Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0181d08.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/30/12 20:06:17
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares - BIBLIOTECA NM
O navio-prisão (4-H)

Clique na imagem para voltar ao índice do livroUma das páginas negras da história santista

 

Este é o texto integral do livro de Nelson Gatto, que a censura do regime militar mandou apreender e destruir. Um raro exemplar remanescente foi cedido a Novo Milênio para esta edição digital, pelo jornalista Carlos Mauri Alexandrino, em 2012.

Impresso pela paulistana Edimax, com 154 páginas e capa de Wilson Cocchi, sem data (foi escrito e apreendido em 1965), tem agora sua primeira edição digital (com ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 93 a 110):

Leva para a página anterior da série

RAUL SOARES

Navio presídio

A outra face da "Revolução"

Nelson Gatto

Leva para a página seguinte da série

Torturado

Depois da revoada dos cupins, custamos muito para dormir novamente. Levantamos de mau humor quando a sirene começou a tocar pouco depois das 6 horas. Hércules Boucher esquecera de tomar sua dose de cortizona na noite anterior e queixava-se de fortes dores na espinha. Quase não podia sentar no catre.

O enfermeiro da Marinha esteve em nosso xadrez, olhou o doente e, sem saber o que fazer - era uma doença complicada, disse - prometeu arrumar comida especial para o advogado vegetariano. Mas ficou apenas na promessa.

As celas continuavam fechadas à chave dia e noite. Durante todo o tempo em que estive recolhido no navio Raul Soares, ali existiu o confinamento celular. Os cárceres só eram abertos para o café da manhã, o almoço e o jantar, quase sempre sopa feita com os restos da manhã.

Os que conheceram o infecto barco, conheceram também o abismo da degenerescência humana.

Todos os xadrezes, dia e noite invadidos pelo fedor das secreções das imundas privadas coletivas e da comida deteriorada joada no mar. Milhões de moscas e mosquitos a enxamear no casco por onde escorria comida podre.

Promiscuidade. Desconforto. Imundície.

A ausência da lei a todos revolta. A prepotência é a única lei que os oficiais da Marinha parecem conhecer.

O Brasil atravessa uma fase desgraçada.

Ninguém sabe quem é culpado de quê.

A maioria dos presos não foi, sequer, interrogada. Nenhum processo com nota de culpa formada. Brasileiros obrigados a viver sob o regime da coação, da aberração jurídica, da violência. Dezenas de operários de Santos, detidos para averiguação, com promessa de serem postos em liberdade imediatamente caso não ficasse demonstrada sua participação numa "conspiração comunista", encarcerados há mais de seis meses, sem serem, ao menos, interrogados.

Antes mesmo de serem ouvidos, os sargentos do Exército, da Aeronáutica e da Força Pública enclausurados no navio foram punidos: perderam seus direitos políticos, foram demitidos ou reformados das Forças Armadas.

Da Base Aérea de Santos e do Dops de São Paulo, continuam chegando mais presos com sinais evidentes de tortura.

Ninguém, fora, fala nas condições desumanas em que são mantidos os encarcerados. Aterrorizada, a nação em silêncio espera por um movimento que venha colocar paradeiro à imbecilidade em que mergulharam o Brasil.

Ao anoitecer, alguns guardas abriram intempestuosamente a porta de nosso xadrez e retiraram Hércules Boucher. Não informaram se ele seria posto em liberdade ou enviado para a Base Aérea de Cumbica. Caminhando com dificuldade, em virtude da doença na espinha que se agravou na prisão, lá se vai o nosso bom Hércules, capengando, vigiado por vários guardas armados de metralhadoras. Desde o começo da tarde estava triste e agitado com a notícia que lhe dera um guarda que o acompanhou ao banheiro: sua esposa encontrava-se no cais do porto, e insistia junto às autoridades da Marinha para que lhe entregassem alguma roupa e algumas frutas, não conseguindo, contudo, ser atendida.

