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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS - BIBLIOTECA
A estrada da Cia. Mogiana para Santos

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No início do século XX, a ferrovia Mogiana pretendia estender seus trilhos até o porto de Santos, como decorrência do comércio cafeeiro. Porém, em 1909, em função da crise do café e da própria economia nacional, tal plano já era desaconselhado, em matérias publicadas no jornal O Estado de São Paulo. Esses e  outros artigos foram reunidos em livro, por seu autor, Adolpho A. Pinto, membro da Academia Paulista. Com o título Na Brecha, foi impresso em 1911 pela Oficina Tipográfica Cardozo Filho & C., da capital paulista.

O texto referente à Mogiana foi enviado a Novo Milênio, em 29/7/2010, pelo internauta Paulo Roberto Filomeno. Ele explica que "o autor, Adolpho Augusto Pinto, foi uma destacada personalidade no cenário ferroviário paulista e brasileiro entre os anos de 1880 a 1925. Foi durante quase toda a sua carreira profissional chefe do Escritório Central da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, esse cargo hoje seria equivalente ao de um vice-presidente administrativo-financeiro de uma grande empresa (o cargo de Inspetor Geral, paralelo ao dele, seria equivalente ao de um VP Técnico-Operacional)."

Na opinião de Paulo Filomeno, "talvez o artigo tenha sido motivado pelo fato de que a Mogiana, ao ir a Santos, iria roubar uma boa quantidade de cargas da Paulista, especialmente no trecho entre Campinas e Jundiaí e também da São Paulo Railway, daí o interesse dele em combater o projeto. Mas ele tem razão na análise dos números". O artigo é aqui transcrito, com ortografia atualizada:
 


Imagem: reprodução da folha-de-rosto do livrete de 1911, com autógrafo do autor

Prefácio

Resume este livro algumas folhas soltas, escritas nestes últimos anos sobre os mais variados assuntos.

Ao lado da matéria de interesse religioso, o leitor encontrará aqui a matéria de interesse social, econômico, técnico-industrial, histórico e artístico.

Aos que amam as coisas bem ordenadas, talvez cause estranheza não ter o autor dividido o livro em umas tantas partes, em que fossem grupados os assuntos segundo suas afinidades naturais.

Releve-se-lhe a falta, que é toda aparente. Realmente às vezes a ordem está na desordem, a unidade na variedade.

Pois que não há uma só linha deste livro que não diga respeito a coisas públicas e não tenha sido escrita no momento flagrante da ação, bem pode o autor alegar que existe pelo menos o fio de uma circunstância comum a alinhavar a obra toda, tal qual foi produzida.

É que neste imenso campo de batalha que é a moderna vida social, o homem de seu tempo não tem o direito de se desinteressar da luta, e como ela vai travada em toda a linha, ninguém pode deixar de ser, na defesa de seus ideais, um combatente... na brecha.

A. P.

S. Paulo, setembro de 1911

Imagem: reprodução parcial de página de Na Brecha

PARTES: [01]  [02]  [03]  [04]  [05]  [06]


A Companhia Mogiana e sua estrada para Santos [*]

I

Não leve a mal a honrada diretoria da Companhia Mogiana que aqui externemos as sérias dúvidas que nutrimos, sobre a conveniência e o acerto de levar agora a efeito o plano de construção de uma linha férrea a Santos.

Somos dos que pensam que a execução dessa grande obra será um dia o complemento necessário de uma rede de caminhos de ferro tão extensa e que serve região tão rica como a que percorre a Mogiana. Entendemos, porém, que ainda não é chegada a ocasião de por em execução o grandioso projeto. Em nossa humilde opinião, deve apenas a ilustre diretoria organizar os planos da estada e o respectivo orçamento, reservando-se para realizar o melhoramento quando a sua necessidade for mais justificada e as circunstâncias se tornarem mais propícias à sua execução.

Com efeito, se, da primeira vez que tentou a Mogiana construir a estrada para Santos, foi de muita prudência e sabedoria o alvitre que determinou o adiamento de sua execução, ainda agora não há coisa melhor a fazer, como se pode ver comparando as circunstâncias de uma e de outra época.

Em 1892 havia uma só via férrea a fazer o serviço da importação e exportação do estado de São Paulo – a via singela da S. Paulo Railway, a qual efetivamente chegou a não dar vazão ao serviço que a solicitava, e mais deficiente ainda se antolhava para o que prometiam ser as exigências futuras. O estado de S. Paulo se debatia em plena crise de transporte, e não só à Mogiana, mas também à Paulista e à Sorocabana acudiu a idéia de construir cada uma o prolongamento do respectivo sistema ferroviário até Santos.

Em 1909, o caso é completamente outro: as extravagâncias e aventuras do encilhamento, com todo o seu cortejo de destroços e ruínas, estão passadas; a corrente de especulação que desbordara de seu leito, insuflada pelas fantásticas emissões de papel-moeda, parecendo dar vida a uma série de negócios e empresas de toda a sorte, já se esvaiu de todo, como o fumo de imenso fogo-fátuo, ao passo que, de outro lado, hoje não há só uma, há duas grandes vias férreas de bitola larga a fazerem o serviço de transporte entre o interior do estado e seu grande empório de comércio internacional – o porto de Santos.

Em 1892, a lavoura de café batia o recorde da sua prosperidade; por toda a parte se derrubavam matas e não se cogitava senão de plantar café; os imigrantes entravam em grandes levas; tudo enfim corria às mil maravilhas no caminho largo do progresso e engrandecimento do estado.

Em 1909, o grande artigo de produção de S. Paulo atravessa o período mais agudo da intensa crise que o vem flagelando de alguns anos; acham-se proibidas novas plantações do gênero; sua produção exportável também está limitada por lei; a grande e única indústria do estado não só não dá nenhuma remuneração, como se acha impedida, ao menos por uns dez anos, de maior desenvolvimento.

Em 1892, a rede ferroviária da Companhia Mogiana podia justamente se considerar o escoadouro do Sul de Minas, de todo o estado de Goiás – cuja capital era objetivo de seu prolongamento -, da extensa região denominada Triângulo Mineiro e de grande parte do vasto estado de Mato Grosso.

Em 1909, parece que uma surda conspiração se trama para despojar a próspera empresa dessas grandes reservas territoriais, pretendendo reduzir todo o seu campo de ação à estreita faixa de terra que é a sua zona no estado de S. Paulo.

Pelo que diz respeito ao Sul de Minas, é público e notório o esforço que vem fazendo o governo da União, no sentido de tornar o tráfego da rede ferroviária que serve essa região tributário da Estrada de Ferro Central do Brasil.

A Mogiana apresentou proposta na concorrência aberta para o arrendamento da rede Sul Mineira, mas, apesar de se considerar a sua proposta mais vantajosa que as outras, corre que o governo não lhe dará o merecido ganho de causa.

