desgostos que mortificavam a alma do nobre e austero fidalgo de Cocais.

Imagem: adorno da página 275 da obra