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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO
Bertioga muda rápido (1)

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Publicado em 7/4/1983 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)

A secular Bertioga conserva-se bonita. Mass ninguém pode negar que as coisas andam mudando muito depressa por lá. A população já chega a 10 mil moradores e a quase totalidade dos 360 quilômetros quadrados está prestes a ser retalhada em lotes. Os terrenos sofreram valorização espantosa, principalmente depois da abertura da Estrada Mogi-Bertioga, e um, bem localizado, pode custar Cr$ 10 milhões. 

Com essa rodovia, o Governo colocou Bertioga à disposição de todo o Vale do Paraíba, mas não adotou providências elementares, como instalar redes de saneamento básico para evitar a poluição das praias. Água encanada só existe na Vila e os carros ainda circulam na orla marítima por falta de opção. E os turistas chegam, em número cada vez maior!

Quem mais se espanta com as mudanças são os antigos moradores, que reclamam da falta de sossego. Bertioga até perdeu a característica de reduto de pescadores artesanais: são coisas do passado as proezas de pescadores como o Aristides, que seguia mar adentro em pé na canoa, ou cenas como a formação de uma roda para distribuição do peixe entre homens, mulheres e crianças que ajudaram a puxar a rede. Felizmente, ainda se conservam velhas tradições, como iluminar a Ermida de Santo Antônio do Guaibê e realizar a Festa do Divino, em junho, bem como promover a chamada Folia dos Reis, em dezembro.

Nos dias de semana, prevalece a calma de pequenas vilas. A movimentação maior é sempre na Avenida Vicente de Carvalho, que se estende ao longo do canal e de onde se contempla pescadores às voltas com barcos, redes e gelo. Em junho, um grupo de violeiros sai em procissão para homenagear Santo Antônio. É a Festa do Divino ganhando as ruas. Em dezembro, cantadores saem de porta em porta, não deixando passar esquecida a Festa de Reis. Tudo sob o comando de seu Antônio, zelador do Forte São João e amigo das tradições. Isso é Bertioga. Como é também a falta de drenagem e de redes sde esgoto, o transporte e o policiamento precários. O lugar cresce, vive um processo de mudanças. O que acontecerá com Bertioga?


Junto à ermida de Santo Antônio, floresceu a Bertioga insular

Um sertão longínquo e cheio de riscos. Era assim que os portugueses consideravam a Bertioga do século XVI. Havia o perigo de feras e ataques de selvagens. Os tamoios, efetivamente, não queriam intrusos nas terras que lhes pertenciam.

Como se observa, as origens do lugar vão muito além do que muita gente pensa. Martim Afonso de Souza esteve por lá, em 1531, antes mesmo de se fixar em São Vicente, mas não resistiu ao crônico problema de falta de água e partiu. Anos depois, Diogo de Braga, homem de confiança de João Ramalho, estabeleceu, com a mulher e os cinco filhos, o primeiro núcleo de população portuguesa. Ele próprio se encarregou de construir uma estacada, que daria origem à Fortaleza de São João.

Os silvícolas, dominadores da terra, logo perceberam a estacada e atacaram. E muitos outros ataques se sucederam, um deles com a participação de mais de um milhão de flecheiros tamoios. Em outro, igualmente violento, em 1550, levaram o artilheiro Hans Staden, que ficou prisioneiro um bom tempo, mas escapou e escreveu muito do que se sabe sobre a história de Bertioga.

Os primeiros portugueses a habitar por aquelas paragens deitaram fogo nas matas e realizaram grandes queimadas. As labaredas tomaram conta da noite, promovendo um espetáculo que deixou os indígenas revoltados. Eles respeitavam religiosamente as florestas, quase as adorando, e só queimavam os campos rasos e as várzeas rasteiras para realizar pequenas culturas de milho e mandioca.

Que direito tinha o branco invasor de incendiar as florestas, morada de deuses, espíritos e duendes? Os índios gritavam, inconformados: "Caiçaras, caiçaras!" Cai quer dizer queimadas e çara, agente, executor. Mas, na boca dos índios, a palavra assumia um significado mais amplo: assassinos da selva. E como caiçaras ficaram conhecidos todos que se transferiam para lá.