Logo depois da retirada do advogado, a porta se abriu novamente e deu entrada um novo preso: Oiapóque Coutinho, agente fiscal do Imposto de Rendas, que acabava de chegar da Base Aérea de Cumbica, onde fora torturado moral e fisicamente. Fez logo amizade conosco e foi contando:

"Estive vários dias preso em Cumbica. Ali, nem fumar nos deixavam. Jogavam água no cimento para que não deitássemos para dormir. Hoje, puseram-me, juntamente com mais dez companheiros, num avião que nos transportou para a Base Aérea de Santos e dali fomos enviados para o navio. Isto aqui, até parece um paraíso comparado à Base Aérea de Cumbica. Pelo menos, existe um colchão imundo para se deitar..."

Com a roupa imunda e a barba há dias por fazer, Oiapóque procurava desamassar a roupa amarfanhada com a qual dormira no cimento de Cumbica vários dias. Funcionário público federal há mais de trinta anos, já com tempo para se aposentar, foi nos explicando sua prisão:

"Fui preso ao sair de casa por uma patrulha da Aeronáutica. Não deixaram, sequer, que eu apanhasse uma escova de dente. Fui colocado num carro do Dops e levado para a Base Aérea de Cumbica. Durante vários dias me interrogaram, perguntando sempre a mesma coisa: quanto dei em dinheiro para a campanha eleitoral do sr. Ranieri Mazzili, presidente da Câmara Federal, e para o deputado Ulysses Guimarães, políticos que sempre foram auxiliados, em época de eleições, pelos fiscais do Imposto de Rendas. Os oficiais da Aeronáutica batiam sempre na mesma tecla: que eu confessasse ter dado dinheiro aos dois políticos paulistas, pois do contrário jamais seria posto em liberdade. A coação física e moral é tanta, que os mais fracos assinam qualquer documento que lhes seja apresentado".

Na manhã seguinte, mal a sirene despertara os presos, nossa cela foi aberta por um sargento da Polícia Marítima. O graduado, de nome Juca, colocou uma vasoura em minha mão e mandou que eu fosse lavar o corredor. Entregou um balde ao médico Thomaz Maack e uma outra vassoura a Oiapóque. Os dois se dispuseram logo a obedecer. Ainda com sono e mal-humorado, em virtude da miserável noite passada em que não consegui dormir meia hora seguida por causa do frio e da falta de um trapo para me servir de coberta, fiquei parado, encarando o sargento, de semblante fechado. O policial berrou para que eu me mexesse. Respondi que não iria lavar navio nenhum. O sargento insistiu aos gritos. Indignado, respondi que poderia lavar sua avó...

Juca afastou-se em passos largos e retornou logo depois acompanhado por uma patrulha de sua corporação e pelo oficial de dia do navio, tenente Bertola. O militar da Marinha de Guerra estava bastante agitado. No dia anterior, quando fazia a ronda pelo navio, de arma em punho, assustara-se com sua própria sombra ao passar por um corredor e acionara o gatilho. O tiro causou grande alvoroço no navio mas, felizmente, ninguém se feriu por não se encontrar na trajetória da bala.

O oficial olhou-me longamente, e com nervosismo na voz, intimou-me a obedecer. Insisti em que era preso político e que jamais faria qualquer trabalho forçado, mesmo sob ameaça de ser fuzilado e jogado ao mar, coação usada a cada instante por nossos carcereiros.

O tenente se empertigou, perdeu a calma e passou a esbravejar ameaças. Thomaz Maack, que a tudo assistia, de balde na mão, tentou contornar a situação. Explicou ao oficial que eu estava nervoso, que ele tivesse tolerância, que ele, médico, faria a minha parte no serviço. Não gostei da intromissão e respondi bruscamente:

"O senhor não deve lavar navio nenhum. É um médico, um professor universitário. Atire o balde na cara dessa gente..."