Quanto ao prolongamento para Goiás, é fato que, após antigos e pesados sacrifícios feitos, perdeu ela o direito de preferência que tinha para essa obra, tendo o governo federal resolvido auxiliar a Companhia Estrada de Ferro de Goiás, em ligação com a Oeste de Minas, para construir a estrada destinada a servir o longínquo estado.

Finalmente, pelo que diz respeito à grande parte do Triângulo Mineiro e do território de Mato Grosso, que até há pouco se utilizava da rede férrea Mogiana, via Uberaba, é infelizmente verdade que o comércio dessas regiões procura agora a estação de Barretos, da Companhia Paulista, pela simples razão de que esta localidade, em relação às procedências da vastíssima zona a que nos referimos, fica a menor distância que Uberaba, ocorrendo além disso que de Barretos a S. Paulo o percurso é apenas de 527 quilômetros e só se pode vencer em dois dias.

Posto isto, não seria mais útil, mais curial, que a Mogiana, em vez de gastar quarenta a cinqüenta mil contos para prolongar até Santos o tronco de sua rede, com o respectivo tráfego ameaçado de tão exaustivas sangraduras, tratasse de preferência de defender e alargar as zonas servidas por seu sistema de penetração, dotando-as de novas e convenientes ramificações?

Em 1892 podia a Mogiana construir a estrada para Santos sem cogitar da hipótese de ser a parte mais importante e rendosa de suas linhas encampada pelo estado, pois para isto faltavam ainda muitos anos.

Em 1909 já não haverá tempo nem sequer de ficar concluída essa obra antes de caber ao estado o direito de chamar a si toda a rede férrea Mogiana até Ribeirão Preto.

Ora, suponhamos que no fim de alguns anos, ao ficar concluída a nova estrada para Santos, resolva o estado encampar a rede antiga até Ribeirão Preto, conforme lhe facultam os contratos existentes, e suponhamos mais que, pondo em concorrência pública o arrendamento das linhas encampadas, resolva o estado aceitar para tal fim a proposta que lhe faça a S. Paulo Railway, que naturalmente não dará pouco para se apossar da boa presa que estava para lhe fugir. Pois bem, em tal hipótese, perfeitamente natural e verossímil, a que ficará reduzida a sua linha para Santos; Como proverá o respectivo custeio: Com que recursos pagará os juros e a amortização do seu custo?

Em 1892 e nos anos imediatamente seguintes, o câmbio caiu extraordinariamente, o que quer dizer que o empréstimo que então fosse contraído no estrangeiro para construir a linha para Santos teria produzido considerável resultado em dinheiro corrente, pois a libra esterlina chegou a valer por esse tempo mais de 30$ réis.

Em 1909, o câmbio está a 15, o que significa que o ouro importado produz muito menos em moeda corrente. Assim, a estrada a construir agora, pelo que diz respeito às despesas a se fazerem no país, custará incomparavelmente mais do que teria custado se a tivessem construído em 1892.

Além de custar mais a construção, há também grande perigo a resultar de um empréstimo que se faça agora, é o perigo da queda do câmbio, o qual, se não pode subir, em conseqüência do mecanismo da Caixa de Conversão, pode entretanto descer de novo, sem que seja dado prever a que extremo irá ter.

E se tal acontecer, não será isso a ruína da grande empresa, uma vez que a quantia necessária à construção da estrada para Santos é de 40 a 50 mil contos?

De resto, não estando ainda fixado o capital da Companhia Mogiana, empregado nas linhas estaduais; sabendo-se que há uma grave divergência, do valor de cerca de dez mil contos de réis, entre o que pretende a diretoria e o que reconhece o governo, baseado aliás nas despesas efetivamente realizadas e constantes da própria escrita da companhia, qual consta de seus relatórios; e, sendo certo que a fixação do capital poderá resultar para a companhia desde logo a obrigação de pôr em prática uma forte redução de tarifas – não é patente, não é obvio que, em tais circunstâncias, a mais elementar prudência manda sustar a execução de um empreendimento de tanta magnitude e de tão graves conseqüências e perigos?

Em 1892, é certo, possuía a Mogiana pequeno fundo de reserva e insignificantes saldos ficavam em suspenso.

Em 1909, registra o relatório que possui a companhia reservas no valor de 5.655:865$000 réis e lucros suspensos na importância de 7.689:541$309 réis, o que quer dizer recursos disponíveis no valor total de 13.345:426$309 réis.

A verdade, porém, é que toda essa enorme soma de dinheiro, à exceção unicamente da verba de 413:878$200 réis empregada em apólices, não existe efetivamente, nem em reserva, nem em suspenso, mas tão só no papel, pois certo é que, pagando a companhia o dividendo do semestre expirante, nenhum dinheiro possuirá ela em qualquer banco da praça ou de fora, nem tampouco em títulos de crédito.

Examinando o balanço da companhia, vê-se que esses fundos, em vez de se acharem de reserva ou em suspenso, como se infere das rubricas sob que estão escriturados, foram integralmente despendidos em obras e melhoramentos da linha.

Escusado será dizer que a digna diretoria, dando semelhante destino aos dinheiros do fundo de reserva, violou flagrantemente o artigo 67 dos estatutos da companhia, que manda converter e empregar todo o fundo de reserva em apólices e outros títulos garantidos pelo governo.

Para corrigir a falta em que está incursa e repor toda aquela soma nos lugares em que se devia achar, de acordo com as disposições aprovadas pelas assembléias gerais da companhia, a sua administração só poderá recorrer a um destes alvitres, mediante os trâmites legais – ou emitir ações, ou contrair empréstimo de valor correspondente.

Mas, acontecendo não estar fixado o capital da companhia para os efeitos contratuais, e havendo grande divergência a tal respeito com o governo, deverá a companhia elevar, por empréstimo ou emissão de novas ações, o seu capital?

Se a resposta não é fácil dar em condições normais, lícito nos seja pôr em dúvida que em tal emergência posas ainda a companhia cogitar de uma obra como a construção da estrada para Santos, que a envolverá em operações de crédito do máximo perigo e responsabilidade!

Por todas estas razões, parece que ninguém deixará de concordar em que, se o prolongamento a Santos é obra que um dia deverá a Mogiana empreender, contudo não chegou a oportunidade e realizá-la.

Imagem: reprodução parcial de página de Na Brecha

II

Uma obra do custo, da magnitude e responsabilidade da estrada de ferro de Mogi-Mirim a Santos, só pode ser empreendida e levada a efeito depois de plenamente justificada sob os pontos de vista da sua necessidade, da sua oportunidade e do seu completo e seguro êxito financeiro.