O núcleo cresce no seu lado insular devido à produção de azeite de baleia - Falemos um pouco mais do passado. Pelo que se sabe, o primitivo sítio de Bertioga não passava de uma pequena linha de praia protegida pelo outeiro de Buriquioca, hoje Morro da Senhorinha. Aliás, o termo buriquióca, com o passar do tempo, deu origem à palavra bertioga, que designa aquele secular núcleo.

Embora não existam dúvidas de que bertioga surgiu da deturpação de buriquióca, há dois significados para o termo. Segundo uma versão, quer dizer "morada de tainhas" e, de acordo com outra, "morada de macacos". Todo mundo sabe que as tainhas aparecem aos montes nas águas de Bertioga nos meses de frio (hoje em dia, é certo, bem menos do que antigamente) e que, portanto, a primeira versão teria sua lógica. Mas, de outra parte, não faltam historiadores afirmando que a região era habitada por muitos buriquis, macacos grandes, tipo mono. Daí teria surgido buriquióca.

Enquanto os estudiosos se debatem em torno desse ponto, de outra parte prevalece o consenso de que o antigo núcleo de Bertioga se estendeu pelo outro lado da barra, mais exatamente onde, em meados do século XVI, foi fundada a Capela de Santo Antônio do Guaibê.

Segundo Diva Beltrão de Medeiros relata em capítulo sobre Bertioga, no 3º volume do livro A Baixada Santista - Aspectos Geográficos, "nos primórdios do século XVIII, com o uso do azeite para iluminação pública e particular, Bertioga passou a ter certa importância, graças à criação, no trecho insular, da Armação de Baleias".

Grandes tanques de óleo foram construídos junto à capela e, ao seu redor, surgiram ranchos, barracões, casas de pau-a-pique. Aquele extremo da Ilha de Santo Amaro transformou-se em uma verdadeira vila, superando a própria Bertioga continental. Como bem disse o historiador Francisco Martins dos Santos, "Bertioga parecia ter-se mudado para o outro lado do rio".

O azeite lá produzido por muito tempo contribuiu para a iluminação de Santos, São Vicente, São Paulo, São Sebastião e, em parte, também do Rio de Janeiro. Mas a atividade se achava decadente no princípio do século XIX e, mais tarde, com o fim do período baleeiro, a Bertioga insular praticamente caiu no esquecimento. E começou a florescer a Bertioga continental.


Seu Benedito, pescador desde os 10 anos, meio salário de aposentados

Um núcleo de pescadores, com um bom porto, ponto obrigatório de paradas - A Bertioga do início do século XX aparece como um núcleo de pescadores. E a presença de um porto seguro para canoas logo a fez se destacar como um ponto de embarque e desembarque de passageiros e mercadorias, bem como um ponto obrigatório de parada e descanso daqueles que navegavam entre Santos e os diversos portos e praias acessíveis da região.

Apesar disso, por longos anos o lugar não ostentava muito mais do que meia dúzia de casas defronte do porto da barca e pequenas vendinhas. Gente antiga por lá, nascida naquele chão, recorda-se desse tempo. E com boas doses de saudades!

"Não havia luz, mas a gente passava um pelo outro nas ruas, à noite, e se conhecia. Dava para contar as casas dos pescadores. Mais sossego. Muito respeito", vai dizendo dona Maria Prudente de Souza, 71 anos de idade, nascida em Bertioga. O irmão Mário, de 73 anos de idade, também nascido lá, confirma as palavras e não esconde a certeza de que aqueles velhos tempos eram bem melhores. Quando pescava, que prazer não sentia ao ver os imensos cardumes brilhando nas águas transparentes.

"O pessoal pegava tainha com a mão dentro do cerco. Eram tantos peixes que uns morriam esmagados os outros, dentro do cerco. Uma fartura. Hoje, acabou-se tudo. Até peixe para os gatos eles querem vender", comenta com ar desconsolado. Um desconsolo que se acentua quando recorda seu enorme quintal: "Não faltava fruta. As laranjas caíam no chão e apodreciam. Hoje é tudo comprado, é porcaria".

