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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CANAIS - BIBLIOTECA NM
Posicionamento da Prefeitura - 18


Clique na imagem para voltar ao índice do livroA polêmica acirrada entre o idealizador do sistema de canais para Santos e os vereadores santistas, que marcou o início do século XX, levou o jornalista Alberto Sousa a escrever o livro A Municipalidade de Santos perante a Comissão de Saneamento, publicado em 1914 pelas Officinas Graphicas do Bureau Central, em Santos, em que polemiza com o engenheiro Saturnino de Brito.

O exemplar, com 257 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 121 a 164):

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A Municipalidade de Santos perante

a Comissão de Saneamento

Alberto Sousa

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PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
XVII - Marcha final:

1 - Questões pessoais

Continuando a escrever à moda turca, segundo assinalamos em passado artigo, o sr. Saturnino de Brito, em sua nova série, subordinada, aliás, à mesma ordem numérica da primitiva, publica, primeiramente, o artigo XIV e depois o artigo XIII! Restabelecendo, na sua devida posição, os termos do debate, vamos responder-lhe, de acordo com os métodos ocidentais: isto é, tomaremos em consideração o artigo anterior e depois o artigo posterior.

É verdade que, quanto ao primeiro, quase nada temos a comentar. Constitui ele, por assim dizer, uma liquidação pessoal de contas do autor com os representantes da maioria no seio da Câmara Municipal. E pergunta-lhes se eles respondem ou não pelas duras verdades que, das colunas d'A Tribuna, temos avançado, muito a contra-gosto, mas com a mais perfeita noção do sentimento da justiça.

Não falamos oficialmente em nome da Municipalidade, quando, naquele órgão, resolvemos enfrentar a sua presunção e dar combate aos seus erros, alimentados pelo seu orgulho e pelo aplauso insensato dos seus turiferários, tão incompetentes como audaciosos.

Temos, porém, a absoluta certeza de que os respeitáveis membros da maioria da Edilidade local - que s.s. mimoseou com o epíteto de delinqüentes e enxovalhou com a infame suspeita de lesarem o interesse público em proveito de seus amigos e de seus partidários - são incondicionalmente solidários conosco, e com A Tribuna, na enérgica repulsa que opusemos, com viva e sincera indignação, às suas injúrias e insinuações.

Não temos culpa de que s.s., levado pelas estimulações de sua vaidade hipertrófica, e pelas instigações jesuíticas do sr. Egydio Martins - que é o Camerlengo ocupando a sede vacante do Saneamento ortodoxo - pusesse o seu prestígio técnico, que devera sobrepairar às competições e rivalidades subalternas, a serviço dos planos partidaristas do sr. Cesario Bastos.

S.s. devera colocar-se assisadamente na sua suprema posição de papa infalível, aconselhando os pagões do sanitarismo, exortando-os a se converterem à sua fé, persuadindo-os da verdade de sua crença, pela catequese no terreno pacífico e por intermédio das armas espirituais da eloqüência, do pensamento e da lógica.

S.s., porém, quando viu que os seus conselhos e exortações não logravam o milagre teológico de converter, do dia para a noite, adversários em adeptos; quando viu que era preciso grande dispêndio de esforço cerebral, e anos sem conto, para convencer cidadãos inteligentes de que, com a venda da madeira dos bosques, plantados frondosamente em folhas de papel branco, poderia a Municipalidade custear a reforma da cidade, no valor aproximado de trinta mil contos; s.s., quando viu isso, resolveu substituir o argumento técnico e a demonstração econômica pelo emprego bruto da força material. E foi pedir ao sr. Cesario Bastos, em nome da ciência de fazer esgotos, que providenciasse para a intervenção do Governo Estadual em nosso Município, conseguindo a nomeação dos prefeitos.

Contrariando o princípio básico de sua doutrina filosófica, que é a separação completa dos dois poderes - o espiritual e o temporal - s.s. os confundiu hereticamente e, trazendo à fronte a tiara papal, e na destra empunhando a espada mariscalícia, veio conflagrar militarmente a nossa terra.

Em defesa do povo tivemos que sair ao encontro do seu entusiasmo e ferocidade mavortina; e mostrar que s.s. não era nem papa, nem general; que sua tiara papalina e o seu pesado espadagão eram grotescamente de papel pintado. S.s. não passava de mero charlatão, querendo impor-se ao crédito público, em nome de predicados pessoais e profissionais que não possui na exagerada proporção que aparenta.

Fomos forçados a aparar-lhe as asas, a reduzi-lo, de altívolo condor, topando às nuvens, em manso palmípede grasnador, catando cisco e remexendo o barral. Que resta da estátua glorificadora que s.s., auxiliado por seus obtusos acólitos, ergueu à sua própria pessoa, enaltecendo os seus méritos peregrinos e exaltando a benemerência de sua obra, eivada, aliás, de defeitos graves, sob o tríplice ponto de vista estético, financeiro e técnico? Nada, a não ser, esparsos no pó do chão, em deplorável estado, os marmóreos pedaços do monumento desfeito.

Diz o sr. Saturnino de Brito, concluindo o artigo XIII, que o público sabe dar o devido valor ao que dizem os jornais de opinião subordinada a um governo qualquer, pois, conforme s conveniências, eles apeiam do pedestal, amanhã, os que hoje cobriram de aplausos.

É justamente o que vai acontecer-lhe, ao certo, com a Cidade de Santos, que, por ser um órgão de opinião subordinada ao Governo Estadual, transcreve os seus artigos, comenta-os, aplaude-os, enquanto eles servem aos planos partidários do sr. Cesario Bastos, em relação à política de nossa terra. Logo, porém, que na obsessão de sua infalibilidade, que não admite discussão, s.s. contrariar as vistas daquele chefe, será, pelo mesmo jornal, que ora o aturde com elogios tão insensatos como pouco sinceros, atassalhado, sem piedade, nem contemplação, nos seus esforços, no seu nome, na sua capacidade e na sua moral.

2 - Reincidência nas contradições e nas tolices

No artigo XIV, ocupa-se s.s. do caso dos prefeitos eleitos e da opinião de Descroix. Tratando-se de um município paulista, s.s. explica-nos que traduziu maire por prefeito; mas esqueceu-se de que não há paridade entre o funcionário francês e o brasileiro, no exercício de suas atribuições, graças à diversidade dos regimes políticos respectivos.

Lá, sob a pura organização parlamentar, o Governo do Centro, precisando, para se manter, do apoio das Câmaras, é forçado a atender às conveniências políticas dos representantes de cada localidade, de maneira que o partidarismo envolve-se diretamente na vida municipal. O governo que não atendesse às exigências das comunas,não poderia contar com o voto dos representantes delas.

Por sua vez, os deputados, para conseguirem do governo, em favor das localidades pertencentes à circunscrição eleitoral que lhes deu o mandato, o que elas pedem, precisa que as comunas se administrem, tendo em vista as próprias conveniências governamentais.

É este balancé político que entrava, na opinião de Descroix, a prosperidade das comunas, mas, a substituição do maire nomeado pelo maire eleito não modificaria a situação. Efetivamente, a subordinação política das administrações comunais ao governo central, que ora se faz por intermédio dos representantes legislativos, passaria a se fazer diretamente pelos maires de nomeação. O governo só mandaria para as comunas funcionários adstritos à direção dos deputados, de cuja palavra e de cujo voto precisasse na Câmara. A politicagem não seria banida, antes, seria introduzida, de modo sistemático e permanente, na organização comunal.

Aqui, dá-se o contrário. Os governos, para bem desempenharem suas funções, não precisam do apoio direto dos municípios, porque não dependem do voto dos deputados. No regime da separação, cada poder se agita, com independência, dentro de sua esfera, sem se chocar com a esfera dos outros poderes em ação.

Neste regime pode-se, ao oposto do exemplo francês, libertar um município qualquer da influência do politiquismo partidarista, e Santos é o mais brilhante caso documental que conhecemos a respeito. A politicagem, o partidarismo desenfreado, com as rivalidades e os rancores que dele se derivam, tinha levado Santos ao mais completo desgoverno, à mais absoluta anarquisação de todos os serviços, à desordem, ao descrédito e à bancarrota. Um dos politiquistas que mais arruinaram a vida municipal foi exatamente o sr. Cesario Bastos.