Em nosso primeiro artigo mostramos que, se em 1892, quando a S. Paulo Railway não chegava a dar vazão a todo o tráfego de importação e exportação do estado de S. Paulo, era lícito cogitar a Companhia Mogiana de prolongar a sua linha até Santos, como disso também cogitaram a Paulista e a Sorocabana, em 1909, depois de dobrada a estrada inglesa, depois de estar o estado de S. Paulo na posse e uso de duas magníficas vias de bitola larga para o seu tráfego internacional, perfeitamente aparelhadas para a mais pronta e cabal execução de todo e qualquer serviço que lhes possa ser solicitado, gozando ainda, sobre qualquer outra via que se tente construir entre os mesmos extremos, os privilégios incomparáveis de mais curto traçado e passagem pela capital do estado, em 1909, repetimos, nenhuma necessidade existe a justificar de qualquer modo a construção de uma terceira via férrea do interior a Santos, máxime em condições técnicas de desenvolvimento, bitola e outras manifestamente inferiores às das vias existentes.

Mostramos ainda que, além de não ser a magna obra necessária, gravíssimas razões, dizendo respeito à economia dos negócios e contratos da Companhia Mogiana, estão a mostrar que a presente situação é a mais imprópria possível para se abalançar a próspera empresa a tão ousada aventura.

Sem ter o seu capital reconhecido pelo governo, antes achando-se em séria divergência com o poder público sobre este melindroso assunto; incursa na obrigação de fazer importantes reduções de tarifas, pois que a renda apurada em suas linhas estaduais nos últimos anos monta acima de 12 por cento do capital que nelas tem sido efetivamente despendido, conforme mostram os seus próprios relatórios; estando sujeita a ver encampadas todas as linhas mais rendosas de sua rede, logo que o governo julgue conveniente ao interesse público o exercício desse direito; carecendo fazer novas e importantes ramificações em seu sistema de penetração, se não quiser ver extremamente reduzida em pouco tempo a sua zona de operações; precisando enfim por os lançamentos de sua escrita de acordo com a verdade e os estatutos, pelo que se refere aos seus fundos suspensos e de reserva, cuja soma se eleva a mais de 13 mil contos, mas apenas no papel – a Companhia Mogiana evidentemente não está hoje em condições de empreender uma obra do valor de quarenta a cinqüenta mil contos de réis, à custa de dinheiro tomado a prêmio e sujeito aos azares do câmbio, para, no fim de contas, não saber nem ao menos o que lhe será dado transportar pela nova linha e, pois, o que poderá ela render.

Esperávamos que a digna diretoria aproveitasse o ensejo do recente relatório apresentado à assembléia geral, para dizer aos seus acionistas quais as bases em que se funda para lhes garantir o êxito financeiro da linha para Santos.

Mas a honrada diretoria de tudo tratou no referido documento, menos desse palpitante assunto, como se o emprego de quarenta a cinqüenta mil contos de réis fosse coisa de nonada, que se devesse resolver assim do pé para a mão, sem a mais completa exposição e discussão de motivos, em ordem a que os legítimos interessados no negócio pudessem conhecê-lo em todo o seu fundo e alcance, e autorizar o que lhes parecesse mais seguro e de melhor proveito para a empresa.

Não há dúvida que uma assembléia geral extraordinária, reunida a 21 de março de 1893, votou os meios conducentes à execução do projeto. Mas, porventura, de 1893 para 1909, nesses dezesseis anos, não mudaram completamente, como já mostramos, as circunstâncias do grave problema?

E se a situação atual é muito diversa da anterior, sente-se a honrada diretoria com a coragem e forças precisas para – sem nova audiência e autorização dos acionistas, isto é, dos donos da empresa e, como tais, únicos a sentirem de fato os efeitos de sua boa ou má fortuna – arcar com a tremenda responsabilidade moral de um cometimento ao mesmo tempo de tamanho vulto e de caráter tão aleatório como o de que se trata, capaz por si só de fazer a ruína completa da Companhia Mogiana?

Decorrido tão longo período de tempo e dada a completa mudança da situação, em 1909 não pode deixar de estar virtualmente revogada, pela força dos fatos, a autorização conferida à diretoria em 1893, isto é, em pleno século passado, tanto mais quanto é certo que no decurso de tantos anos o pessoal de acionistas da companhia sofreu notável modificação, e, por fim, ainda sobreleva a circunstância de tratar agora a diretoria de construir uma estrada que deve partir não mais de Resaca, como a que antes fora contratada, estudada e autorizada, mas de Mogi-Mirim, que está à considerável distância de 76 quilômetros da estação inicial da rede da companhia, em Campinas.

Nem se diga que satisfaz para o caso a simples comunicação que fez a diretoria em seu último relatório à assembléia geral – de haver feito revigorar a concessão da estrada para Santos, que já havia caducado, e autorizado medidas para dar execução ao novo contrato feito com o governo da União.

Como se vê, nem a diretoria pediu à assembléia que ratificasse as medidas votadas em 1893, nem uma assembléia ordinária, como a que recentemente se reuniu, seria competente para resolver sobre tal assunto, visto envolver ele a elevação do capital social e, pois, só poder ser a matéria deliberada em assembléia extraordinária e constituída por acionistas em número que represente, pelo menos, dois terços do capital.

Em face das circunstâncias que ocorrem, é visto que a mais elementar probidade administrativa aconselha a digna diretoria da Companhia Mogiana a afetar de novo a solução do grave problema ao juízo e resolução de seus acionistas, legalmente convocados para deliberarem sobre o caso.

Os ilustres membros da diretoria srs. Bento Quirino, Carlos Norberto, visconde de Soutello, barão de Ibitinga e José Eugenio estão plena e conscienciosamente convencidos de que o lance, em que vão empenhar tão profundamente a responsabilidade da companhia, não põe em nenhum risco a fortuna de seus acionistas? Os conspícuos cavalheiros, em seu esclarecido critério, acham porventura que a colossal soma de dinheiro, que vão empregar na estrada de Mogi-Mirim a Santos, estará absolutamente resguardada, garantida, com as seguranças e cautelas que merecem as economias dos milhares de cidadãos que os fizeram depositários de sua confiança?

Pois bem, mostrem isso aos acionistas, que então ficarão tranqüilos e confiantes, e não deixarão de sancionar a resolução da diretoria, aliviando-a da grave responsabilidade que tomou sobre si.

Mas se estes, vistas as informações prestadas pela diretoria justificando a necessidade, a oportunidade e o êxito financeiro da obra, não estiverem de acordo com a sua imediata execução, preferindo adiá-la para época mais apropriada – então ainda a diretoria terá lavrado não um mas dois tentos, pois terá não só ressalvado a sua responsabilidade em tão grave emergência, como proporcionado ensejo aos donos da empresa de fazerem sua vontade em matéria que muito mais de perto interessa a eles do que a outrem.

Imagem: reprodução parcial de página de Na Brecha

III

Quando duas empresas de transporte se fazem concorrência entre dois determinados pontos, o que desde logo se pode prever e afirmar é que terá a primazia aquela que puder realizar o serviço cobrando tarifas mais baratas.

