Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0181d09.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/30/12 20:06:23
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares - BIBLIOTECA NM
O navio-prisão (4-i)

Clique na imagem para voltar ao índice do livroUma das páginas negras da história santista

 

Este é o texto integral do livro de Nelson Gatto, que a censura do regime militar mandou apreender e destruir. Um raro exemplar remanescente foi cedido a Novo Milênio para esta edição digital, pelo jornalista Carlos Mauri Alexandrino, em 2012.

Impresso pela paulistana Edimax, com 154 páginas e capa de Wilson Cocchi, sem data (foi escrito e apreendido em 1965), tem agora sua primeira edição digital (com ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 111 a 126):

Leva para a página anterior da série

RAUL SOARES

Navio presídio

A outra face da "Revolução"

Nelson Gatto

Leva para a página seguinte da série

Soltos e presos

Sofri muito em meu novo xadrez.

Aos poucos, fui me habituando à penumbra e ao colchão úmido. Uma goteira pingava constantemente sobre o centro do catre e o colchão se tornava caca ez mais molhado.

Pulgas, percevejos e baratas logo deixaram de me incomodar. Por vezes, adormecia com um verdadeiro exército desses bichinhos fazendo o footing por sobre todo o meu corpo. Já não ligava para isso. A friagem constante me fazia doer horrivelmente os ossos das costas e isso superava a presença dos insetos.

Por mais que tentasse, não consegui me acostumar com o mau cheiro que vinha das privadas e da cozinha, bem em cima do meu cubículo, onde cumulavam, em grandes latas, comida azeda e que por vezes chegava a me virar o estômago. Só não vomitei em certas ocasiões por não ter comido nada enquanto estive preso, exceto o café da manhã e o pedaço de pão.

O chão, devido a um vazamento no cano que atravessa os xadrezes, estava sempre com dois ou três dedos de água. Meu sapato, constantemente molhado, começou a mofar. Por fim, o couro desgrudou da sola e acabei ficando descalço. A tosse que adquiri nesses dias, parece ter-se transformado em bronquite, que irá me torturar pelo resto da vida.

Mas, segundo ouvia dizer, meu corredor, não sei por que chamado de Rua Santa Efigênia, não era o pior. No outro corredor, paralelo ao em que eu estava, denominado Rua Augusta, existiam xadrezes em que os presos permaneciam dia e noite com água pelo tornozelo. O martírio era muito maior. Num daqueles cubículos haviam colocado o professor de Medicina Hildebrando Pereira, cientista que, numa experiência de laboratório, acidentalmente injetou no próprio corpo o vírus do barbeiro.

A despeito do fio cortante, não permitiam que eu recebesse qualquer roupa enviada por minha família de fora, nem me davam uma coberta para passar a noite. Diziam que isso fazia parte da incomunicabilidade em que as autoridades da Aeronáutica mandara que eu fosse colocado...

Cada dia chegava mais gente.

Mais chefes de família, mais operários, mais infelizes denunciados como comunistas, como subversivos...

Numa tarde de arejamento, sob fria garoa que gelava o corpo e a alma (insistiam em só retirar os presos dos xadrezes para o tombadilho quando chovia ou garoava), conheci um sargento do Exército de nome Nilton de Alencar. Enquanto caminhávamos de um para outro lado, para aquecer o corpo, o militar procurou colocar-se ao meu lado. Sob as vistas dos guardas armados com metralhadoras, enquanto esfregava o rosto e os braços, o sargento foi dizendo em voz baixa:

"Fui preso pela FAB (N. E.: Força Aérea Brasileira). Esta é a segunda vez que venho para o navio. O capitão Melo, da Aeronáutica, quer à força que eu diga que o conheço, muito embora esta seja a primeira vez que o vejo em minha vida".