Os homens sensatos da localidade, aqueles que não tinham ligações expressas com as diferentes agremiações em luta, impressionados com tão deprimente espetáculo, resolveram fazer um heróico esforço para libertar Santos do predomínio da politicagem, contra o qual tanto se insurge o sr. Saturnino de Brito, tardiamente.

Fundou-se o Partido Municipal, que tirou a administração de Santos das mãos dos políticos profissionais e dos partidos politiquistas e confiou-a aos nobres elementos da classe comercial e das indústrias, interessados no fomento do progresso local.

Santos realizou o ideal afagado pelo sr. Saturnino de Brito; e s.s., entretanto, quer que o governo intrometa a ação do partido político que o apóia, em um município, de cuja administração foram banidos o partidarismo e a politicagem! Sempre contraditório e incoerente com as opiniões que prega e os atos que pratica! Sempre trazendo-os à recordação o ensinamento de Augusto Comte sobre o característico da alienação mental - discordância plena entre as idéias e a conduta!

Concordemos, porém, para argumentar, que o sr. Saturnino de Brito tem toda a razão em se alarmar, com Descroix, sobre a inconveniência dos prefeitos eleitos, para o brilhante êxito de uma administração frutuosa. S.s. e o especialista francês acham que esse regime é caracterizado pela incompetência, pelo arbítrio e pela instabilidade.

Concordemos que assim seja. O sr. Saturnino completa o pensamento de Descroix e o seu próprio, dizendo, no artigo terceiro, que "cada administração política entende de fazer coisa diferente do que iniciou a sua antecessora; o que fizeram anteriormente não prestará, é preciso coisa nova". Ora, isto em relação às administrações municipais.

Mas as obras de saneamento de Santos foram executadas pela Administração estadual e cada presidente, tal qual os prefeitos municipais, é eleito por um certo período de anos. Como, pois, com o planejamento e execução de tais obras, não se deu o que o sr. Saturnino observa em relação aos governos municipais? Como é que cada administração não fez coisa diferente da que a sua antecessora tinha iniciado?

Dar-se-á caso que, somente nos municípios é que os governos, que entram para o poder, modifiquem o que fez o governo anterior: Claro que não. O segredo da continuidade administrativa do Governo de S. Paulo é este: os presidentes são sempre eleitos pelo mesmo partido e levam para o poder o programa do partido que os elegeu. Tal circunstância é que permitiu à Comissão de Saneamento executar suas grandes obras sem alterações fundamentais.

Pois bem, é exatamente isso que se dá em Santos com o governo municipal, há três períodos administrativos: os prefeitos são escolhidos sempre pelo mesmo partido, cujo programa eles executam no poder.

Assim, pois, no Município de Santos, como no Governo de S. Paulo, não há perigo de que "cada administração política entenda de fazer coisa diferente do que iniciou a sua antecessora", porquanto a administração não muda, só mudam os seus agentes. Tranqüilize-se, portanto, o sr. Saturnino de Brito a esse respeito.

Com relação à sua famosa planta, pode ficar certo de que enquanto o Partido Municipal garantir a continuidade das administrações em nossa terra, ela não será objeto de aprovação por parte dos poderes locais. Já vê, pois, s.s. que a nossa Municipalidade não se ressente da instabilidade a que se refere Descroix e cuja opinião os seus artigos endossam.

Acusa o sr. Saturnino de Brito, em seguida, o dr. Silva Telles, de ter atribuído falsamente a Camillo Sitte a seguinte opinião: "Não se deve prever ao princípio senão as artérias principais (tendo em vista, tanto quanto possível, as vias existentes). A divisão subseqüente do terreno pode ser, segundo as necessidades, empreendida, a breve prazo, pelas administrações, ou abandonada à atividade particular".

Acrescenta o malogrado sanitarista que essa não é a opinião do ilustre arquiteto, mas sim a segunda conclusão da Assembléia de Berlim, que Camillo Sitte combate, no decorrer da obra. E diz, com triunfantes ironias, que nós - ineptos que somos! - acompanhamos cegamente o diretor das Obras do Município, em seu deslize.

Em primeiro lugar, como os leitores verão do parecer do dr. Telles, que adiante publicamos, este engenheiro, ao fazer a citação, atribuiu-a, lisamente, à reunião geral da Associação dos Arquitetos e Engenheiros alemães. Em segundo lugar, em sua obra, Camillo Sitte, longe de pronunciar-se, como quer o sr. Saturnino, contra aquela conclusão, é-lhe inteiramente favorável, segundo passamos a demonstrar.

A segunda conclusão entende que:

1ª) Não se deve prever, ao princípio, senão as artérias principais (tendo em vista, tanto quanto possível, as vias existentes).

2ª) A divisão subseqüente do terreno pode ser, segundo as necessidades, empreendida, a breve prazo, pelas administrações, ou abandonada à atividade particular.

Isto posto, vejamos as opiniões de Camillo Sitte:

Da existência de um verdadeiro programa depende a boa execução do plano de uma cidade (pág. 150). Os estudos preparatórios podem ser feitos pelos cuidados da Administração ou de comissões de peritos (pág. 150).

Apenas os estudos preparatórios - veja-se bem - é que podem ser feitos pela administração pública. Tais estudos consistem, em resumo:

a) "no cálculo aproximativo do crescimento presumível da população do quarteirão projetado, durante os cinqüenta anos vindouros; na circulação das ruas e no gênero de habitações a prever. Convém, efetivamente, saber, de antemão, onde serão construídas as casas de aluguel, as vilas, os estabelecimentos destinados ao comércio e à indústria etc.".

E prossegue: "Aqueles que julgam impossível estabelecer tais previsões, com uma certeza, mesmo aproximada, procuram evitar, por meio de subterfúgios, um trabalho e uma responsabilidade consideráveis".

Este período vai mesmo a calhar para o chefe do Saneamento, que preconizou a obra, a opinião e os ensinamentos de Camillo Sitte, mas não previu nada daquilo que ele reputa indispensável: nem o cálculo da população no decurso de meio século, nem a circulação das ruas, e o gênero de casas a edificar. Mas é preciso mais: "é preciso estudar a história da cidade, e, sobre os quadros estatísticos, o desenvolvimento da indústria e do comércio; é preciso ter em conta as circunstâncias locais etc."

"Munido desses dados, o autor de um plano de extensão pode, então:"

b) "prever o número de edifícios públicos necessários ao quarteirão projetado, assim como suas dimensões e sua forma aproximativa" (página 152).

Dos próprios artigos do sr. Brito, e do exame de sua planta, vê-se que s.s. cogitou dos estudos da letra B, em relação a alguns edifícios públicos, de secundária importância, mas sem se deter nos estudos preliminares exigidos pela letra A.

Satisfeitas essas exigências, e outras, que não reproduzimos para não nos alongarmos, entende Sitte que é "chegado o momento de começar a elaboração do plano de extensão propriamente dito, o que se poderia facilmente efetuar por meio de concorrência pública" (página 152).

Completado o esboço preliminar do plano, cujos detalhes o ilustre arquiteto desenvolve, escreve ele: "O momento é, então, chegado de traçar as principais vias de comunicação, observando-se as regras precedentemente expostas. Terminada esta operação, e para obedecer às decisões da assembléia de Berlim, seria preciso deixar ao futuro ou à iniciativa privada o cuidado de concluir este trabalho". (página 155).

Pois não é isto mesmo que o dr. Telles afirma em seu Parecer? Pois Camillo Sitte, nas linhas acima, não aconselha de traçar as vias principais e entregar o resto da operação ao futuro e à iniciativa privada? Pois estes conselhos não reproduzem, fielmente, a segunda conclusão da Assembléia de Berlim?

Como tem o sr. Saturnino de Brito o topete de avançar que nós, ilustrando-nos apenas nas asseverações do dr. Telles, emprestamos a Camillo Sitte opiniões diversas das que ele sustenta em seu esplêndido volume?


Mas, não fuja da questão o sr. Saturnino de Brito. O que nós assinalamos é que s.s., depois de preconizar a obra do especialista europeu como um verdadeiro modelo da arte de construir cidades - fez o contrário do que ele recomenda, não só deixando de proceder aos estudos e pesquisas preparatórios, reputados indispensáveis, como também traçando a planta em xadrez, sistema que Camillo Sitte condena por inestético, incômodo e anti-higiênico, pois que as vias longas e retas são fastidiosas, obrigam o transeunte a descer dos passeios, a toda a hora, para atravessar as outras ruas que vêm desembocar nelas, obrigam-no a andar a passo, e com atenção extrema, por causa dos veículos que surgem das demais vias que com elas cruzam; canalizam o vento, levantando espessas nuvens de poeira etc.