Ora, o preço dos transportes variando, em regra, na razão direta das distâncias, e, pelo que diz respeito à unidade da tarifa,na razão inversa da massa do tráfego, daí resulta que das duas linhas concorrentes estará financeiramente habilitada a cobrar tarifas mais baratas a que tiver menor percurso e mais abundantes elementos a transportar.

Apliquemos os princípios ao caso concreto de que se trata.

A linha que a Mogiana trata de construir em Mogi-Mirim ao porto de Santos, segundo os estudos feitos, não poderá deixar de ser mais longa que o atual caminho de ferro de Mogi-Mirim ao referido porto de mar, via Campinas, Jundiaí e São Paulo.

E, pois que, quanto aos elementos de tráfego, o caminho de ferro da Mogiana a Santos nunca poderá pretender transportar senão o que é originário da zona servida pela rede dessa companhia ou a ela destinado, ao passo que o outro, a linha Paulista-Inglesa, além de disputar à Mogiana esse serviço,com a vantagem de menor percurso, ainda conta com os elementos de tráfego próprios das zonas servidas pelas redes da Inglesa, Sorocabana e Paulista, que não podem ser disputados pela Mogiana, a conseqüência lógica, iniludível, é que da luta entre as duas linhas para Santos há de ser fatalmente vencedora a linha Paulista-Inglesa.

Não é preciso, portanto, aprofundar o exame da matéria, para reconhecer que a estrada da Mogiana a Santos é empresa que nasce ferida de morte, um verdadeiro aborto.

Se é esta a conclusão que resulta das condições elementares da questão, força é, entretanto, convir que, descendo á análise detalhada das circunstâncias peculiares ao regime especialíssimo de cada uma das linhas, aí é que se vai ver, na flagrante realidade dos pormenores, a completa inviabilidade do pleno em projeto.

Está ao alcance de toda a gente que uma estrada de ferro de Mogi-Mirim a Santos não terá, ao menos por muitos anos, tráfego de passageiros senão em densidade insignificante, sabido, como é, que a grande corrente de tal natureza se dirige do interior para a capital e vice-versa, assim como, em menor escala, entre a capital e Santos.

Portanto, em matéria de tráfego de passageiros, a linha de Mogi-Mirim a Santos fará muito, muitíssimo – se fizer para custear os trens ocupados em tal mister. Daí, pois, não lhe virá nenhum saldo.

Pelo que entende com o tráfego de importação, também nulo ou quase nulo será o seu trabalho, pois ninguém ignora que os múltiplos e pequenos centros de comércio do interior geralmente não importam diretamente do estrangeiro; todos eles se abastecem por via de regra em nossa capital. Aqui é que funcionam, com efeito, as grandes casas importadoras de quase tudo quanto se consome no estado; aqui é que vêm os varejistas do interior fazer sortimento para as vendas a retalho, nas localidades em que têm seus negócios.

Nestas circunstâncias, claro está que a estrada de ferro de Mogi-Mirim a Santos, que aliás nenhuma vantagem especial poderá fazer ao comércio da zona da Mogiana para mudar a ordem de coisas estabelecida, também não poderá contar com o tráfego de importação, como elemento de renda para a sua empresa.

Resta-lhe, pois, só a exportação. Mas entre os artigos que o interior produz e exporta, os materiais de construção têm seu melhor e quase exclusivo mercado nesta capital; os cereais também são remetidos de preferência para aqui, por ser este o maior centro de consumo do estado.

Que é então que resta para alimentar o tráfego da custosíssima e pesadíssima estrada de ferro de Mogi-Mirim a Santos? Resta unicamente o café. Deste mesmo artigo, porém, uma parte, como hoje acontece, tem de continuar a ser consignada necessariamente a comissários estabelecidos em S. Paulo. Fica então só a parte da safra de café que se remete diretamente com destino a Santos – como sendo o único ramo de tráfego suscetível de ser feito pela nova linha.

Eis, com efeito, o único artigo sobre que se terá de estabelecer a concorrência entre a linha de Mogi-Mirim a Santos e as linhas por onde atualmente é conduzida essa mercadoria.

Ora, evidentemente está ao alcance de toda a gente julgar e predizer que a linha da Mogiana a Santos – tendo de tirar exclusivamente do café muitos milhares de contos para prover o caríssimo custeio anual de tais serviços, tais como os da conservação do leito e obras de arte, tráfego, tração etc., e precisando ainda tirar da mesma fonte outros tantos milhares de contos para pagar os juros e a amortização do capital empregado em sua construção e aparelhamento técnico – absolutamente não poderá estabelecer tarifas módicas para o transporte do artigo, e, pois, há de ser fatalmente vencida pelas suas concorrentes.

Na verdade, como é possível que a linha inglesa, fortemente alimentada por todo o tráfego de importação e exportação da Paulista, da Sorocabana, e, além disso, pelo grosso do tráfego de passageiros e importação da zona da Mogiana, não possa adotar, para o transporte do café, pelo menos a mesma tarifa quilométrica que seja adotada pela linha de Mogi-Mirim a Santos?

Pois bem, basta que a inglesa adote a mesma tarifa quilométrica da linha de Mogi-Mirim a Santos, para que aflua para a sua estrada todo o café da zona da Mogiana, pelo simples motivo de ser o caminho atual o mais curto de quantos se possam construir do interior a Santos.

Assim, portanto, nem o café produzido em sua zona tem a Mogiana probabilidade de conduzir pela sua nova estrada! A S. Paulo Railway, constituindo o natural escoadouro dos mais ricos e abundantes elementos de tráfego do estado de S. Paulo, está por isso mesmo em condições especialíssimas de lutar com imensa e decidida vantagem com a sua concorrente, no único ramo de trabalho em que esta poderia pretender disputar-lhe a preferência.

Mas se a Mogiana não terá a transportar em sua projetada linha nem mesmo o café de sua zona, isto é, se por ali não tem de haver nenhum tráfego sensível, nem de passageiros, nem de importação, nem de exportação, a conclusão a tirar, única possível, é que na realidade dos fatos, sem fantasias nem ilusões, a empresa em que a diretoria da Companhia Mogiana está em vésperas de embarcar quarenta ou cinqüenta mil contos de réis tomados a prêmio, vai ser, indubitavelmente, o mais colossal desastre que registram os anais financeiros do nosso país.

Imagem: reprodução parcial de página de Na Brecha

IV

Depois de terem sido escritos e publicados os três primeiros artigos desta série, chegou-nos às mãos um folheto sem nenhuma assinatura, com este título:

"A Estrada de Ferro Mogiana em Santos, suas vantagens econômicas, impossibilidade de uma guerra de tarifas com a S. Paulo Railway e a Companhia Paulista".

Ainda que anônima esta publicação, garantiu-nos pessoa autorizada que o folheto foi publicado e distribuído por conta e ordem da diretoria da Companhia Mogiana, e tanto bastou para que o acolhêssemos com simpatia, lendo-o com a mais carinhosa atenção do princípio ao fim.