O oficial gritou que eu seria trancado no "El Moroco". Dei de ombros. Respondi que podiam me deixar a vida inteira na solitária mas jamais me humilhariam fazendo lavar o navio. Voltando-se para os homens da Polícia Marítima, o tenente ordenou:

"Podem jogá-lo no 'El Moroco'!"

De cabeça erguida, segui os guardas pelo sombrio corredor. "El Moroco" era um calabouço ao lado da caldeira, inteiramente de ferro, onde o calor é insuportável. Mas seria melhor que o "Night and Day", oura cela onde o preso fica sempre com água pelos joelhos, ou o "Casablanca", que é onde jogam as fezes dos presos.

Com grande ruído provocado por fechos de ferro, uma porta se abriu e os soldados da Polícia Marítima ordenaram-me que entrasse. Sem hesitar, desci por uma estreita escada de ferro à prumo. Desci cerca de oito metros até chegar a um porão escuro, de ar quente e pesado. Alguém atirou de cima um grande bule - igual ao que usam para servir café aos presos:

"É para suas necessidades fisiológicas..."

A porta se fechou com estrondo e ouvi a chave girar na fechadura. Tudo ficou na mais completa escuridão. O calabouço tinha uns 8 metros de comprimento por uns 4 de largura. Não havia ventilação ou iluminação. Tateando no escuro, percebi que todas as paredes, bem como o chão, eram de placas de ferro. Andei de um lado para outro. Nem uma réstia de luz em nenhum canto.

Quando comecei a me habituar à escuridão, senti que suava abundantemente e a calça começava a grudar no corpo. O calor devia ser acima de 40 graus. Tirei toda a roupa, escolhi um canto onde a chapa de ferro era menos quente e deitei. Antes de começar a cochilar, com o estômago doendo de fome, meditei algum tempo sobre a "revolução" e o grupo poderoso em armas mas fraco em ideias que tomara o poder de assalto. Em meu entender, as injustiças, as violências cometidas em nome da "revolução", não me parecem de boa inspiração divina e democrática.

"Revolução"...

"Revolução" que cassou os direitos políticos de um homem como o deputado Cid Franco, uma das criaturas mais puras e íntegras que já militou na política brasileira, sob alegação de que ele é socialista e quer o bem-estar do povo.

"Revolução"...

Pensei nos roubos praticados em nome disso que chamam de revolução. Não sei por que motivo me veio à cabeça o caso de Antônio Ágio, da Delegacia do Trabalho. Foi preso e conduzido ao Dops para ser interrogado. Já respondia de há muito as perguntas formuladas pelos investigadores quando a porta se abriu para dar entrada a um delegado que foi logo dizendo, fingindo espanto e intimidade:

"Ué, Ágio, você aqui? O que aconteceu? Venha até minha sala, vamos ver o que posso fazer em seu favor."

O funcionário encarou o delegado e viu logo que jamais o tinha visto anteriormente em sua vida. Levantou-se e acompanhou a autoridade. Explicou que não sabia por que tinha sido preso. O delegado ouviu tudo em silêncio, assentindo com a cabeça. Depois, disse:

"Olhe Ágio, vou ver se posso ajudá-lo. Mas estou com um problema e você terá também que me ajudar. Preciso de uns 20 mil cruzeiros para comprar um presente para minha filha que vai se casar. Você pode me arrumar o dinheiro?"

Ágio disse que não tinha tal importância consigo, mas que poderia dar um cheque. Tão logo o preencheu, foi posto em liberdade. Talvez esse tenha sido o seu erro, pois o delegado facilmente ficou sabendo que possuía um depósito no banco de 620 mil cruzeiros.