Não obstante todas essas razões, fundadas na observação e na experiência, o sr. Saturnino de Brito traçou em xadrez a planta de Santos, declarando, alto e bom, a este povo de papalvos, que se tinha inspirado, guiado e orientado pelos ensinamentos de Camillo Sitte, na sua Arte de Construir as Cidades!

E formaliza-se todo porque nós dissemos, e agora repetimos, que s.s. não passa de um charlatão meio maluco. Aliás, bem assimilada a teoria positivista a que, continuamente nos apoiamos, todo o charlatão é um alienado - pois representa a mais completa contradição, que se conheça, entre a personalidade subjetiva e os atos exteriores por ela praticados. O sr. Saturnino de Brito é um alienado, porque é o charlatão mais aparatoso que se nos tem deparado de alguns anos a esta parte.

3  - A ponte pênsil e o cais suspenso

Sobre o desmoronamento da primitiva ponte pênsil de S. Vicente, erro de engenharia que nos custou, aproximadamente, uns mil contos mais do que devera, o chefe da Comissão de Saneamento passou como gato por brasas, fingindo que esse desastre monumental, que há de eternamente cobri-lo de vergonha e de ridículo, não tem maior importância do que a que lhe empresta a nossa malevolência e aguçoso espírito de demolição e de crítica.

E aproveita a ocasião para doutrinar-nos a respeito, condoído da nossa ignorância, porque estranhamos que s.s. levantasse os fundamentos da ponte sobre a areia movediça e inconsistente. E diz-nos que a Engenharia levanta fundações na areia e na vasa, sobre estacadas.

Sabemos disso, sabemos ainda que é sobre a areia que as imaginações escaldadas constroem os célebres castelos de Espanha e que até no espaço livre levantam-se, espontâneas, as torres d'água que o vento e a luz dissolvem rapidamente.

Mas não é disso que se trata; não é de fundações conscientes em leitos de areia, para tal preparados previamente. Nós o acusamos de ter erguido os fundamentos da ponte pênsil de S. Vicente na areia, pensando que os edificava no coração da rocha viva - o que é um erro essencial e palmar, que deu com a construção por terra, obrigando à mudança do local, à renovação do trabalho, à perda da execução já feita, a maior dispêndio de tempo e ao triplo das despesas orçadas.

Ou por negligência não foi feita a exploração preliminar do solo, ou, por ignorância, pensou-se que areia fofa era sólido granito. Em qualquer das hipóteses, a sua responsabilidade é imensa e é indesculpável o seu tremendo fiasco.

É dessa acusação que nós nos tornamos eco pelas colunas redatoriais d'A Tribuna; e é dela que o sr. Saturnino de Brito não se defende, porque é indefensável a ignorância de que deu tão grave demonstração em momento tão decisivo para os seus créditos.

De seguida, volta s.s. a tratar, novamente, do cais do porto, e, para safar-se da alternativa em que o colocaram os nossos irrespondíveis argumentos, procura uma escapatória na falsa interpretação de suas próprias palavras. Diz que não o compreendemos ou não quisemos compreendê-lo. Ouçamo-lo:

"O que eu disse, muito claramente, e até insistentemente, foi que a Câmara se livrou da despesa de um cais comum, porque, sendo Santos um porto de mar importante, o governo da União fez o que a cidade teria de fazer se o porto não fosse o que é, ou mesmo se fosse um bom porto mas o governo não cuidasse de o aproveitar".

Ora, vamos provar facilmente: 1º) que não foi isso que s.s. disse muito claramente, e até insistentemente; 2º que, mesmo que fosse isso o que s.s. quis dizer, seria positivamente um despropósito.

No seu ofício à Câmara Municipal, datado de 26 de abril de 1913, que reproduzimos integralmente na parte documental desta obra, s.s. escreveu o seguinte:

"A cidade de Santos, em 1905, tinha uma planta da cidade e um projeto parcial de expansão. A Municipalidade, então endividada, não se julgava capaz de executar, e não executou, nenhum dos seguintes serviços básicos, todos eles da competência municipal: ... o cais do litoral, que ficou a cargo do Governo da União, formando-se o porto de Santos".

Vê-se daí que o sr. Saturnino de Brito não falava restritamente de cais comum, um infeliz subterfúgio de que se utilizou em desespero de causa, mas do qual não logrou servir-se com a imprescindível habilidade.

Diante da resposta dos poderes municipais, que lhe fizeram compreender que a construção do cais era da iniciativa especial do governo do centro, s.s., no terceiro artigo da série, para sair-se das insuperáveis dificuldades em que se envolvera, engrossou a voz e, com um ar decidido de quem censura um empregado relapso, colhido em falta, afirma: "A Municipalidade engana-se, pensando que poderia fazer o porto de Santos, sem uma concessão do poder superior. Eu quis apenas dizer que a Câmara não cogitou de fazer um cais comum..."

Nos apuros em que se viu metido, s.s. substituiu as palavras do ofício de 1913 - cais do litoral - por estas: porto de Santos - como se umas não quisessem exprimir o mesmo que outras, segundo a intenção clara de sua censura à Câmara de 1905, "que tinha deixado o Governo da União fazer o cais do litoral, serviço básico, da competência municipal", opinião lavrada em documento oficial e público.

Pensando que escreve para analfabetos, s.s., ao substituir os vocábulos, supôs estupidamente que mudara o sentido natural que eles exprimiam, e ainda exprimem, no ofício de 1913.

Mas, submetendo-nos à reviravolta de suas idéias, aceitamos, em artigo passado, a retificação de que s.s. quis, de fato, referir-se apenas a um cais comum e lhe retrucamos:

1º) que não foi a União (Governo da República), mas o Império, que fez a concessão das obras do cais do porto, à empresa que ainda hoje o explora;

2º) que, desde o tempo do Império, as obras foram iniciadas pela empresa concessionária;

3º) que, começada em 1889, a construção do cais do litoral, de que se formou o porto de Santos, conforme suas expressões, nenhuma culpa tinha a Câmara republicana de 1905 de não executar uma obra que se vinha realizando há 16 anos, desde a Monarquia, e da qual já havia trechos entregues ao público;

4º) que, admitindo embora, que a Câmara de 1905, e até mesmo as que vieram antes e depois dela, na administração municipal, sob o regime republicano, tivessem obrigação legal de construir o cais comum que o sr. Saturnino reclama - onde queria o fantástico engenheiro que a Municipalidade colocasse semelhante cais? Em cima do que a companhia concessionária estava construindo, e se achava quase concluído? Por baixo? De lado? Em suspensão nos ares, maravilhosamente?

Estas perguntas, categóricas e positivas, é que o sr. Saturnino de Brito, esboçando, encalistradamente, um sorriso embatucado e alvar, acha engraçadíssimas, mas a que não responde porque são realmente irrespondíveis.

E com que deplorável insistência repete ele, no artigo XIV, que a União é que fez o cais, quando este está sendo feito com os capitais da empresa, e em virtude de concessão dada pela Monarquia! O sr. Saturnino é useiro e vezeiro em enganos deste quilate; já nas obras do Saneamento, que estão sendo executadas, exclusivamente, com o suor do povo de Santos, apesar de aproveitarem à salubridade geral e à vida econômica do Estado, para s.s. são custeadas pelo dinheiro do Tesouro paulista!

Continuando a discretear sobre a competência municipal para construir os cais comuns, diz s.s. que "em Campos, margem de rio, temos trechos de cais executados pela província, outros pela municipalidade, e ainda agora o estado está mandando fazer outro trecho, por conta da cidade". E prossegue: "Ora, o que se está fazendo em Campos é um cais comum, mas se o governo da República resolvesse executar aí seu antigo projeto de formar um porto, se resolvesse fazer o que fez em Santos, a municipalidade se livraria da despesa".

Que deficiência de critério, que escassez de lógica, que obtusidade de raciocínio! É incrível, é inverossímil, é pasmoso, que um homem diplomado cientificamente, que um matemático filiado aos ensinamentos de uma doutrina filosófica, severamente lógica, tenha escrito, de público e raso, um argumento de tamanha inépcia. É certo que, na hipótese figurada, a Municipalidade de Campos se livraria das despesas, mas, não é menos certo que, posto o caso em confronto com a acusação feita a Santos, lá construiu-se um cais comum porque não haviam feito, até então, cais de espécie nenhuma. Havia lugar onde se fazer a obra. Aqui, não.