Rendemos homenagem à nobre intenção que certamente inspirou esse documento, acreditamos piamente na lealdade e boa fé que sem dúvida presidiram à elaboração desse trabalho, na verdade interessante sob muitos aspectos. Entretanto, a impressão dominante, incontrastável, que nos ficou de sua leitura, digamo-lo com franqueza – é que o autor não podia alinhar argumentos mais decisivos, extrair provas mais convincentes, mais esmagadoras, do completo insucesso, do irremediável desastre que será a construção da estrada de ferro da Mogi-Mirim a Santos.

De bom grado declaramos apagar tudo quanto havemos escrito sobre o assunto, pois que, para mostrar de vez a sem razão da malsinada obra, já não é preciso mais do que patentear a fragilidade e inconsistência das bases sobre que se pretende alicerçar o valioso castelo... em Espanha. E senão, vejamos.

O pregoeiro oficial das excelsas vantagens do prolongamento da Mogiana a Santos assenta todo o grandioso êxito financeiro da empresa, o sucesso, que se lhe afigura evidente, fatal, do arrojado empreendimento, numa série de hipóteses e conjeturas, que fielmente assim resumimos: sendo de 209.115 toneladas o peso médio anual do café que a Mogiana traz a Campinas e medindo 98.000 toneladas a média anual de importação baldeada em Campinas com destino à Mogiana – deverá ser, em soma redonda, de 300.000 toneladas a massa das mercadorias que hão de transitar na linha de Mogi-Mirim a Santos; admitindo que a extensão da estrada seja de 260 quilômetros e que a tarifa em média orce por uns 140 réis por tonelada-quilômetro, aí temos para a receita da empresa a quantia de 10.000:000$000 de réis; deduzindo 40 por cento desta importância, ou 4.000:000$000 de réis, para as despesas de custeio, verifica-se o saldo de 6.000:000$000 de réis, que corresponde a 12 por cento do capital empregado, no valor de 50.000:000$00 de réis.

Ao que fica reproduzido, acrescenta o autor do folheto, comentando, triunfante, o maravilhoso alcance do negócio, é textual:

"Portanto,com os argumentos mais incontroversos, com os fatos mais evidentes, quais são os dos algarismos, conclui-se que nenhuma linha do Brasil logrou construir-se em condições tais como vai se construir a Mogiana a Santos, dando renda desde o primeiro dia e seu tráfego e renda certa e indiscutida!...." (SIC).

Eis, por junto, as razões com que a digna diretoria da Companhia Mogiana manda justificar, em 1909, o dispêndio que vai fazer da enorme soma de cinqüenta mil contos de réis, fundada numa autorização outorgada no século passado, em condições completamente diversas das atuais e por uma corporação de acionistas que apenas representa uma pequena minoria dos atuais donos da empresa!

Relevem-nos os honrados diretores da Mogiana, para cujo bom senso confiadamente apelamos, dizer-lhes apenas: isto evidentemente não está certo, não está direito; não foi sobre bases tais que se levantou o grande edifício que é a Companhia Mogiana, com todo o seu formoso patrimônio de riqueza, de prosperidade e de crédito.

Em primeiro lugar, a totalidade das cargas de importação e exportação que se baldeiam em Campinas não é, não pode representar, em caso algum, a massa de mercadorias que terá a transportar a linha de Santos a Mogi-Mirim.

Pelo que diz respeito ao café, a questão depende essencialmente das tarifas das linhas concorrentes, e nós já mostramos que nesse terreno a probabilidade de vitória não está do lado da Mogiana.

Quanto à importação, também está ao alcance de toda a gente ver que – procedendo a maior parte dela desta capital, como acontece com toda a infinidade de gêneros que as fábricas e as casas comerciais aqui estabelecidas vendem para o interior – não é possível que tais artigos sejam transportados pela linha de Santos a Mogi-Mirim. E uma vez que tal não acontecerá, como incluí-los entre os elementos de receita dessa estrada?

Todavia, para argumentar, suponhamos que seja possível que os habitantes da zona servida pela rede interior da Mogiana não mais se abasteçam nesta capital, nem em Campinas; suponhamos que todos os fazendeiros, varejistas, pequenos industriais etc., passem a comprar diretamente os gêneros de seu consumo em Santos, ou, ainda mais diretamente, no estrangeiro; suponhamos mais que, depois de feitas as suas compras nesses mercados, prefiram, a despeito mesmo de serem mais baratos os fretes da Inglesa, fazer o transporte de suas mercadorias pela linha Mogiana; suponhamos, finalmente, que pelo mesmo caminho se dirija, por um capricho imprevisto, a corrente de exportação. Pois bem, ainda assim a receita da nova linha não poderia ser de 10.000:000$000 de réis como calculou o autor do folheto.

É que, por desculpável engano ou inadvertência, falta de que é sempre vítima todo o espírito avassalado por uma idéia fixa, esqueceu-se o calculista de considerar que, deixando todas as cargas de importação e exportação da Mogiana de percorrer o seu velho tronco, no trecho que vai de Campinas a Mogi-Mirim, da extensão de 76 quilômetros, o prejuízo que daí resultará para a receita ordinária da companhia será pelo menos de uns quatro mil contos de réis.

Se, pois, do fato de produzir a linha de Mogi a Santos uma receita de 10.000:000$000 de réis, infalivelmente resultaria para a Companhia Mogiana sofrer em seu velho tronco uma sangradura de 4.000:000$000 de réis, força é concluir que a receita bruta daquela ficaria efetivamente reduzida a 6:000:000$000 de réis.

Assim, mesmo aceitando os dados fantásticos do autor do folheto, quando supõe que todas as cargas que atualmente se baldeiam em Campinas passariam integralmente a constituir elementos de tráfego da linha da Mogiana a Santos, certo é que a receita da nova linha não elevaria senão apenas de seis mil contos de réis a renda geral da Mogiana, que seria a primeira a sofrer a guerra da nova concorrente.

De resto, que dizer dessa tão anti-econômica quão ingrata e despiedosa tentativa de aniquilar por completo o velho tronco do grande sistema ferroviário, matando o tráfego desses magníficos 76 quilômetros da sua artéria principal, o mais vigoroso nervo da possante estrutura econômica da velha empresa? Como qualificar o plano de cortar o grane cordão umbilical que prende toda a empresa da Mogiana à sua terra natal, a cidade de Campinas, procurando destruir de vez as relações comerciais desta cidade com toda a extensa zona servida pelas linhas da companhia, e ferir de morte este antigo centro de vida e trabalho, tirando o pão a uma considerável parte de sa classe operária, o que importaria despovoar a cidade de um forte contingente de braços ativos, de gente que produz e consome? Poderia Campinas esperar isto da Companhia Mogiana, que aliás sempre propugnou pelo bem e pela prosperidade dessa cidade?