Não esconde a revolta pelo fato de não ter recebido qualquer indenização pelas terras que cedeu para permitir a abertura da Avenida Anchieta. "Eu tinha mais de 60 árvores frutíferas. Bananeiras, coqueiros, abacateiros, araçás", conta, apontando a estrada que não só acabou com o seu quintal como trouxe um indesejado movimento de carros e pessoas. Para seu Mário, a estrada determinou o fim do sossego. Um sossego que até mesmo o Elkias conheceu, apesar de ter apenas 35 anos de idade. E o Elkias concorda com a mãe, dona Maria, quando demonstra todo o seu inconformismo: "Hoje assaltam as casas e deixam tudo limpo. Quem diria! Nunca pensei que Bertioga um dia ficasse assim".

As coisas começaram a mudar com alguma rapidez a partir de 1940. Nessa época se iniciou a construção de casas de veraneio e, em 1948, surgiu a vistosa Colônia de Férias do Sesc. A melhoria das vias de acesso e, particularmente, a cobertura de asfalto da estrada que corta a Ilha de Santo Amaro, em direção ao ferry-boat, determinaram a expansão atual.

Peixes diminuem e um pescador diz que "é o fim da época, do mundo" - Hoje em dia, o comércio de Bertioga não se resume mais às vendinhas do Cesário Turco, do Elias Nehme, Joaquim Tavares, do João Turco ou do Miguel Turco. Até na Praia de Indaiá já funciona um hotel, o da dona Irene, recentemente inaugurado. Por muitos anos, os barcos da Companhia Santense de Navegação se constituíam no único meio de transporte para Bertioga. E quantos pescadores não levaram noites inteiras, mãos grudadas no remo, para poderem chegar a Santos, comprar um remédio, levar um filho ao médico. Água, muitos eram obrigados a buscar do outro lado do canal, na Ilha de Santo Amaro. Mesmo assim, quantas boas recordações!

"Todo mundo vivia despreocupado, sem medo de ladrão", testemunha seu Geraldo Araújo, enquanto o seu Antônio, zelador do Forte São João, lamenta a perda da "boniteza". Ele não sente mais aquele lugar que conheceu há uns 50 anos como seu, porque as mudanças foram muitas.

"É preciso progresso. Progresso e cultura", afirma, mas bem que gostaria de ver à sua frente as paisagens de outrora. Um sítio, um lugar cheio de mato, escuro. Seu Benedito Paes, pescador profissional aposentado, nascido em São Lourenço, não escolheria um local diferente para viver. Mas quanto a ser pescador, nunca mais.

"Pescador não arranja nada e morre de pé inchado", diz, enquanto faz remendos em uma rede. "A gente trabalhava, derramava suor. Não era pescador de beira de barranco, não. A coisa é séria e perigosa, o pescador enfrenta a morte todos os dias". O pior é que ganhavam um bom dinheiro os revendedores de pescado. "Nós ficávamos apenas com o trabalho pesado. E passei fome, com meus filhos, passei fome", completa. E depois de todos esses anos de luta, sabem qual o valor de sua aposentadoria? Meio salário mínimo.

Pelo que se deduz, bom mesmo é ter a pescaria apenas como um passatempo. E pescar é a distração maior de seu Orestes Alexandre Amparo, filho de Bertioga. De brincadeiras em brincadeiras, ele pescou um mero de 80 quilos na semana passada. Diz mais: exatamente no dia 26 de novembro de 1962 capturou um mero de 356 quilos.

Não restam dúvidas. As águas de Bertioga não dão mais peixes como antigamente. Uns dizem que é devido ao barulho dos motores dos barcos; outros, à freqüência de banhistas. O pescador Benedito assegura, entretanto, com um jeito bem tranqüilo. "É o fim da época, é o fim do mundo. É esse rebuliço todo no mundo".


Seu Orestes pescou um mero de 80 quilos; e não é história de pescador...

Veja as partes [2], [3] e [4] desta matéria
Veja Bairros de Santos/Bertioga

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