Sempre que podia, durante o arejamento, trocava algumas palavras com o sargento Alencar. Foi por ele que fiquei sabendo que o capitão Francisco Renato de Melo prendia os sargentos para fazer propostas desonestas às suas esposas. Isso aconteceu com a esposa do sargento Nilton Alencar, do suboficial Aving, da Aeronáutica, e de numerosos militares detidos, os quais não escondem sua aversão pelo oficial.

Para melhor poder trocar algumas palavras e fugir da tortura do silêncio que nos impunham, fazíamos sempre educação física durante o tempo em que ficávamos no tombadilho. O sargento do Exército Ovídio Ferreira, de há muito recolhido no navio, era quem "comandava" os exercícios.

Durante uma dessas sessões de física, conheci o engenheiro José Augusto da Mata, preso em sua cidade, São José dos Campos, por uma patrulha da Aeronáutica e enviado para o barco-encalhado, acusado de subversão. Enquanto fazíamos ginástica, José Augusto contou-me estar indiciado comigo num inquérito, acusado de aliciamento de sargentos nas Forças Armadas... Cheguei a rir, pois era aquela a primeira vez que eu o via em minha vida. Jamais tinha visto, igualmente, antes, o sargento Alencar. No entanto, ambos estavam indiciados num mesmo inquérito em que seu figurava como aliciador de sargentos e que, por sinal, foi o inquérito mais volumoso feito durante a revolução, contendo milhares de páginas em seus vários volumes. Ao meu lado, como principais indiciados, estavam um bispo, o diretor da Rádio Marconi e o ex-ministro Paulo de Tarso.

A chegada do Orfeu ao navio serviu para me elevar o ânimo.

Eu já não estava sozinho a exigir, de cabeça erguida, que fôssemos tratados como presos políticos e não como criminosos vulgares. Orfeu protestava sempre, invocando os Direitos do Homem. Conseguiu de um oficial papel e lápis e escreveu longa carta ao almirante Paulo Bosísio, presidente da Comissão Geral de Inquéritos, protestando, em nome de todos, contra o tratamento dispensado aos homens recolhidos no navio Raul Soares. Enviou a carta para ser censurada pelo comandante do barco, após o que deveria ser remetida ao seu destinatário. O capitão Astolpho Migueis, depois de ler a missiva, desceu ao xadrez para ofender o radialista e perguntar se ele era louco, se já estivera internado para tratamento mental.

De outra feita, Orfeu pediu autorização para enviar uma carta-denúncia ao presidente das comissões de inquérito. Denunciava o caso dos irmãos Adib e Antonio Chamas, magnatas do trigo que davam sempre um carro último tipo, zero quilômetro, a todo o presidente da COAP que assumia o cargo em São Paulo. Se a C.G.I. queria apurar roubos, fornecia subsídios valiosos contra os irmãos Chamas, principalmente contra Adib, que fazia grossas negociatas escudado em seu mandato de deputado federal.

O radialista ficou muito marcado em virtude de sua constante revolta contar o tratamento que nos dispensavam a bordo. Vivia reclamando. Queria ler jornais, receber um rádio enviado por sua família, apreendido na capitania dos portos. Uma noite, seu xadrez foi invadido por um grupo de militares da Marinha. Um oficial apanhou uma poesia escrita em papel de embrulho que estava sobre o colchão imundo. Depois de ler, perguntou furioso:

"O que é isso?"

Orfeu quedou em silêncio, sem saber ao certo que responder. Depois, encarando o oficial, respondeu um tanto constrangido:

"É... O senhor tem razão. Não é uma obra-prima. Mas é uma poesia".

Sem almoçar, sem jantar, dia e noite no cubículo com água, fui acometido de violentos acessos de tosse.

Muitas vezes, na calada da noite, o silêncio do negro navio era quebrado pela tosse que eu não podia conter e que parecia me estourar os pulmões. Em nenhuma ocasião, qualquer dos carcereiros abriu a porta do xadrez para ver como eu estava passando.