É tempo de passarmos a discutir as despesas de custeio da nova estrada.

A diretoria da Companhia Mogiana fez publicar que a sua linha a Santos apenas gastará 40% da receita que produzir.

É outra fantasia. Não há atualmente estrada de ferro em S. Paulo, nem no Brasil, e desafiamos que se nos apresente uma só – em que a relação da despesa para a receita seja apenas de 40%.

Na S. Paulo Railway, a linha de tráfego mais intenso que possuímos, aquela portanto em que essa relação tem forte motivo para se tornar a mais favorável possível, foi ela de 50% para o último decênio. Na Mogiana, a mesma relação foi de 54% no ano próximo findo!...

Como é, pois, que se nos vem dizer que na linha de Mogi-Mirim a Santos – de construção pesadíssima, com uma série contínua de obras d'arte de conservação caríssima em toda a travessia da cordilheira marítima, e um traçado geral cortando inúmeros e importantes vales – as despesas de custeio serão tão baixas como não registra nenhuma estrada de ferro do Brasil?

Ninguém deixará de ver que há engano, e engano grave, em semelhante afirmativa. Em vez, pois, de gastar apenas quatro mil contos, a linha Mogi a Santos gastará muito mais. Não temos dados seguros, positivos, para avaliar a quanto poderá montar o total das suas despesas de custeio, mas não é difícil formar juízo aproximado do algarismo verdadeiro.

A honrada diretoria da Mogiana, que mandou publicar que a renda da nova linha seria de dez mil contos de réis, ao passo que a da S. Paulo Railway teria de ficar reduzida a vinte mil contos de réis, há de concordar em que não é nenhum exagero para mais, antes para menos, admitir que a nova estrada para Santos gaste em seu custeio apenas uma terça parte do que tem despendido a Ingleza, em média, nos últimos dez anos.

A despesa de custeio da estrada de Santos a Jundiaí tem sido de 11.500:000$000 de réis para seus 139 quilômetros, o que dá cerca de 83:000$000 de réis por quilômetro.

Admitindo que a linha da Mogiana a Santos gaste, por quilômetros, apenas uma terça parte do que tem gasto a Inglesa,  isto é, cerca de 28:000$000 de réis em algarismo redondo, temos que o seu custeio total, medindo a linha cerca de 270 quilômetros, importará em 7.560:000$000 de réis.

Ora, vimos acima que na melhor hipótese, de acordo com os elementos de tráfego imaginados pelo próprio autor do folheto, a receita não passaria realmente de 6.000:000$000 de réis; se de outro lado, as despesas de custeio terão de importar em 7.560:000$000 de réis, o resultado da exploração da linha será um déficit anual de 1.560:000$000 de réis.

E como é preciso além disso pagar os juros e a amortização dos 50.000:000$000 de réis empregados na obra, serviço que custará por ano uns 4.000:000$000 de réis, se o câmbio não descer, é visto que – sempre na melhor hipótese, isto é, supondo que percorra a linha entre Santos e Mogi-Mirim toda a massa de mercadorias de importação e exportação que atualmente se baldeia em Campinas – o prejuízo anual do aventuroso empreendimento será de uns 5.560:000$000 de réis!

Em vez de um grande saldo, um déficit pavoroso! Adorável perspectiva, não há dúvida!

Eis a dura e triste realidade da decantada renda certa, indiscutida, provada com os argumentos mais incontroversos, dando 12 por cento desde o primeiro dia de tráfego da estrada!...

Imagem: reprodução parcial de página de Na Brecha

V

A construção da estrada de ferro de Mogi-Mirim a Santos, além de ser empresa a fechar cada ano o balanço de suas operações impondo à Mogiana o prejuízo de muitos milhares de contos, ainda arrastará esta companhia a mais graves sacrifícios.

É notório que o interesse das principais empresas de viação do estado se mantém, há muitos anos, em situação de equilíbrio, perturbando completamente a economia das mais importantes empresas de viação férrea de S. Paulo, atentando enfim contra a velha ordem de coisas estabelecida há quarenta anos, é fato que muito provavelmente suscitará violenta reação da parte das companhias que se sentirem atingidas pelos efeitos da capitis diminutio que se pretende infligir-lhes.

Em toda a parte e em todos os tempos, o interesse foi essencialmente conservador, profundamente egoísta, nunca se deixado despojar impunemente. E como há casos em que, para melhor garantir o êxito da defesa, a regra de tática é atacar, não estamos longe de crer que a inoportuna, imprudente e sob todos os pontos injustificável resolução da diretoria da Mogiana, de construir agora a estrada para Santos, bem pode determinar o início de perigosas represálias exercidas contra a rede férrea dessa companhia, na zona interior por ela servida.

Com efeito, se de um dia para outro, sem razão alguma de ordem pública que o justifique, pretende a Mogiana desviar de seu antigo caminho de Campinas a Santos, seguido durante cerca de quarenta anos, as cargas de exportação e importação da zona servida por sua rede interna, causando notório prejuízo à Paulista e à Ingleza, é naturalmente de prever que estas duas companhias, no intuito muito justificável de garantir a integridade doe seu tráfego, não só hão de adotar medidas de defesa contra o esbulho de que estão ameaçadas, como procurarão se compensar de qualquer prejuízo que venham a sofrer – indo buscar em suas próprias fontes de produção as mercadorias suscetíveis de ser desencaminhadas de seu velho e natural escoadouro, isto é, esforçando-se por desviar das linhas da Mogiana,no interior, o que esta lhes tentar desviar por meio da linha de Santos, e o mesmo fazendo relativamente à importação.

Ora, infelizmente para os que têm seus interesses vinculados à boa ou má fortuna da Mogiana, não há empresa de viação em São Paulo tão vulnerável, tão exposta a ser dizimada em seus melhores elementos de tráfego, do que a rede desta companhia, como é fácil mostrar.

Pelo que diz respeito ao seu flanco direito, certo é que grande parte da zona hoje tributária da Mogiana poderá ser com muito mais vantagem servida pelo prolongamento da Bragantina a Socorro e daí a se entroncar com a rede sul-mineira. É obra essa que facilmente poderá executar a São Paulo Railway, que para isso já tem a necessária concessão.

Ainda em seu flanco direito, está sujeita a Mogiana a ser fortemente atacada pelo prolongamento da linha de Santa Rita, de propriedade da Paulista, que poderá ser levada a Córrego Fundo, estação da Mogiana, mas situada em zona privilegiada da Paulista, e daí aos municípios de Cajuru, Mato Grosso de Batatais e Patrocínio do Sapucaí. É, como se vê, uma linha extensíssima, através de zona muito rica, e da qual só o trecho de Córrego Fundo a Cajuru atravessa zona privilegiada da Mogiana.