O sr. Saturnino acusa as Câmaras municipais (não a de agora, diz s.s.) por não terem executado uma construção que elas não podiam executar, porque já estava iniciada desde o regime imperial, há muitos anos.

E depois, é inepta, ainda, a paridade estabelecida entre o cais de Santos e o de Campos. Este é um porto fluvial, à margem de um rio interior; ao passo que o nosso está em relação direta com o comércio exterior, cuja regularização compete ao Governo Federal, assim como a fiscalização dos mares territoriais.

A Municipalidade daqui não tinha, e não tem, a menor competência para fazer semelhante serviço, a não ser por concessão idêntica à que a União deu a Gaffrée. Ainda agora, o Governo do Estado pretende obter do Governo Federal concessão para construir, e explorar por sua conta, o prolongamento das obras, a partir do ponto em que termina o contrato da atual empresa.

O célebre cais comum foi, pois, uma criação oportuna, mas desajeitada, de que o sr. Saturnino lançou mão para sair da difícil situação que se criara. Houve-se, porém, com tanta infelicidade, que ficou mais embaraçado do que dantes. De fato, em vez de responder ás nossas perguntas: - ó mestre Saturnino, onde poremos o cais que você idealizou? Em cima do atual? Por baixo? Do lado? Suspenso entre as nuvens? - em vez disso, limita-se, com um ar corrido, atoleimado e canhestro, a afirmar que tais perguntas são engraçadíssimas...


Termina s.s. o artigo XIV com várias considerações de ordem especulativa e moral, entre as quais a seguinte acre censura, que transcrevemos, textualmente, por entre vinhetas glorificadoras:

No jornalismo anônimo os artigos não são assinados pelos que agridem.

Esta frase dá o último retoque na fisionomia intelectual do sr. Saturnino de Brito, que, trasladando para a vida real as tradições anedóticas de Calino, exige honestamente que as cartas anônimas sejam assinadas!...

4 - Os maus exemplos estrangeiros

Depois das considerações calináticas com que encerrou o artigo XIV, abre o sr. Saturnino o artigo seguinte, dando-nos um quinau. Diz que nós falamos em conjunto das leis positivas, elaboradas para regularem as relações entre a sociedade e os governos, leis que s.s. procura sacrificar anarquicamente.

Entretanto, ignoramos "que o conjunto das leis positivas compreende as leis matemáticas, astronômicas, físicas, químicas, biológicas, sociais e morais". Vai o preclaro apóstolo positivista convencer-se de que não ignoramos tal.

Falando do conjunto das leis positivas, elaboradas para regularem as relações entre a sociedade e os governos, poderíamos querer aludir, muito sensatamente, ao conjunto das leis sociológicas, que afetam essas relações, no que se entendem com a constituição da autoridade, com o respeito à propriedade particular, e outras instituições.

Mas, a verdade é que, tratando da sem-cerimônia com que s.s., no seu furor anarquista, pretende demolir a Constituição Federal, a propriedade particular e o instituto da desapropriação - nós, ao acusarmo-lo de querer sacrificar aos seus caprichos o conjunto de leis positivas, elaboradas para regular as relações entre a sociedade e os governos, empregamos apenas a fraseologia jurídica habitual e costumeira, referindo-nos ao conjunto de nossa legislação escrita em vigor, do nosso Direito Positivo, em suma. O ignorante, pois, é, ainda uma vez, s.s.

Estende-se s.s., ato contínuo, em alongadas considerações a propósito do que se faz nos países europeus em relação ao sanitarismo, e cita leis, opiniões e autores, copiosamente, eruditamente, interminavelmente. Diz, por exemplo, com Brouardel, que, em França, apenas 1.000 maires (nossos prefeitos municipais) terão competência em matéria de higiene.

Escute-nos, porém, mais uma vez, o sr. Saturnino de Brito. Em S. Paulo, quem foi que saneou Santos e a Capital, e quem foi que elaborou os códigos sanitários? Não foram as municipalidades, não foram os seus prefeitos: foram os governos estaduais.

Ora bem: quais são os presidentes de S. Paulo, a partir do advento da República, até nossos dias, que têm, em matéria de higiene, a competência que Brouardel negou às municipalidades francesas? Entre os presidentes que iniciaram e desenvolveram o saneamento de Santos, quais os que tinham conhecimentos especiais de higiene e de sanitarismo? Nenhum.

Entretanto, o saneamento se fez e as leis sanitárias foram incorporadas ao conjunto das leis positivas do Estado. Se cada administrador devesse entender de cada problema especial, só poderiam ser Governo homens fora do comum, dotados não apenas de talentos e sabedoria excepcionalíssimos, como de uma atividade incompatível com os limites normais de cada capacidade orgânica.

Cada governo, pois, cada chefe de Estado, o que faz é confiar a capacidades especiais funções especiais. Foi o que fez S. Paulo na solução dos principais problemas de sua vida. Os presidentes, leigos em assuntos de instrução superior técnica, de higiene e de engenharia, organizaram os cursos politécnicos, as escolas profissionais, as obras de saneamento, as leis sanitárias, os diferentes trabalhos públicos, confiando à dedicação de seus auxiliares tais cometimentos.

A mesma coisa fazem as municipalidades, na esfera de sua competência legal e dentro da órbita constitucional de sua vida autonômica. Imaginemos que o saneamento de Santos seria feito pela Câmara daquela época e não pelo Estado. Que competência precisaria revelar o prefeito, ou antes, o intendente de então, em matéria de higiene, para, diante do renome de que gozava o sr. Saturnino de Brito, confiar-lhe as obras respectivas? A mesma que revelou o presidente do Estado que o escolheu, isto é, nenhuma. Entretanto, as obras do saneamento seriam feitas por s.s., inclusive a primitiva ponte pênsil, que desabou em S. Vicente.

Já vê, pois, s.s., que a opinião de Brouardel é a de um sanitarista supersticioso, que trata de complicar o problema humano, porque é preciso dar que fazer aos profissionais desocupados. Os governos que fundam escolas superiores e diplomam os seus alunos - em Medicina, por exemplo - dando-lhes, oficialmente, o direito exclusivo de exercer sua arte, é porque reconhecem que eles são necessários ao organismo social.

Como, porém, as escolas oficiais despejam, anualmente, milhares de diplomados na sociedade, resulta uma aflitiva superabundância de esculápios sem doentes. Vê-se então o Estado na contingência de organizar aparelhos administrativos espetaculosos e caríssimos, a pretexto de saúde pública, para dar emprego aos doutores privilegiados pelas academias governamentais; e estes, por sua vez, para justificarem suas funções, mantidas pelo tesouro, criam teorias, desenvolvem hipóteses e levantam obstáculos e dificuldades de toda a sorte às populações, principalmente proletárias, em nome de postulados científicos sem a menor base racional.

Em França, então, o despotismo sanitarista assumiu proporções tais que é a negação formal de toda a liberdade individual e coletiva. Léon Daudet, que é médico, ridiculariza, no seu romance Les morticoles, essa tendência, verdadeiramente charlatanesca, da classe médica de seu país, para, apoiada na força material do poder público, constranger os cidadãos à prática de certos processos clínicos e terapêuticos, fundados no mais grosseiro empirismo, mas impostos pelos medicalistas que precisam ganhar para viver.

Os positivistas, e, sobretudo, os positivistas brasileiros, insurgiram-se sempre contra essa forma de despotismo revoltante; mas o sr. Saturnino, na sua obsedação sanitarista, superpõe-se às grandes cabeças que dirigem o apostolado nacional, julgando-se orgulhosamente mais competente que os seus ilustres chefes.

S.s. discorre ainda latamente sobre um projeto de lei, elaborado na França, e pelo qual todas as cidades, com população superior a 10.000 habitantes, seriam obrigadas, dentro de 5 anos, a estabelecer seus planos gerais de expansão, sob pena de serem eles organizados pelo Estado.

Trata-se apenas de um projeto a discutir, e não de uma lei vigente. Aceitemo-lo, entretanto, como se fora, de fato, um lei já posta em execução na França. Esquece-se, porém, o sr. Saturnino, de que lá, dada a organização política e administrativa do país, leis como essas podem ser adotadas, embora atentatórias da liberdade que cada comuna deve ter de governar-se como lhe aprouver, porque ninguém conhece melhor suas necessidades e seus recursos do que o próprio dono da casa.

