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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares - BIBLIOTECA NM
O navio-prisão (4-A)

Clique na imagem para voltar ao índice do livroUma das páginas negras da história santista

 

Este é o texto integral do livro de Nelson Gatto, que a censura do regime militar mandou apreender e destruir. Um raro exemplar remanescente foi cedido a Novo Milênio para esta edição digital, pelo jornalista Carlos Mauri Alexandrino, em 2012.

Impresso pela paulistana Edimax, com 154 páginas e capa de Wilson Cocchi, sem data (foi escrito e apreendido em 1965), tem agora sua primeira edição digital (com ortografia atualizada nesta transcrição):

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RAUL SOARES

Navio presídio

A outra face da "Revolução"

Nelson Gatto

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[Contracapas]

 

Navio presídio

Este livro se insere no número dos depoimentos necessários. Ao ser desfechado o golpe militar de 1º de abril de 1964 - também conhecido pelo eufemismo de "Revolução de 31 de março" - o jornalista Nelson Gatto exercia o cargo de chefe do departamento de repressão ao contrabando em São Paulo.

Fiel ao governo constituído, num momento em que tantos traíam ou se acovardavam, fez tudo o que esteve ao seu alcance para defender a legalidade brutalmente ameaçada, na área de sua jurisdição. Por isso mesmo, foi considerado "subversivo" pelos subversivos, perseguido encarniçadamente e finalmente preso e recolhido ao navio-presídio Raul Soares, surto no porto de Santos.

O presente livro narra, precisamente, a história de seu encarceramento, as provações que precisou arrostar, as provocações sobre ele desencadeadas, as cenas de selvageria e de sadismo a que assistiu, as humilhações e o martírio anônimo de muitos dos seus companheiros de prisão. Isto tudo em nome da "Revolução saneadora e redentora"...

O livro de Nelson Gatto mais uma vez vem provar como são cruéis e detestáveis os fariseus que, em nome de Cristo, de Deus e da Família, organizam marchas de "mal amadas" e o assalto ao poder, para depois revelar toda a sua hediondez numa das repressões mais desvairadas e inúteis de que se tem notícia neste país.

Com efeito, qual o saldo de todas as perseguições movidas pelos beneficiários do golpe militar: No capítulo da corrupção, a quartelada teve de cortar na sua própria carne, pois não apenas em São Paulo, como no resto do Brasil, foram precisamente conhecidos figurões da política conservadora que caíram nas malhas de diversos IPMs (N. E.: IPM - Inquérito Policial Militar). No campo um pouco mais elástico da "subversão", o que também se apurou foi de uma pobreza franciscana, deixando muito mal colocado o desfrutável udenista Bilac Pinto, que anunciava, em tom apocalíptico, o preparo de uma "guerra revolucionária" no estilo de Fidel Castro e Mao Tse-Tung (N. E.: líderes respectivamente em Cuba e na China continental)...

Mas - dir-se-á - não julgam os melhores observadores do momento político que a "Revolução é irreversível" e que, ao comemorar o seu primeiro aniversário, o seu resultado é absolutamente positivo? Sim, isto é dito em termos grandiloquentes, mas não passa de má literatura de péssimos escribas, que jamais souberam viver fora do bafejo dos poderosos e que bitolam o seu elogio a tanto por linha.

Na verdade, a que se reduz esse saldo? À "manutenção da ordem" e ao "combate à anarquia". A nada mais! Dizendo-se reformista, o governo da quartelada ainda não concretizou, a não ser no papel, uma única reforma digna desse nome. Mas foi fulminante em outro plano, qual seja o de executar as ordens de seus patrões imperialistas, destroçando praticamente a lei da remessa de lucros, entregando os minérios brasileiros à Hanna, comprando o ferro velho da AMFORP, alienando a soberania nacional na esfera da política exterior.

Esse esquema entreguista completa-se, num quadro dos mais sombrios, com as fórmulas impostas pelo Fundo Monetário Internacional à tarefa de julgamento da inflação - fórmulas levadas à prática pelo Torquemada das Finanças que responde pelo nome de Roberto de Oliveira Campos.

De nada valeram as advertências de que a simples estabilização de preços daria, de algum modo, "justificativa histórica" à quartelada de 1º de abril, mas que esses métodos já haviam malogrado inteiramente na Argentina, para citar apenas o exemplo mais próximo a nós, no tempo e no espaço. O FMI exigia essa tremenda terapêutica, como condição sine qua non para permitir uma fecunda irrigação de dólares, com o qual se reergueria em breve tempo a economia brasileira.

Não será demais repetir que os empréstimos prometidos não vieram e que o povo brasileiro está sendo levado ao desespero e à miséria. Em primeiro lugar, coube ao proletariado e a todos os milhões que vivem de ganhos fixos, suportar esse tratamento, que lhes arranca os olhos e a pele. Mas isso não é tudo. A própria indústria brasileira sofre agora os efeitos da mesma medicação, e estrebucha indignada, clamando que não merece provação tão injusta, pois foi "revolucionária", "temente a Deus", que esteve presente às "marchas", que acha o marechal Castelo Branco um "homem cem por cento" etc. etc....

De nada tem valido, contudo, o alarido dessa angústia. Os métodos inquisitoriais, na esfera das finanças - simétricos aos da repressão policial - prosseguem implacáveis. "A dieta é tal que matará o enfermo", alguém já adiantou. Mas esta observação ainda parte de um pressuposto que hoje, aparentemente, já foi superado. A imagem da dieta que mata o doente ainda se vincula à ideia de que há na orientação financeira um fundo de boa intenção, embora o tratamento seguido seja contraindicado. Mas a estas alturas acorre o Torquemada das Finanças, e esclarece que a coisa tem que ser assim mesmo, que a destruição da indústria brasileira não procede de um mal entendido, pois o crack, que já começou, representará uma necessária "limpeza do terreno"... Naturalmente, no campo, só ficarão de pé as empresas estrangeiras!

Eis a "Revolução redentora", cujas primeiras façanhas em São Paulo, desenroladas nos soturnos porões do Raul Soares, o jornalista Nelson Gatto, que sempre se revelou um modelo de hombridade e de coragem, narra com o seu indormido espírito de repórter. Trata-se, sem dúvida, de aspectos parciais da quartelada, em área necessariamente reduzida, mas que bastam para autorizar estas rápidas generalizações de julgamento.