Para se tornar patente a vantagem com que o prolongamento da linha de Santa Rita serviria esta importante região, basta dizer que pela nova estrada da Paulista os importantes municípios de Mato Grosso de batatais, Santo Antonio da Alegria, S. Sebastião do Paraíso e outros poderiam exportar os seus produtos com a economia de percurso de muitas dezenas de quilômetros, em comparação com o da linha Mogiana.

Pelo que se refere ao seu flanco esquerdo, não seria a Mogiana hostilizada com menores perdas.

É sabido que, em conseqüência da primeira tentativa que fez a Companhia Mogiana para levar sua estrada a Santos, resolveu a Paulista, no intuito de aparelhar seu plano de defesa contra aquele golpe, construir o ramal seguindo a margem direita do Rio Mogi-Guaçu até as barrancas do Rio Pardo.

É sabido mais que esse ramal se destinava a atravessar o Rio Pardo e prosseguir através dos municípios de Jardinópolis, Batatais, Nuporanga, Franca e Ituverava, e que, se parou à beira do Rio Pardo, foi porque, quando aí chegou, já a Mogiana havia adiado a execução do seu plano de ir a Santos.

Ora, voltando a diretoria desta companhia a tentar de novo a construção da linha a Santos, é de crer que a Paulista por sua vez volte a tratar do prolongamento da sua linha do Guaçu através daqueles prósperos municípios, linha que esta empresa terá o cuidado de concluir à distância de vinte quilômetros do eixo principal da Mogiana, portanto fora de sua zona privilegiada.

Nem se diga que, suscetível e ser assim terrivelmente golpeada em seus dois flancos, ao menos tem a Mogiana o centro de sua zona garantido, pois a verdade é que até à cidade de Ribeirão Preto, coração da Mogiana, pode a Paulista muito legalmente levar os seus trilhos.

Foi a própria Mogiana, não foi outrem, quem, pedindo e obtendo a concessão de prolongar a sua linha férrea até Santos, ponto servido pela São Paulo Railway, com privilégio de zona, ipso facto promoveu que se firmasse a jurisprudência que ora regula o caso.

Com efeito, estabelecido como está que de ponto servido por uma estrada de ferro, que goza de privilégio de zona, podem partir outras quaisquer linhas, contanto que não sigam a direção da linha privilegiada, nem carreguem ou descarreguem dentro da respectiva zona, é evidente que, assim como poderá a linha da Mogiana ir ter a Santos, assim também poderá a linha da Paulista ir ter a Ribeirão Preto.

Quer isto dizer que a Paulista poderá perfeitamente construir um ramal ligando a sua estação de Guatapará, da linha do Mogi-Guaçu, à cidade de Ribeirão Preto, apenas não lhe sendo lícito carregar e descarregar na travessia da zona privilegiada da Mogiana.

Não precisamos encarecer os serviços que prestaria este pequeno ramal, ligando diretamente as duas mais ricas e importantes zonas do estado, à direita e esquerda do Rio Mogi-Guaçu, e menos ainda comentar os efeitos de seu tráfego sobre a economia dos negócios da Companhia Mogiana.

Poderá, entretanto, a honrada diretoria da Companhia Mogiana alegar que, tanto quanto a Paulista procure estender suas linhas na zona à direita de Mogi-Guaçu, tratará a Mogiana de desenvolver a sua rede na zona à esquerda do mesmo rio, e que assim como a Paulista poderá ir a Ribeirão Preto, poderá a Mogiana levar os seus trilhos a Rio Claro.

Se a figura jurídica é a mesma, infelizmente para a Mogiana a sua situação técnica é muito inferior. Em verdade, ao passo que a artéria principal da Paulista é sensivelmente retilínea em toda a sua extensão, de Jundiaí até Barretos, a da Mogiana descreve imenso zig-zag, e o seu desenvolvimento é em tal grau que – sendo por exemplo de cerca de 135 quilômetros a distância retilínea entre Casa Branca e Franca – entretanto a linha-tronco da Mogiana vence-a com o extraordinário percurso de 251 quilômetros!

Um sistema ferroviário, tendo o seu eixo traçado em condições tais, é especialmente feito para sofrer a mais ruinosa concorrência de outras linhas, traçadas a seus lados, e nunca para ser capaz de lhes fazer mal.

Nestas circunstâncias, tendo tudo a perder na luta, e nada a ganhar, não é verdadeiramente deplorável que seja a Companhia Mogiana quem empunhe a mecha e procure atear a conflagração?

Imagem: reprodução parcial de página de Na Brecha (página 238)

VI

Combatendo a inoportunidade da construção da linha férrea de Mogi-Mirim a Santos, não combatemos em absoluto a execução do magno projeto.

Um sistema ferroviário com a extensão de 1.365 quilômetros, grande parte dos quais lançados através de zonas ricas e em pleno desenvolvimento cultural, tem elementos próprios para pretender coroar um dia a obra de sua expansão econômica com este complemento técnico – o seu  prolongamento até ao litoral.

É pois perfeitamente justificável a aspiração da Companhia Mogiana de levar seus trilhos a Santos; o que, porém, não se justifica é pretender a sua honrada diretoria fazê-lo agora, quando as circunstâncias francamente se não compadecem com semelhante resolução.

Que a realização da obra por enquanto é inoportuna, prova-o a economia íntima dos negócios da grande empresa, cuja situação financeira de fato está longe de combinar com a que decorre da escrita oficial, pois, ao passo que algumas rubricas de seus balanços acusam fundos suspensos e de reserva no valor total de  mais de treze mil contos de réis, a verdade é que tais fundos, como já tivemos ensejo de patentear, existem apenas no papel, com manifesta infração de expressa disposição dos estatutos sociais.

Que a realização da obra por enquanto é inoportuna, prova-o o fato de não ter ainda a companhia o seu capital reconhecido e fixado pelo governo do estado para os efeitos contratuais, não sendo de pequena monta a divergência reinante entre as duas partes, nem se podendo prever o que resultará de um tal desacordo.

Que a realização da obra por enquanto é inoportuna, prova-o a crise que há anos vem trabalhando a organização econômica do estado, atualmente reduzido à penosa e singular contingência de não poder desenvolver as plantações de seu principal gênero de produção, cuja qualidade exportável será também subordinada a determinado limite.

Que a realização da obra por enquanto é inoportuna, prova-o a esterilidade em que tem vivido e continuará a viver a maior parte da extensa região que a nova linha terá que atravessar, enquanto não se resolver, com a largueza que as circunstâncias estão a impor, o problema do povoamento do nosso solo, tão vasto, tão exuberante, mas tão à míngua de braços que fecundem seus elementos naturais de riqueza.

Que a realização da obra é inoportuna, prova-o a necessidade de promover previamente, e sem mais perda de tempo, o desenvolvimento da rede de penetração da companhia, especialmente para proteger e garantir a integridade do seu tráfego, ameaçado de graves prejuízos sobretudo dos lados do Sul de minas, do território do Triângulo, de parte do estado de Mato Grosso e do estado de Goiás.