Lá não existe o regime da autonomia, como aqui; lá os maires exercem, apesar de eleitos, funções delegadas pelo poder central, e podem até, em determinados casos, ser suspensos e mesmo destituídos, pelo governo, do exercício de seus cargos.

Aqui, o regime é outro, é da autonomia originada num dispositivo constitucional, que foi o cumprimento de uma das mais solenes promessas da propaganda republicana. A autonomia municipal e a descentralização administrativa são pontos de fé do programa histórico e a dupla base em que repousa a nossa organização social.

Cita, ainda, o sr. Saturnino, muitas outras cidades do velho continente, com opressivas legislações sanitárias, subordinadas ao regime dos países a que pertencem; e crava-nos o agudo farpão de sua ironia zombeteira, porque taxamos de retrógradas as civilizações européias.

Entendamo-nos: não nos referimos aos povos oprimidos, mas aos governos opressores, que decretam as leis bárbaras e iníquas, que s.s. quer trasladar para aqui, afrontando a civilização republicana da América.

Em que pese ao sr. Saturnino de Brito, a civilização americana, sob o ponto de vista social, político e moral, é superior à da velha Europa, dominada pela retrogradação militarista. Nós só lhe somos inferiores no que diz respeito ao progresso material, à expansão das forças econômicas e ao desenvolvimento artístico.

A arte é filha direta da riqueza. É quando existem recursos materiais acumulados, é que a arte progride, pois há então períodos de lazer, de repouso e de ociosidade, proporcionados pela abastança, durante os quais podem os povos gozar dos prazeres estéticos, sem comprometer, nem defraudar, as riquezas que armazenaram pelo trabalho.

Na América ainda se trabalha muito, ainda há pouca gente, há muito solo inculto e despovoado, ainda há uma relativa pobreza geral, e, por isso, apesar da capacidade fundamental das raças que a habitam, o progresso artístico, que é o expoente das civilizações quaisquer, ainda se acha na sua fase embrionária.

Pode-se dizer, entretanto, diante do feroz espetáculo atual da Europa conflagrada, em face daqueles governos que se entredevoram encarniçadamente, operando, para a humanidade, o retrocesso de um século na evolução planetária - pode-se dizer, em presença desse espetáculo, que tais civilizações são superiores à nossa?

Nós, na América, somos sinceramente adversários da conquista e da guerra, e trabalhamos com ardor, pela paz industrial florescendo no seio dos adiantados povos do continente. Só mesmo países que vivem sob o odioso cativeiro do militarismo é que suportam as leis que o sr. Saturnino de Brito defende com tamanho garbo e tão desusado vigor.

Que importa que a França seja nominalmente uma república, se a sua organização governamental é centralizada e militarista, isto é - tipicamente monárquica? Ela, com o seu admirável foco parisiense, que resume os mais nobres impulsos morais e as mais elevadas cogitações do Ocidente e da Terra, é a pátria ideal e eterna da liberdade e da justiça. Mas os seus governos têm sido, invariavelmente, retrógrados, antes despóticos do que progressistas, em oposição à índole liberal, às tradições históricas e às tendências próprias da maravilhosa evolução de seu grande povo.

Comparando o modo violento e brutal por que lá se efetuou a separação das Igrejas e do Estado, em relação o catolicismo, com os processos liberais, inteligentes, cultos e humanos por que o mesmo fenômeno se operou no Brasil - pode alguém duvidar de que o nosso governo, refletindo o estado real da sociedade brasileira naquele momento, revelou-se mais civilizado do que o governo francês?

Abespinhou-se o irritadiço engenheiro porque, entre os países de tipo retrógrado, assinalamos a Itália. Pois fique sabendo que nos inspiramos nos ensinamentos políticos de sua doutrina. Para os positivistas, a unificação da Itália equivaleu a uma retrogradação, porque, contrariando a fatalidade de uma lei sociológica - a da transformação das grandes nacionalidades em pequenas pátrias, reuniu de novo diversos povos que viviam espontaneamente segregados do primitivo conjunto.

Da Prússia, dizia também um dos chefes espirituais do sr. Saturnino de Brito, o dr. Robinet, discípulo direto e executor testamentário de Augusto Comte: - é a mais atrasada das nações ocidentais. Diante dos processos atrozes que o seu governo tem posto em prática na guerra atual, gelando de espanto, de horror e de indignação as almas boas da terra, achará o sr. Saturnino errônea a apreciação daquele publicista e apóstolo do seu credo? Aliás, a opinião de Robinet é idêntica à do célebre filósofo alemão, Nietsche, que no segundo Post-scriptum ao Caso Wagner, O Crepúsculo dos Deuses, proclamou que "dos povos civilizados da Europa, a Alemanha é o mais atrasado".

E são as leis emanadas de tais governos, tirânicos, retrógrados e barbarizados, que s.s. quer transportar para o Brasil, em desacordo com a brandura de nossa índole, a doçura de nossos costumes e a retidão de nossos sentimentos, que não nos permitem coagir ninguém a despojar-se do fruto de seus laboriosos esforços, em homenagem aos caprichos e à fatuidade dos profissionais vaidosos e delirantes!

5 - Outros aspectos da questão

Nos artigos anteriores, fizemos sentir ao sr. chefe da Comissão de Saneamento que, no caso santista, não cabem os exemplos europeus, com a sua legislação fundada na organização militaristas dos respectivos governos. O caso local tem que receber uma solução dentro do nosso Estatuto constitucional e das leis estaduais em vigor.

Nem aquela, nem estas, permitem às municipalidades legislar no sentido das descabidas exigências de s.s., porque lhes escapa a atribuição de inovar o nosso Direito Público e Privado. E era isso que s.s. exigia da Câmara, seca e imperiosamente, em seu absurdo ofício de 30 de dezembro de 1910, transcrito na segunda parte deste volume.

Verão os leitores, pelo estudo do precioso documento, que o sr. Saturnino, depois de expor, sobre propriedade particular e sobre desapropriações, as cerebrinas idéias que ainda hoje sustenta, conclui nos termos seguintes: "Submeto à Câmara estas disposições legislativas, para que julgue de seu valor, e, no caso de as aceitar, para lhes dar conveniente redação e as promulgar."

Ora, a Câmara julgou de nenhum valor as tais disposições legislativas, por saber-se incompetente para promulgá-las, como na sua pasmosa ignorância e filáucia queria o sr. Saturnino. E porque a Câmara assim agiu, s.s. descompassou-se na represália, ferido na sua vaidade incapaz. Voltou, então, à carga, para exigir da Câmara que conseguisse do Governo Estadual a incorporação daquelas disposições anarquistas ao corpo de nossa legislação positiva.

A Câmara, porém, que tem revogado todas as leis provadamente inconstitucionais, que, sempre de boa fé, várias Administrações locais tinham decretado - não podia solicitar ao Estado a adoção de medidas que ela reputa atentatórias da Constituição e do direito de propriedade. E entendeu que o sr. Saturnino, que tão empenhado se achava na aprovação de sua planta, é que devia convencer o Estado da necessidade de reformar a nossa legislação no sentido de suas exigências.

Dando de barato, contudo, que a Municipalidade achasse conveniente aceitar a sua planta - supondo mesmo que esta não fosse o horrendo monstro que é: contrário à beleza, ao conforto, à higiene e à economia - ela não poderia passá-la da folha de papel para o terreno da realidade, por falta, simplesmente, de dinheiro.

É preciso, sr. dr. Saturnino de Brito, que um engenheiro seja muito ignorante ou muito ousado para propor, numa cidade de S. Paulo, como se fora na Beócia, a venda de madeiras de futuros bosques, como recurso financeiro para custear praticamente as obras de reforma da localidade, entre as quais avultam, pela sua careza, as duas avenidas, onde seriam plantados os referidos bosques, destinados a cobrir as despesas do respectivo orçamento.

Em suma, o que se torna preciso, para que a sua planta seja aprovada pela Câmara Municipal (admitindo-se a inverificável hipótese de que ela venha a ser, tecnicamente, julgada aceitável), é pura e simplesmente, dinheiro, muito dinheiro, milhares de contos de réis para indenização prévia dos proprietários de acordo com a Constituição Federal e as leis que dela provêm.