Dias depois, foi preso novamente. Outra vez o mesmo delegado se dispôs a "quebrar o seu galho", mediante "empréstimo" de 100 mil cruzeiros. Ágio preencheu novo cheque. A operação se repetiu mais cinco vezes, até que o funcionário esgotou seu saldo no banco. Depois de extorquir os 620 mil cruzeiros do "suspeito" de atividades subversivas, o delegado mandou prendê-lo novamente. Queria mais 100 mil cruzeiros. Ágio se indignou:

"Mas, doutor, eu sou um simples funcionário público. Não tenho mais dinheiro. Já lhe entreguei os seiscentos e vinte mil cruzeiros que constituíam as minhas economias. Não tenho mais nada!"

"Não, Ágio - retrucou o delegado - você não me deu o dinheiro. Apenas me emprestou. Um dia eu pagarei. Você tem um Volkswagen. Venda o carro".

Antônio Ágio se revoltou. Sentiu uma opressão no peito e lágrimas nos olhos. Com voz embargada, respondeu:

"Não, senhor delegado, não venderei o carro. Eu o comprei com sacrifícios para levar minha esposa e minha filha a passeio. Não venderei e não lhe darei mais dinheiro..."

Foi levado para a sala ao lado e, a seguir, posto em liberdade com promessa de que não seria mais molestado, pois, estava provado que ele não era subversivo...

Adormeci. E cheguei mesmo a começar a sonhar com o pobre Ágio que, como centenas de outras pessoas, foi vítima de extorsão nos dias em que o terror passou a dominar o país. Quando despertei, não sei porque, pensava nos homens que fizeram a "revolução".

Meu pensamento se fixou no general Amaury Kruel, comandante do II Exército, cuja atuação foi decisiva no movimento armado de 31 de março. Elemento de inteira confiança do presidente deposto, que gozava de sua intimidade, não estaria arrependido de sua atuação? Um mês depois da deposição do Governo, já não estava com a força natural de um comandante de Exército. Se estivesse, permitiria o que aconteceu a seu amigo José Filadelfo Machado Filho?

Filadelfo Machado, um milionário de São Paulo, amigo do sr. João Goulart, reside num luxuoso apartamento da Rua São Luís. Logo depois da "revolução", palestrava com o general Amaury Kruel, que fora visitá-lo em seu apartamento, quando a campainha tocou. Era uma patrulha do Exército e elementos civis da 2ª Auditoria de Guerra, com ordem para prendê-lo.

O oficial que comandava  a pequena força desculpou-se junto ao general Kruel e efetuou a prisão, o que provocou violentos protestos por parte da esposa de um delegado da Guanabara, senhora que na ocasião também se encontrava no apartamento.

Sob as vistas do comandante do II Exército, Filadelfo Machado foi levado preso para um quartel do Parque Dom Pedro II. O prédio, antes de ser dependência militar, funcionou como lazareto e, posteriormente, como hospício. Celas em que um homem só pode entrar abaixado - rotundas onde eram trancados os loucos acometidos de acessos de fúria - ainda ali existem. Pois, foi num desses buracos que, nos dias mais frios do ano, trancafiaram Filadelfo Machado, vestido apenas com uma cueca. Saía uma vez por dia para ser interrogado. Urinava deitado, dentro de uma garrafa que enfiavam pelas grades. Ficou 23 dias preso, 16 dos quais no túnel de cimento. E era amigo do general Kruel, um dos esteios da "revolução"...

Não sei quanto tempo fiquei caminhando de um lado para outro no cárcere escuro. Nem água me davam. Sentia a boca seca, uma dor cada vez mais profunda no estômago que há dias não via qualquer alimento sólido. Não sabia quanto tempo aguentaria sem desmaiar. Mas não pediria nada aos bravos carcereiros da Marinha de Guerra do Brasil. Suportaria o tempo que fosse necessário naquele inferno. Pois o Waldemar Guerra, presidente dos portuários, não aguentara 16 dias no "El Moroco"? E não saíra rindo na cara de seus algozes?

Waldemar Guerra fora violentamente espancado e depois atirado no "El Moroco" apenas porque dissera que nem mesmo os prisioneiros de guerra eram tratados pelos nazistas como os brasileiros no navio-presídio, em sua própria pátria. Ele fora expedicionário e ao alegar que lutara para construir um mundo melhor, agrediram-no e atiraram-no no calabouço.