A despeito de estar repleto de prisioneiros, o navio não tinha médico. Os doentes deveriam ser atendidos pelo médico da Base Aérea de Santos, que ninguém de bordo conseguiu ver uma única vez. Constantemente saíam homens carregados do navio: um tinha câncer, outro úlcera supurada, outro enlouquecera devido aos maus tratos. Um sargento da Marinha, enfermeiro, vestindo sempre longo avental branco e insistindo para ser chamado de dr., duas vezes por semana percorria os xadrezes, perguntando se alguém havia adoecido. Em caso de resposta afirmativa, geralmente se limitava a coçar a cabeça enquanto dizia:

"Bem, isso já foge aos meus conhecimentos. Para isso, nada posso fazer. Só tenho cápsulas para dor de cabeça..."

Para mais me torturar, colocaram-me num xadrez bem em cima do gerador do navio. O barulho ensurdecedor e sempre igual, dia e noite, ia mexendo com meus nervos. Ininterruptamente, o gerador funcionava no mesmo ritmo. O barulho do motor e o silêncio que me impunham já começava a me enlouquecer, quando descobri uma maneira de conversar, durante a noite, com meu vizinho de xadrez. Encostando o colchão dobrado na parede lateral externa, conseguia ficar encarapitado na vigia gradeada durante alguns minutos, até ficar com fortes dores nas costas. O meu vizinho usava o mesmo expediente. Embora não víssemos o rosto um do outro, conversávamos em voz baixa, sem que os guardas do corredor percebessem.

Todas as noites, assim que escurecia, eu procurava conversar com Caricati, que tinha sempre novidades. Era um dos encarregados de lavar as privadas na parte da manhã e sempre conseguia trocar algumas palavras com presos de outras alas. Por vezes, ao lavar o chão da cozinha, ouvia o noticiário dado por estações de rádio e, à noite, me transmitia os informes apanhados nos transistores dos cozinheiros. As mínimas notícias chegam a ter grande importância para homens encarcerados e impedidos de tomar contato com o mundo exterior.

Quando Caricati batia três vezes seguidas na parede, era hora de me empoleirar no colchão e pôr-me a par das novidades. O estivador começava sua conversa diária sempre da mesma maneira:

"Pois é... Essa revolução é mesmo de canalhas... Imagine que no Rio de Janeiro, onde fui preso, prenderam como subversivo um velho de 83 anos de idade. Colocaram o pobre coitado no meu xadrez do Dops. Além de prenderem o ancião, ainda quebraram seus óculos e o coitado não podia enxergar sequer para se movimentar no cárcere..."

No xadrez do outro lado, estavam dois presos no mesmo cubículo: Osny Nery dos Santos e Francisco Soares da Silva. Vez outra, os dois também se penduravam nas grades da vigia para que eu lhes passasse as novidades que Caricati me transmitia.

Uma noite, todos do sinistro corredor foram despertados pelos gritos de dor que partiam do xadrez vizinho ao meu. Francisco Soares fora acometido de mal-estar - princípio de intoxicação por ter ingerido comida deteriorada - e quase morreu sem receber qualquer tratamento médico. O oficial de serviço da Polícia Marítima, tenente Ariovaldo, foi chamado às pressas pelos guardas. Empunhando enorme cassetete de madeira, abriu a porta do xadrez - que como o meu também não tinha luz elétrica - e jogando o foco de sua lanterna portátil sobre o infeliz Chico, foi berrando:

"Isso é hora de ficar doente? Espere até amanhã. Caso você continue gemendo, nós lhe daremos um jeito..."

O pobre Chico ficou gemendo em voz baixa o resto da noite. Deitado em meu catre imundo, sem poder dormir, percebia Osny tentando confortar seu companheiro de cela. Na manhã seguinte, já um pouco melhor, quando foi fazer um movimento, Chico deslocou a clavícula, o que aumentou de muito seu sofrimento, que já era grande, especialmente pelas notícias que recebia de fora e que falavam das privações que sua família passava.