Quanto aos exemplos estrangeiros, colhidos em países cujo regime municipal é idêntico, ainda hoje, ao nosso regime municipal do tempo do Império, fundamentalmente modificado pela Constituição republicana - eles em nada, absolutamente em nada, aproveitam ao caso santista.

É gastar eruditamente pena, tinta, papel e tempo em copiar de jurisconsultos, higienistas e arquitetos, opiniões e páginas inúteis. O seu ponto de vista é totalmente contrário ao nosso: s.s. quer trazer para o Brasil as leis de países europeus, onde ainda palpitam restos das tradições do despotismo governamental; nós, ao revés, desejaríamos que a nossa legislação, adiantada e culta, invadisse pacificamente a Europa, modificando, em seus fundamentos, os processos absolutistas que ainda perduram por lá, com supremo desprezo da personalidade humana e da liberdade política.


O artigo XVII da série (IV da sub-série suplementar) é uma segunda resposta ao sr. dr. Silva Telles, engenheiro-chefe da Prefeitura Municipal. Nada temos que ver com ele; o ilustre profissional treplicará ao seu colega, se entender necessário voltar ao debate, o que nos parece pouco provável, porquanto a vigorosa argumentação de seu Parecer está vitoriosamente de pé.

Não podemos, porém, calar-nos diante da insistência com que o sr. Brito atribui àquele funcionário a atitude da Municipalidade, em relação à sua planta, condenada a restar eternamente no papel, para memória, edificação e gáudio dos técnicos do futuro, embasbacados à sombra daqueles frondentes bosques, embalados pelas virações...

Afirma s.s. que o dr. Telles intrigou-o com a Câmara, durante dois anos, pelos motivos a que se referiu, por alto e a contragosto, no artigo IX. É fácil verificar-se, pelos documentos que vão publicados na segunda parte, que o sr. Saturnino de Brito não fala a verdade a este respeito.

Quem vibrou o primeiro ataque oficial à planta de s.s. foi, em virtude de suas funções, o sr. dr. Dinamerico Rangel Junior, então diretor interino das Obras Públicas Municipais. O dr. Telles, por doença, estava afastado do exercício de seu cargo, em gozo de uma licença por dois meses.

O segundo ataque partiu do então prefeito, sr. Belmiro Ribeiro de Moraes e Silva, e a sua informação à Câmara, despretensiosa, mas cheia de critério, bem ponderada e bem argumentada, foi o primeiro decisivo esclarecimento que começou a levar ao espírito dos senhores edis a dúvida quanto à exeqüibilidade da planta.

Hoje, em Santos, a não serem alguns partidários do sr. Cesario Bastos, que querem dar ao caso uma feição política, para tentarem, num golpe de força, retomar o poder local - todo o mundo está convencido de que a planta é inexeqüível e que a Municipalidade defende os interesses públicos, rejeitando-a.

Não é, pois, justo que o dr. Silva Telles assuma sozinho a responsabilidade que lhe atribuiu o dr. Saturnino de Brito, pelo malogro de suas ambiciosas aspirações profissionais.

Por mais de uma vez, s.s. acusa, com absoluta descortesia, o dr. Telles, por não querer devolver-lhe a planta, enviada à Câmara. Entende que isso constitui uma desonestidade. A verdade, por que s.s. ofereceu a planta à Câmara, e no seu memorandum de 14 de janeiro de 1911 apenas diz, textualmente: "Mais tarde pediremos a planta para tirar uma cópia".

Ora, se s.s. mandaria pedi-la para tirar uma "cópia", segue-se que o exemplar ofertado à Câmara pertencia a esta, e que é impertinência de sua parte exigir a sua devolução. Para tirar-lhe uma cópia não era preciso que a planta voltasse ao Saneamento: era bastante que s.s. mandasse pessoa competente fazer o serviço na própria repartição municipal de obras.

Achamos que o dr. Telles fez muito bem em prendê-la, não só porque ela pertence à Câmara, graças à espontânea oferta do autor, mas também porque ali permanece como um documento autêntico, demonstrativo da alta capacidade do sr. Saturnino de Brito na arte de planejar a expansão das cidades modernas.

Se o dr. Telles a deixasse sair, ela passaria pelos retoques, acréscimos e transformações que o autor, diante das críticas dos competentes, foi acrescentando, pelo calado e sorrateiramente, ao exemplar com que ficou. E não foi certamente com outro fim que ele, no aludido memorandum, reservou-se o direito de reclamar a planta para tirar-lhe uma cópia.

Aliás, não se pode compreender a raivosa e encolerizada insistência com que s.s. reclama o exemplar que ofertou à Câmara. Para que tanto barulho, tanto escândalo e tão violenta indignação? Em poder da Prefeitura ou em poder do Saneamento, com cópia ou sem cópia, com bosques de eucaliptos ou sem eles - convença-se o sr. dr. Saturnino de Brito de que a sua planta não será aprovada, quer no presente, como no futuro.

6 - Sintomas alarmantes de alienação progressiva

Vamos terminar, decisivamente, esta polêmica, pela análise dos três últimos e longos artigos do sr. Saturnino de Brito, e com os quais, parece-nos, encerrou ele a sua famosa série.

Os seus artigos finais primam sobre os outros pela superabundância, verdadeiramente diluvial, de asneiras de toda a sorte, e principalmente pelos numerosos atentados às regras mais elementares da linguagem vernácula, e às inflexíveis prescrições da lógica.

Entendemos que um homem, que não consegue saber aquilo que todos começam a aprender desde que nascem, por uma prática ininterrupta de todos os dias - a língua materna -, é destituído de qualquer capacidade teórica para adquirir, mais tarde, conhecimentos mais complexos, da mesma forma que quem for infenso à compreensão dos problemas fundamentais da Aritmética é incapaz de atingir às concepções da Mecânica.

O sr. Saturnino de Brito não conseguiu, até esta data, aprender uma disciplina que lhe vem sendo professada desde o berço; é natural que a sua inteligência fosse pouco permeável à penetração de outras matérias de aprendizado incontestavelmente mais difícil. Daí as públicas provas que tem dado, ultimamente, de péssimo escritor e engenheiro infeliz.

Em assuntos de Português, a sua ignorância leva-o a escrever uma asneira deste quilate: "Trocamos idéias com alguns proprietários. LEMBRAMOS A ELES um alvitre"; e em matéria de saber técnico, levanta, em S. Vicente, os fundamentos de uma ponte pênsil, que desmoronam estrondosamente, porque a Comissão, de que s.s. é chefe, supôs, nas sondagens feitas, que o bloco de granito sobre o qual eles repousavam, oferecia uma segurança que efetivamente não tinha.

E por causa deste erro crasso e fundamental - erro que só agora, depois da nossa atitude, é que foi confessado pela Comissão, nas colunas do seu órgão oficial - custou a ponte ao erário estadual o triplo do preço por que fora orçada! Mas, comecemos a nossa análise.

No artigo XVIII, opera-se nova reviravolta na instabilidade característica do seu espírito. S.s., nos artigos anteriores e no ofício com que enviou a sua planta à Câmara, condenava categoricamente os traçados em xadrez. Agora, porém, atarantado, porque se lhe mostrou que a planta incide nessa condenação, pois que nela predomina a preocupação do xadrez - s.s. opera rapidamente uma contramarcha nas suas antigas opiniões e passa a defender o que antes combatera com tamanha veemência.

A propósito dos traçados de Belo Horizonte, e de Washington, s.s. faz a ardente apologia dos planos em xadrez, e chega, em sua desvairada ansiedade de defesa pessoal, a querer convencer-nos de que Camillo Sitte, de quem citamos já trechos expressivos, é paladino de semelhante sistema!

Em apoio de suas idéias, cita várias autoridades, da mesma forma que antes se apadrinhara com a autoridade de Camillo Sitte para convencer enganosamente a Municipalidade de que a sua planta obedecera à orientação daquele especialista.

Mas não se trata, agora, de saber se engenheiros competentes, nacionais e estrangeiros, acham ou não belos os planos de Washington e de Belo Horizonte, porquanto isso nada mais é que uma questão de gosto pessoal estético de cada qual. Para uns, a beleza está n predominância da linha reta; para outros, na da linha curva; para outros, finalmente, na justa e equilibrada proporção entre as duas.

Do que se trata é de outra coisa: é de saber porque é que, sendo o sr. Saturnino partidário das idéias de Camillo Sitte, cuja obra recomendou calorosamente aos vereadores locais; porque é que s.s., manifestando-se, em documento oficial, contrário aos planos em xadrez - planejou entretanto a expansão de Santos segundo o sistema condenado por aquele especialista e por si mesmo?