Não, eu aguentaria. Pois, Ascendino Vieira, jovem advogado santista, não fora colocado durante longos dias no cárcere sufocante, dali saindo com ânimo firme? Eu aguentaria, nem que ali ficasse a vida inteira.

Não sei quanto tempo se passou, até que ouvi o ranger da chave na fechadura em cima. A pesada porta se abriu ruidosamente e uma réstia de luz clareou o meio do compartimento. Um homem, com cuidado para não cair, desceu vagarosamente a escada. Por mais que se esforçasse, não conseguia ver onde eu estava. Mesmo no escuro, já com os olhos acostumados à penumbra, reconheci o tenente Orlando Quintanilha, da Polícia Marítima.

O oficial chamou por meu nome. Respondi e ele se dirigiu na direção de minha voz. Dei dois passos para a frente e fiquei sob o feixe de luz que entrava pela porta aberta em cima. Colocando a mão sobre meu ombro, em tom amistoso, Quintanilha me disse calmamente:

"Infelizmente, nada posso fazer por você. Nada, materialmente, pois espiritualmente farei uma prece. Se isto o conforta, quero que saiba: se eu estivesse em seu lugar, também agiria como homem e me recusaria a lavar ou varrer o navio. Eu e minha esposa estamos acompanhando seu caso com grande interesse, pois conhecemos, através de jornais e da televisão, sua luta pela moralização da coisa pública. Somos espíritas e esta noite rezaremos por você".

Apertou-me a mão e retirou-se. Senti como que um bálsamo cair em minha alma. Sim. Eu aguentaria.

Tentei dormir novamente. O calor sufocante não me deixava fechar os olhos. A porta, em cima, não se abriu mais uma única vez. Vez ou outra, alguém levantava o pequeno postigo de ferro e procurava me enxergar embaixo, o que era impossível, devido à escuridão reinante. Fiquei esquecido dos responsáveis pelo navio. Nem café, nem comida, nem água. Democracia cristã.

Não sei quanto tempo permaneci trancado no "El Moroco". Estava deitado numa chapa de ferro menos aquecida, completamente nu, quando ouvi a chave ranger na fechadura. Olhei para cima. Barulho de ferrolhos destravados. De repente, a porta se abriu completamente e a luz me fez levar, instintivamente, ambas as mãos aos olhos. O tempo que permaneci no escuro não permitia que eu enxergasse qualquer coisa na claridade. Ouvi, no entanto, perfeitamente, quando alguém ordenou:

"Pode subir. Vai ser levado à presença do imediato".

Lentamente, vesti a calça e a camisa. Subi a escada vagarosamente, com cuidado. Ao chegar em cima, novamente levei as mãos aos olhos, que doíam ao contato com a luz. Quando comecei a enxergar, divisei em minha frente um negro gigantesco, de uns dois metros de altura, que me conduziu à presença do imediato. Caminhei meio tonto pelo corredor úmido e escuro e, depois de subir dois lances de escada, vi-me na frente do tenente Figueiredo. Permaneci em pé uns cinco minutos ignorado pelo oficial. Por fim, me encarando de sobrolho cerrado, disse rispidamente:

"Você é o único preso sobre o qual venho recebendo reclamações. Não quer comer, recusa-se a lavar o navio e responde para os oficiais. Que seja a última reclamação que recebo a seu respeito, pois, do contrário, vamos enviá-lo ao Dops para ser torturado até aprender a respeitar as forças armadas".

Cheguei a abrir a boca para dizer que nada me faria mudar de opinião: podiam me deixar a vida inteira no calabouço ou me torturar no Dops, mas não me fariam lavar o navio. O imediato não permitiu que eu dissesse uma única palavra:

"Estou falando - berrou - e não admito que preso interrompa. Guarda, leve-o de volta ao xadrez".