Caricati, em retalhos, ia me pondo a par dos motivos de sua prisão. Fora eleito para representar sua classe na Federação Nacional dos Trabalhadores. Encontrava-se no Rio por ocasião do movimento militar que depôs o Governo. Duas vezes, contou ele, viajou para o litoral paulista, participando de reuniões de caiçaras que pretendiam formar um sindicato de classe. Desde que fora preso, por determinação do capitão dos Portos de Santos, só o interrogavam sobre a mesma coisa:

"Nós sabemos que você esteve no litoral paulista, participando de reuniões de caiçaras que pretendiam formar seus sindicatos. Sabemos que no litoral você comandava 16 mil homens. Não é verdade? Quantos guerrilheiros são? Onde estão eles? De que armas dispõem?"

Caricati cansou-se de responder que jamais pensara em comandar guerrilheiros. Apenas auxiliava a formação de sindicatos de trabalhadores, numa região onde os homens são explorados de maneira vil e seus filhos morrem de fome, sem comida e sem escolas.

Nossa conversa, todas as noites, começava sempre pela história do velho de 83 anos. "Prenderam o homem e ainda quebraram os óculos dele". Terminava, invariavelmente, com as palavras reticentes do operário:

"Eles não podem deter o curso da História. Podem atrasar de meses, até mesmo de anos, mas as reformas de base e a reestruturação democrática do Brasil virão constituir uma necessidade histórica que ninguém pode negar... Um dia, os canalhas terão que deixar o Brasil progredir..."

Cada dia mais fraco, continuei na firme decisão de não almoçar ou jantar, negando-me a comer como animal. Entrava na fila de prisioneiros, ia até as bandejas imundas e os caldeirões com a comida, onde numerosos guardas armados ladeavam os marinheiros encarregados de servir as refeições e apanhava, simplesmente, uma banana ou uma laranja.

Uma tarde - sempre serviam o jantar entre 16 e 16,30 horas - todos foram surpreendidos com uma novidade: havia arroz doce como sobremesa! O guarda que abriu minha cela me avisou da inovação e aconselhou que eu levasse a caneca onde apanhava o café da manhã, para apanhar o doce. O simples fato de servirem arroz cozido com água e açúcar serviu para uma série enorme de boatos, o principal dos quais dizia que todos seriam logo postos em liberdade. Pois não serviam arroz doce? Não tratavam melhor os presos? Então? Isso não constituía sinal evidente de que estava para terminar o martírio, e que todos iriam ser soltos?

Vi quando o preso que estava na fila à minha frente recebeu a papa de arroz na bandeja que segurava. Parou surpreso e só então passei a reparar melhor nele. Um homem velho, de cabelos encanecidos. Antonio Guarniéri, presidente do Sindicato dos Bancários de Santos, preso desde os primeiros dias da "revolução". Olhou incrédulo para o doce e de seus olhos brotaram lágrimas. Um outro trabalhador - talvez o mais idoso dos prisioneiros -, Rafael Babunovitch, ao se afastar vagarosamente com a bandeja onde recebera o jantar, ia murmurando para si mesmo:

"Arroz doce... É um arroz amargo, isso sim. Enquanto nos dão doce, nossos filhos lá fora estão passando0 toda sorte de privações, estão passando fome..."

Quando estavam de serviço guardas mais condescendentes, de outros xadrezes sempre me enviavam frutas ou doces, encomendas que muitos presos, que não estavam como eu em regime de completa incomunicabilidade, podiam receber de seus familiares.

Jamais esquecerei a solidariedade humana encontrada entre os homens recolhidos no navio Raul Soares. Doces, frutas, bolachas enviados das outras celas através dos guardas, evitaram que eu caísse de fraqueza. Os presos Osmar Campos Colegã, Domingos Garcia, Ovídio Ferreira Dias, Ascendino Vieira, Thomaz Maack, Hildebrando Pereira, Bernardo Boris, sempre que podiam, enviavam alguma coisa de comer para o meu xadrez. Jonas Sobrinho, funcionário da Petrobrás e ocupante de um cubículo no meu corredor, sabedor que eu não tinha com que me cobrir durante a noite, enviou por um guarda uma camisa de lã que me foi de grande valia enquanto estive preso.