Do que se trata é de profligar a sem-cerimônia com que, de repente, s.s. abandonou Camillo Sitte em meio do caminho, e foi se apoiar ao braço de outras autoridades, igualmente egrégias, mas que se orientam por princípios aos que s.s. sustentara com ardorosa pugnacidade.

Sabemos que há, em nosso debate, três pontos que o abalaram profundamente, causando-lhe graves crises e paroxismos nervosos. São eles:

1º) a referência à primitiva ponte pênsil de S. Vicente que desmoronou, desmoronando com ela a reputação do seu construtor;

2º) a afirmativa de que a Municipalidade de Santos jamais aprovará a sua planta de expansão, por ser feia, errada e economicamente inexeqüível, em todos os tempos;

3º) A divulgação da sábia sentença de Augusto Comte sobre o característico da alienação mental.

Pois, em risco de provocarmos uma nova reação nervosa em seu organismo esgotado pelo trabalho, pelos jejuns de toda a espécie, e pela interminável série de artigos intermináveis que acaba de escrever - somos forçados, ainda uma vez, a recordar-lhe que a sua última atitude - abandonando Camillo Sitte e voltando aos planos de xadrez - só pode ter uma explicação lógica, racional e científica na sentença do fundador da doutrina de que s.s. é adepto.

Somos forçados a repetir-lhe, dolorosamente, que, segundo seu eminente mestre, s.s. apresenta sintomas alarmantes de alienação mental progressiva...

Volta o sr. engenheiro-chefe a tratar, no artigo XIX, de matéria já discutida e por demais esclarecida neste debate, graças ao poderoso concurso dos profissionais cujas lições repetimos. Esquecendo-se de que escreve para o Brasil, e que o seu plano de expansão se refere a uma cidade brasileira, s.s. põe de lado, inteiramente, como das outras vezes, a nossa legislação positiva e calca a sua argumentação sobre leis estrangeiras.

Diz s.s. que lá, nos velhos países secularmente civilizados (mas que agora retrocederam às primeiras épocas da barbárie inicial), ninguém cogita de saber se os seus proprietários são espoliados ou não. Faz-se a lei, e a lei é executada. Não duvidamos disso. Aqui também fazem-se as leis, e elas são executadas. Como, porém, nós possuímos a Lei Fundamental, que é a origem primária de todas as leis especiais, estas não podem ser contrárias às disposições daquela.

A Constituição foi feita, tendo em vista as nossas tradições, usos e costumes, o nosso estado jurídico atual, a nossa civilização, em suma, e não as condições peculiares aos países estrangeiros, com suas populações sojigadas (N.E.: o mesmo que subjugadas) pelo despotismo militarista.

No Brasil, perante o nosso Direito e a noção que temos do que seja probidade - comete um crime o governo que, sob qualquer pretexto, se apossa de bens particulares, sem prévia indenização.

Vá o sr. Saturnino de Brito exercer as suas funções de planejador de cidades lá por essa Europa ultra-civilizada, que neste momento destrói tudo quanto adquiriu em tantos séculos de civilização (N.E.: a referência é à Primeira Guerra Mundial, deflagrada na Europa de 1914 a 1918) - e deixem-nos em paz com o nosso respeito à propriedade particular e à liberdade política.

Nós, em vez das cidades materialmente suntuosas, que os canhões arrasam cruelmente, preferimos dilatar a nossa civilização pelo campo das conquistas morais, cultuando a justiça, o direito, a arte, o sentimento do dever, as coisas boas, belas e generosas da vida.

No citado artigo, afirma s.s. o seguinte: "É de notar que em nossos artigos não propomos que sejam adotadas, desde já, algumas das medidas radicais. Citamos os exemplos da Itália para mostrar a inanidade dos argumentos que a ignorância e a má fé levantam".

Ora, esta afirmativa constitui mais uma contra-marcha, mais um inesperado recuo, mais uma brusca reviravolta operada pelo sr. Saturnino de Brito, diante de nossa crítica à lei italiana de 1865, que nenhum governo sensato seria capaz de introduzir no Brasil.

A verdade é que s.s. desejava a adoção, pelo Governo do Estado, dessa lei iníqua, que é um atentado brutal à propriedade. S.s. chegou a dizer, no artigo VIII, aos italianos domiciliados em S. Paulo, onde milhares deles são proprietários, que "NÃO SE ESQUEÇAM DO QUE SE FAZ NA SUA TERRA; ENTRETANTO, É POSSÍVEL QUE ELES GRITEM MAIS QUE OS INDÍGENAS PELO SEU DIREITO DE PROPRIEDADE".

Mas olvidou-se o sr. Saturnino de Brito de que, justamente em virtude de nossa legislação liberal, é que os italianos encontram aqui mais facilidade de adquirir propriedades do que no seu país; e uma vez que, domiciliados no Brasil, estão sujeitos às obrigações impostas pelas nossas leis, têm eles o direito de gozar dos benefícios delas. Podem, pois, gritar altamente pelo seu direito sagrado, que a nossa Constituição garante, em toda a sua plenitude, a nacionais e estrangeiros.

S.s. chegou a propor semelhante lei à Municipalidade, como solução intermédia entre as opiniões do Saneamento e a da Câmara. Eis aqui o trecho respectivo do artigo VIII: "A Municipalidade de Santos, em lugar de agir neste sentido, ainda procura outra fórmula transcendente para conciliação dos interesses públicos e privados; e a procura há três anos...

"APRESENTAMOS AGORA AO SEU CRITÉRIO A FÓRMULA ITALIANA: decretada a utilidade pública, é proibido beneficiar o terreno; este só é pago pelo que valha como terra, e não pelo seu valor construtivo e nem pela sua valorização; o proprietário de cada terreno atravessado por uma rua cederá gratuitamente uma faixa a fixar, de acordo com a largura da rua; e se se lhe tomar pequena faixa, e maior na do vizinho fronteiro, o proprietário ainda pagará à Câmara o valor do terreno adquirido a mais ao outro proprietário..."

Leram? Ele apresenta, AGORA, ao critério da Municipalidade, a fórmula italiana - o atentado mais espantoso que conhecemos contra o direito de propriedade; e diz que apenas a citou como demonstração de nossa incapacidade para argumentar. E querem também uma outra prova decisiva de que o famoso sanitarista está, nesta discussão, marchando e contra-marchando forçadamente, sob o fogo cerrado de nossos irrespondíveis argumentos?

Assevera ele, num dos trechos que trasladamos acima, do artigo XVIII, que em seus artigos anteriores não propôs a adoção da lei citada; mas que, ao contrário, disse que essa lei e outras "para serem aplicadas aqui devem ser modificadas sensatamente, de acordo com a nossa situação local". Ora, s.s., no seu artigo VIII, do qual talvez já não tivesse a mínima lembrança quando escreveu o artigo XVIII, apelou para o Governo de S. Paulo, a fim de que este tomasse "imediatamente a iniciativa de modificar e ampliar as leis antigas relativas à expropriação por utilidade pública, de acordo com as novas aspirações dos países civilizados".

Donde se vê que, de abril para agosto, s.s. mudou completamente de opinião. Naquele mês s.s. queria que o governo modificasse as nossas leis de expropriação, segundo o tipo das leis européias. Em agosto, s.s. quer exatamente o contrário: que o governo modifique as leis européias, de acordo com as condições do nosso meio local.

Poderá alguém, neste mundo, tomar a sério os conselhos, as opiniões e os alvitres de um profissional deste jaez, que a toda hora se contradiz, que vacila a cada instante em suas idéias, que não tem a menor firmeza nas suas convicções, que as repudia em agosto com a mesma facilidade com que as adotou em abril?

E o mais interessante é que ele chama enfaticamente "novas aspirações dos países civilizados" às disposições obsoletas de uma lei italiana que tem nada menos de meio século de vigência!


No mesmo artigo, o sr. Brito repete uma dupla afirmativa que fez, por várias vezes, no longo decorrer de sua série: 1ª) que a Municipalidade de 1905 pediu-lhe que executasse a planta geral; e 2ª) que o presidente da Câmara, o falecido coronel Almeida Moraes, escrevera-lhe, reclamando-a com urgência, PARA SER IMEDIATAMENTE APROVADA.