Controlando o ódio, acompanhei o soldado à minha cela primitiva. O médico e o fiscal receberam-me carinhosamente. Apertaram minha mão e me deram tabletes de chocolate e um pedaço de doce de banana que o médico recebera na véspera. Não via a esposa há mais de 100 dias, mas todos os sábados dona Isa enviava-lhe um pacote com doces e um queijo.

Ao anoitecer deste dia, o sexto que passei encarcerado, o tenente Bertola, acompanhado por um grupo de policiais da Marítima, armados de metralhadoras, esteve em nosso xadrez. Mandou que os soldados se afastassem e, em presença de Thomaz maack e de Oiapóque Coutinho, disse algumas palavras que o elevaram ante meus olhos:

"Quero lhe dar uma explicação. Eu o coloquei no "El Moroco" contra minha vontade. Se assim não agisse, estaria desprestigiando o sargento da Polícia Marítima e não mais teria força moral sobre ele. Se não lhe desse um castigo, como poderia continuar dando ordens ao sargento desautorado?"

Dito isso, o oficial se retirou. Comentávamos sua atitude quando a porta foi aberta novamente. Um grupo da Polícia Marítima vinha buscar Oiapóque Coutinho, para colocá-lo em liberdade ou transferi-lo novamente para a Base Aérea de Cumbica.

Nessa mesma noite, os oficiais do Raul Soares decidiram me manter em completa incomunicabilidade. Para ocupar meu catre imundo na cela em que o médico era o primitivo inquilino, enviaram o portuário Manoel de Almeida. Fui transferido para o xadrez nº. 9. Um cubículo pequeno, imundo, úmido e fedorento onde eu mal podia ficar em pé. Permanecia deitado dia e noite, sobre um colchão sujo e molhado. Ninguém, nem mesmo os guardas, podia trocar uma única palavra comigo. Na hora do café, do almoço ou do jantar, os oficiais da Marinha montavam um policiamento especial para impedir-me de conversar ou trocar sinais com outros presos.

Meu novo xadrez, além de não ter qualquer ventilação, também não possuía iluminação. Durante o dia, pelas frestas da porta do corredor e pela grade colocada na vigia, entrava alguma luz, e eu ficava na semipenumbra. Depois das 17 horas, no entanto, a escuridão se tornava completa.

No primeiro dia, não consegui cerrar os olhos. O colchão úmido e imundo, cheio de pulgas e percevejos, cheirava a mofo e a comida azeda, o que me embrulhava o estômago. A despeito do frio que fazia, não me deram uma única coberta. No xadrez anterior, eu tinha a metade de um lençol de solteiro que, mesmo com furos, sempre servia para cobrir parte do corpo durante a noite. No novo "alojamento", não me deram um único pedaço de pano. O frio não me deixava cochilar sequer cinco minutos. Embora completamente vestido, doíam-me os ossos e o queixo tiritava seguidamente. Sentia a umidade que subia do colchão chegar até os ossos.

Alta noite, ouvi passos no corredor. O grande silêncio foi quebrado pelos homens que faziam a revista dos presos, o que ocorria todas as madrugadas. Antes de abrirem a porta de meu xadrez, ouvi como que uma discussão do lado de fora. Posteriormente, descobri o que acontecera. O tenente Hugo Freitas Alves - oficial da Marinha de quem o médico Thomaz dizia sempre não saber no navio quem era mais asqueroso: as colheres imundas ou ele - fazia a revista acompanhado por um grupo de policiais da Marítima. Revista normal, que se repetia todas as madrugadas, em todos os xadrezes. Faziam o preso acordar, olhavam embaixo do colchão e a seguir se retiravam satisfeitos por não terem encontrado qualquer arma que ameaçasse a segurança do navio.