Que a realização da obra por enquanto é inoportuna, prova-o o formidável déficit com que se fechará anualmente o seu balanço, segundo já mostramos, tendo ela a contar exclusivamente com os atuais elementos de produção da zona Mogiana.

Que a realização da obra por enquanto é inoportuna, prova-o o perigo de um empréstimo externo do valor de cerca de cinqüenta mil contos de réis, a contrair-se quando nada garante a estabilidade do câmbio nos anos próximos futuros, isto é, logo que – concluídas as obras colossais em andamento por todo o território da República, à custa de dinheiro tomado a prêmio no estrangeiro, impossibilitado o país de levantar novos empréstimos, por esgotamento de sua capacidade debitória, e recomeçado o pagamento integral do temeroso serviço da dívida pública em 1911 – a soma de dinheiro que houvermos de exportar, para satisfação dos nossos pesadíssimos encargos externos, provoque o desequilíbrio da balança dos valores contra o Brasil, como fatalmente terá de acontecer – se a sua produção, mantida estacionária, impedida mesmo de avolumar-se em seus mais importantes ramos, não lograr a fortuna de se valorizar consideravelmente.

Que a realização da obra por enquanto é inoportuna, prova-o a circunstância de não ter ainda a Companhia Mogiana tratado de unificar os contratos referentes às suas diversas linhas de concessão do governo do estado, aproveitando o ensejo especialmente para conseguir que seja prorrogado o prazo da encampação daquelas que já estão sob a ação de semelhante cláusula, bem como o das que brevemente nela incorrerão.

Esta providência é de importância capital, condição sine qua non para empreender a Companhia Mogiana a construção da estrada para Santos, sob pena de poder ficar a próspera empresa completamente arruinada, em pé de abrir falência.

Com efeito, suponhamos que a diretoria da Mogiana, surda aos protestos, obstinada em sua resolução, leva a efeito desde logo a linha para Santos, sem negociar com o governo do estado a unificação dos seus contratos antigos e a prorrogação do prazo para a encampação das respectivas linhas até Ribeirão Preto. Poderá fazê-lo, não há dúvida. Mas também o que não padece dúvida é que, uma vez concluída a estrada para Santos, ou ela deslocará o movimento do trecho de Campinas a Mogi-Mirim ou não deslocará.

Se não deslocar, estará perdida a Companhia Mogiana, porque para prover as despesas de custeio da linha de Santos e dos juros e amortização do capital empregado na sua construção, terá de rebentar os saldos de sua rede antiga. Se, porém, conseguir ela encaminhar para a nova linha, como é sua esperança, toda a corrente de importação e exportação que hoje baldeia em Campinas, que acontecerá?

Evidentemente, a nova estrada produzirá um desfalque na receita da empresa antiga, no valor de uns quatro mil contos ou cerca de 50 por cento de sua renda líquida.

Isto já será um grande desastre, mas há coisa muito mais grave a poder sobrevir.

Suponhamos que alguns anos depois de ter a Mogiana entrado em semelhante regime, cinco anos, por exemplo, a contar da data em que a antiga rede estadual tenha começado a sofrer o prejuízo de 50 por cento em sua renda líquida, lembre-se o governo do estado de fazer valer o seu direito de encampar as linhas da Mogiana de Campinas a Ribeirão Preto, compreendidos todos os ramais respectivos.

Como o preço da encampação será regulado pela renda média do qüinqüênio, e esta se achará deprimida de 50 por cento, em virtude do desfalque causado pela linha de Santos, não é evidente que o governo do estado poderá então adquirir toda a rede em questão por metade do preço que seria forçado a pagar se não fora aquele desfalque?

Para calcular o prejuízo que daí resultará para os acionistas da Mogiana, basta considerar que a diminuição da renda de sua linha-tronco orçando em cerca de quatro mil contos, e o governo fazendo o pagamento das linhas encampadas em apólices, digamos, de 5 por cento, a perda da companhia será de oitenta mil contos de réis!

Como se vê, isto agora já não é só um grande desastre, é deveras, conforme acima dissemos, coisa mais grave; infelizmente, porém, não é tudo, ainda há coisa pior a acontecer.

Suponhamos que o governo do estado, depois de haver encampado a estrada de ferro de Campinas a Ribeirão Preto e respectivos ramais, de concessão estadual, no intuito de apurar as maiores vantagens possíveis em matéria de tarifas, põe o respectivo arrendamento em concorrência pública e então é preferida a proposta que porventura fizer a Paulista ou a Ingleza. Que resultará do fato?

Naturalmente, as tarifas, que a Paulista ou a Ingleza aplicará à linha arrendada, serão de molde a fazer que o tráfego de toda a zona interior da Mogiana volte ao seu leito antigo, deixando verdadeiramente na espinha a linha de Mogi a Santos.

Pois bem, na dura emergência, que recursos restarão à Mogiana para prover as despesas do custeio dessa linha e pagar os juros e amortização do capital empregado em sua construção? É claro que, para fazer face a tais encargos, ela só terá então disponíveis os juros das apólices provenientes das linhas encampadas, aliás na base reduzida que há pouco vimos, e os saldos insignificantes de sua rede além de Ribeirão Preto, recursos evidentemente insuficientes para os pesadíssimos compromissos a satisfazer.

Em última análise, portanto, desaparecerá toda a renda da companhia na voragem cavada pela estrada para Santos, acabando os seus credores por chamar a si os remanescentes da fatal aventura.

Fúnebre, no fim da triste jornada, o painel que reproduzisse o gênio tutelar da grande empresa, decaída da opulência de tantos anos em plena bancarrota, apostrofando o seu ilustre presidente, sr. coronel Bento Quirino dos Santos, como fez aquela conhecida personagem histórica – Varro! Varro! Que fizeste das minhas legiões?!...

Mas, ainda bem que tal não há de acontecer. O honrado presidente e seus dignos companheiros de diretoria, a quem a Companhia Mogiana deve tantos e tão assinalados serviços, hão de certamente conduzir esta questão ao seu natural desfecho, com lustre para os seus nomes e proveito para a causa dos que os constituíram depositários de sua inteira confiança.

É o que, de resto, não custará muito conseguir. Basta que, terminados os estudos da nova linha e elaborado o respectivo projeto, mande a diretoria arquivá-lo até que, tomadas todas as medidas que se recomendam como preparatórias e indispensáveis para garantir o êxito do grandioso cometimento, e finalmente chegada a época propícia à realização da obra, seja esta levada a efeito com a segurança e o sucesso que sinceramente lhe desejamos e bem merece a Companhia Mogiana, uma das mais fulgurantes jóias do patrimônio industrial de S. Paulo.

Imagem: reprodução parcial de página de Na Brecha

[*] Artigos publicados no Estado de São Paulo em 1909.

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