Quanto à primeira, é absolutamente inverídico que a Municipalidade lhe tivesse pedido para executar a planta da cidade, em qualquer época. Revendo cuidadosamente as atas daquele período, e de outros, não encontramos indicação ou projeto algum em tal sentido e, segundo informações que colhemos oficialmente, não foi expedido pela Secretaria da Câmara, ou da Prefeitura, em tempo algum, nenhum ofício, solicitando da Comissão de Saneamento a execução daquele serviço, de exclusiva competência municipal.

Resta, pois, a carta do sr. Almeida Moraes, que não tem absolutamente caráter oficial, porque não foi copiada, nem ficou registrada nos livros da secretaria respectiva. Trata-se, pois, de uma carta particular, na qual, quando muito, o sr. Almeida Moraes patenteava o seu desejo de ver aprovada a planta, a cujo respeito, com tanta insistência, o sr. Saturnino confabulava com aquele venerando cidadão, procurando atraí-lo à sua causa.

De fato, não se concebe que o sr. Almeida Moraes pedisse a remessa da planta para ser imediatamente aprovada. Como é que o presidente da Câmara pretendia aprovar imediatamente uma planta que não conhecia, que ainda não se achava feita, a não ser nos confusos e mal iluminados escaninhos cerebrais do seu autor? Não é isso injuriar a memória do probo e laborioso cavalheiro, não é negar-lhe qualquer parcela de critério?

Convenhamos, porém, que o sr. Almeida Moraes, seduzido pelas exposições verbais do eloqüente apóstolo sanitarista, tivesse, de boa fé, aderido a um plano apenas ideado na fértil imaginação do sr. Saturnino de Brito, e lhe escrevesse a tal carta... Ora, quando ele pediu a planta com urgência, para SER APROVADA IMEDIATAMENTE, queria, nessa frase, dizer, apenas: - PARA SER IMEDIATAMENTE SUBMETIDA À APROVAÇÃO DA CÂMARA.

Efetivamente, por mais convencido que o velho presidente da Câmara estivesse, da excelência do trabalho, ele não podia supor que era só apresentar a planta em sessão, para que os senhores vereadores a aprovassem. Ele não poderia dispor do voto dos colegas, como, de boa fé, supõe-se ter empenhado o seu, em favor de uma planta que não conhecia, e nem existia sequer.

Ele não ignorava que a planta iria, regimentalmente, ao estudo das comissões legislativas e do Poder Executivo. Este mandaria a repartição competente pronunciar-se a respeito. Só depois é que ela viria a debate em pública sessão - e seria rejeitada por inexeqüível, porque a Municipalidade não tinha recursos para fazer face às enormes despesas em que ela importaria.

Sabemos que os vereadores pertencentes ao chamado "bloco", e ainda hoje sobreviventes, a rejeitariam e, como na Municipalidade, as decisões eram tomadas depois de ouvida a direção daquele partido, que dominava a situação municipal, é certo que a Câmara, por maioria de votos, deixaria de aprovar a planta.

Este ponto, para ser bem elucidado, exigia que o sr. Saturnino de Brito publicasse na íntegra a carta do sr. Almeida Moraes, e não apenas meros trechos favoráveis, como fez com a epístola do sr. Bouvard, cuja severa crítica forçou-o a aditar, sem demora, às monótonas avenidas da antiga planta, ridentes bosques de eucaliptos.

Ainda mais: seria preciso que a carta, ou fosse exibida ao público, em original, ou transcrita em pública forma por tabelião santista para ter caráter de absoluta autenticidade, porquanto o sr. Saturnino é incorrigível na prática de adulterar e falsificar as opiniões alheias em defesa própria.


O artigo XX e último é um assombro. Diz o seu autor que nós devemos ter RAZÕES INCONFESSADAS para não hesitarmos em explorar a vida de homens ilustres (Aug. Comte e A. de Musset) e de damas que mais respeito devem merecer, e cuja história contamos com lastimável irreverência. E acrescenta que assim procedemos porque os mortos não nos dão os únicos castigos que podem causar incômodos a certos indivíduos.

Ora, nesta polêmica, se há alguém a quem tenhamos tratado com lastimável irreverência é exatamente o sr. Saturnino de Brito, de quem não recebemos ainda os tais únicos castigos que só os mortos não podem aplicar aos vivos irreverentes. Donde se conclui que s.s. já se julga naturalmente um morto.

De fato, este artigo é a última pá de cal que jogamos sobre o ataúde de sua reputação profissional. À beira da cova, escutamos os quérulos singultos do sr. Egydio Martins e outros piedosos adeptos, os quais, de joelhos no chão, aprestam-se, em obediência às venerandas recomendações do ritual ortodoxo, para beijar, com trespassada ternura, a terra que vai recolher os restos decompostos de seu malogrado pontífice.

Mas, falando sério: onde tratamos com irreverência Aug. Comte e Alf. de Musset e as damas que eles imortalizaram através de suas obras imortais? O público é testemunha do respeito que, nestas colunas, por mais de uma vez, tributamos a um e a outro, pois somos profundamente admiradores de ambos.

A vida de Aug. Comte acha-se contida no seu Testamento, nas suas Confissões annuaes, na sua correspondência trocada com Clotilde de Vaux e nas Cartas aos seus diferentes discípulos. Todos esses documentos foram publicados pela testamentária e pelos sucessores do filósofo, de conformidade com sua expressa vontade. Nós nada mais fizemos, senão colher, nessas fontes insuspeitas, os nossos dados.

Acaso faltamos ao respeito a Clotilde de Vaux quando afirmamos que ela resistiu tenazmente às solicitações de seu amigo, declarando-lhe que era incapaz de se entregar sem amor e de assinar um contrato sobre a sua pessoa? Fazendo a apologia da casta resistência dessa mulher superior, que enobreceu o respectivo sexo, pela sua digna conduta, ofendemos, porventura, a sua memória digna do espontâneo respeito que sempre tributamos aos que passaram pela vida amando e sofrendo?

Quanto a Alfredo de Musset, em que é que enxovalhamos a sua eterna memória, quando proclamamos que, em circunstâncias idênticas àquelas em que se encontrou Aug. Comte, ele foi moralmente superior a este? A história de sua vida consta de sua própria autobiografia (Les Confessions d'um enfant du siècle); da correspondência que George Sand manteve com ele e com Sainte-Beuve e que foi publicada por ordem dela; do escorço da vida dessa mulher de gênio, escrita por Emile Moselly; da biografia de A. de Musset, devida à pena de Klein & Lumet e, finalmente, da narrativa dada a lume por mme. Martellet, a dedicada governante que serviu durante dez anos o grande poeta, a quem fechou os olhos.

É ela que nos conta (Dix ans chez Alfred de Musset) o episódio a que nos referimos no capítulo XV. Devemos, agora, acrescentar que a resistência do poeta não foi apenas a passageira resistência de uma noite romântica: pois a visita da formosa dama repetiu-se durante oito noites consecutivas, e Musset saiu-se galhardamente do assalto, sem desfolhar a rosa desabrochante que a jovem trazia presa aos seus dourados cabelos...

É ela a Suzon das estrofes que começam com estes lindos versos:

Adieu, Suzon, ma rose blonde,

Que m'as aimé pendant huit jours...

Insiste depois o sr. Saturnino de Brito em reproduzir os elogios que a A Tribuna lhe prodigalizou em 1911, a propósito da planta. Avança que é falsa a nossa afirmativa de que a elogiosa apreciação viesse escrita da Comissão de Saneamento. Sustentamos que ela é verdadeira, mas, aceitando mesmo que tal artigo fosse, por benevolência, feito na redação d'A Tribuna, já provamos, no capítulo XIV, que não haveria a menor contradição entre as opiniões de ontem e as de hoje.


O mais que se contém no artigo XX não justifica que prolonguemos, com uma inútil resposta, esta discussão que já vai demasiado longa. Nas linhas finais, dirige s.s. um ultimatum ao sr. prefeito municipal, para evitar a luta com que a Comissão de Saneamento ameaça a Municipalidade, se persistir em não aceitar a sua planta.

Pois a Municipalidade aceitará, naturalmente, o cartel de desafio, e como s.s. exige, não palavras, mas atos insofismáveis, é de crer que, dentro em breve, os poderes locais se manifestem positivamente por decisões práticas, firmes e categóricas.

Imagem: reprodução parcial da obra de Alberto Sousa (página 121)