Temiam sempre que algum preso pudesse ficar de posse de uma gilete que passavam de xadrez em xadrez aos sábados para que todos se apresentassem barbeados ás suas visitas. Nessa noite, o tenente quis fiscalizar antes o guarda que devia estar de serviço na porta de minha cela. Mandou que os componentes da patrulha que o acompanhavam ficassem para trás e, pé ante pé, caminhou pelo corredor sinistro. Sua sombra alongada se projetou à distância e o guarda de serviço, Nicomedes, percebeu o que ocorria. Vagarosamente, levou a mão ao coldre, abriu a cartucheira e retirou o revólver. Quando o tenente saiu do escuro, surgindo de repente em sua frente, engatilhou a arma em seu rosto. O militar pulou assustado, gritando:

"O que é isso? O que é isso?"

Calmamente, enquanto ia guardando o revólver, certo de ter dado uma lição no oficial, o policial da Marítima se desculpou:

"Não é nada não, tenente. Eu me assustei com o senhor. Peço não repetir mais isso, pois do contrário poderá levar um tiro..."

O oficial abriu minha cela e atirou para dentro a luz de sua lanterna portátil, vasculhando as trevas em todas as direções. Por fim, jogou o foco de luz sobre a cama e ficou me olhando demoradamente. Sorriu ao ver que eu estava sentado, sem conseguir dormir em virtude do frio cortante. Não proferiu uma única palavra. Acendeu o cachimbo vagarosamente e mandou trancar a porta para continuar a ronda.

Na manhã seguinte, logo depois de tocar a sirene para despertar os presos, a porta de minha cela se abriu e um oficial da Polícia Marítima, sorridente, apertou-me a mão e perguntou como eu estava sendo tratado. Respondi secamente ao tenente Djalma Brandão que "estava sendo tratado como preso". Revidou, dizendo que pouco poderia fazer por mim, mas que se eu tivesse qualquer problema que dependesse de sua corporação, que mandasse chamá-lo quando estivesse no comando da guarda. Disse que me conhecia de há muito pelos jornais e não compreendia como é que me haviam mandado preso para o navio. Tirou do bolso da túnica um livrinho de história policial e me entregou, prometendo outros, em seus próximos serviços. Antes de se retirar, ouvi-o recomendar aos guardas no corredor que me tratassem com consideração, pois eu era uma pessoa que sempre combatera a corrupção e a imoralidade.

Assim que o tenente Brandão se afastou, pus à prova suas palavras e pedi aos guardas que me deixassem tomar um banho. Sabia ser isso um tanto difícil, especialmente após o episódio em que foi protagonista Thomaz Maack. O médico pedira para tomar um banho, e os homens da Polícia Marítima que estavam de quarto permitiram. Quando estava completamente ensaboado, surgiu no corredor o tenente Ariovaldo. Aos berros, dizendo que ninguém podia tomar banho sem sua ordem expressa, mandou que ele fosse conduzido ao xadrez completamente ensaboado.

O guarda meditou um pouco sobre o meu pedido e, por fim, abriu a porta e fui conduzido ao banheiro coletivo, imundo e fedorento. O policial postou-se na porta com a metralhadora apontada para meu peito enquanto eu me ensaboava. Sem ligar para isso, abri o registro e entrei debaixo do cano de onde caía um jato de água fria. Tornei a me ensaboar e exatamente quando entrei outra vez debaixo do ano, a água deixou de correr. Estava com o corpo e a cabeça cheios de sabão. Por mais que reclamasse, não consegui terminar o banho.

Aquela era mais uma das muitas molecagens dos bravos oficiais da marinha de Guerra destacados no Raul Soares. Fechavam a água quando os presos já estavam ensaboados, assim agindo em nome dos sagrados postulados cristãos... Isso me aconteceu muitas outras vezes. Aquela, no entanto, era a primeira. com os olhos lampejando de ódio, fui conduzido ao xadrez. Enxuguei o corpo e a cabeça com a camisa - pois nem um pedaço de pano havia para servir de toalha - e a seguir coloquei-a para secar sobre o colchão. Na hora do café, saí para o corredor sem camisa, o que chamou a atenção dos demais presos, em virtude do frio que fazia.

Logo depois de apanhar o caneco de café e o pedaço de pão, já recolhido ao xadrez, o guarda Valadão, da Polícia Marítima, foi me levar uma camisa enviada por outro preso, Waldemar Silva. Mais tarde, durante o arejamento, conheci-o. Era contador do Sindicato dos Arrumadores e fazia o levantamento dos livros contábeis para apurar desfalques, providência que acabou por motivar violento tiroteio na sede do órgão de classe, quando várias pessoas foram mortas. Waldemar Silva conseguiu provar desonestidades praticadas por líderes sindicais. Quando da "revolução", no entanto, foi preso e enviado ao navio. Os ladrões, os assassinos, foram guindados à direção do Sindicato e ele, bem como os demais líderes sindicais honestos, que se empenharam para apurar bandalheiras, enviados para um presídio político. Sinal dos tempos...

Mal acabara de tomar a caneca de café, ouvi leves pancadas na parede de madeira que separa os xadrezes. Prestei atenção, e logo percebei que o preso do cubículo do lado procurava se comunicar comigo. Bati, também,na parede de madeira e aguardei a resposta. Logo a seguir, notei que o cano de água que se dirige aos banheiros e que passa por dentro dos xadrezes mexia-se, como se alguém o estivesse empurrando para a frente e a seguir puxando-o para trás.

Deitei-me no chão e, a despeito da penumbra, vi um pedaço de papel aparecer no buraco por onde passa o cano. Com muita dificuldade, consegui retirar o papel dobrado sem rasgá-lo. Encostei na vigia para melhor aproveitar a claridade que por ali entrava e li o que fora escrito por meu vizinho. A "mensagem", escrita a lápis, na parte interna de uma carteira de cigarros, era um aviso para que eu tivesse o máximo de cuidado com os guardas. Dizia que já sabia quem eu era e dava o seu nome: Antônio Caricati, preso no Rio de Janeiro e enviado para Santos por pertencer à Federação Nacional dos Portuários.

Nesse dia, dia de garoa fina e vento cortante, os presos foram levados ao tombadilho para meia hora de arejamento. Em silêncio, andamos em círculo, um atrás do outro, vigiados por homens armados com metralhadoras. Do alto, na ponte de comando, oficiais da Marinha fiscalizavam e vez ou outra um deles gritava:

"Atenção, aquele falou. Mexeu os lábios. Retirem-no do arejamento. Ele é perigoso".

Por vezes, não fosse a situação dolorosa que todos enfrentavam, a palhaçada era tanta que por pouco não provocava gargalhadas.

Ao cruzar com um preso que fazia o círculo em direção contrária, ouvi quando ele me dizia em voz baixa:

"Sou Orfeu Sales Santos. Cheguei ontem ao navio, preso pelo capitão Melo, por ser dirigente da Rádio Marconi e por ter feito uma campanha pedindo anistia para os sargentos envolvidos na rebelião de Brasília".

Nesse dia, nada mais Orfeu pôde me dizer. Mais tarde, fiquei sabendo que quando ele chegou ao navio, foi interrogado durante muito tempo pelo comandante do barco-presídio, capitão Astolpho Migueis e pelo mulato pernóstico, Ariovaldo Pereira dos Santos. Este último, para dar vazão aos seus recalques, tentou espancá-lo, chegando, por várias vezes, a solicitar ao capitão de corveta autorização para dar umas borrachadas no "advogado impertinente", que insistia em ser tratado como preso político.

Como muitos presos, fui posto incomunicável, não recebendo qualquer visita durante os 43 dias em que estive encarcerado. E por não receber visita, os militares não me permitiam fazer a barba a não ser de duas em duas semanas, ao contrário dos demais presos que podiam se barbear todos os sábados

Imagem e legenda publicadas com o texto, na página 104-A