Um domingo, recebi tanta coisa que cheguei a me assustar. Os guardas passaram o dia me trazendo doces e frutas. O policial Valadão, que foi à terra, encarregado de apanhar as visitas dos que não estavam incomunicáveis - cada um deles podia receber, por domingo, duas pessoas da família - voltou com alguns tabletes de chocolate; o guarda Nicomedes trouxe, sob a camisa, uma dúzia de bananas; Labib conseguiu meio mamão na cozinha, que logo enviou para meu xadrez. Até mesmo do chefe dos investigadores da Delegacia de Costumes de Santos, através de um guarda, recebi um pacote de maçãs.

Em virtude de persistir em não almoçar ou jantar, recusando-me a comer com as mãos, os oficiais da Marinha passaram a desconfiar que eu pretendia emagrecer para passar pela vigia após arrancar (não sei de que maneira) as grades de ferro. Todas as madrugadas, durante a vistoria dos xadrezes, alertavam-me de que, caso eu tentasse fugir atirando-me ao mar, seria metralhado nas águas. Por mais que me esforçasse em explicar que mesmo que ficasse sem comer durante um ano jamais poderia fazer diminuir minha constituição óssea a ponto de passar pelo buraco da vigia, os oficiais se mostravam desconfiados. E mais intrigados ficavam pelo simples fato de que eu nunca pedira lápis e papel para escrever algumas linhas para meus familiares.

"Você pode escrever para sua família. Só que a carta tem que passar pela nossa censura para vermos se não existe qualquer inconveniente. Por que você não escreve?"

Eu respondia sempre que nada tinha a comunicar à minha família, o que deixava os militares-carcereiros mais desconfiados de que estava planejando alguma coisa.

Quando fui preso, tinha algum dinheiro no bolso. Assim, várias vezes, consegui enviar mensagens em papel de embrulho para meus companheiros de jornal, valendo-me da boa vontade dos homens da Polícia Marítima, que sempre aceitavam algumas notas de mil para serem portadores dos bilhetes. Aliás, esse era o sistema usado por quase todos os prisioneiros e a única maneira de manter comunicação, sem censura, com o exterior.

Os oficiais da Polícia Marítima Orlando Quintanilha Torres, Benedito Araujo, José Miranda Quissac e Djalma Brandão, quando de serviço, eram os que melhor tratavam os presos, jamais se mostrando prepotentes. Benedito Araujo nunca andou e revólver na cinta ou cassetete na mão, fazendo sempre valer sua autoridade moral. Já o mesmo não acontecia com o mulato Ariovaldo Pereira dos Santos e com Antonio Rodrigues, dois pobres diabos que se mostravam arrogantes ao tratar com os detidos e verdadeiros sabujos quando se dirigiam aos oficiais da Marinha de Guerra.

O tenente Djalma Brandão, chefe geral do policiamento do navio, só vez ou oura dava serviço. Quando o fazia, permitia que os presos tomassem banho e saíssem meia hora para o arejamento.

Foi durante o primeiro plantão do tenente Araujo que conheci o advogado santista Ascendino Vieira, que já enviara frutas e doces ao meu xadrez. Nesse dia, o oficial da Marítima permitiu que todos os presos recolhidos nas duas alas do navio subissem juntos para o arejamento, contrariando a norma que era de subir uma parte pela manhã e a outra à tarde. Um oficial da Marinha de Guerra quis chamar sua atenção, mas o graduado da Marítima respondeu com firmeza:

"Sou o responsável pelos presos. O senhor pode deixar que eu sei fazer o meu serviço".

Nesse dia, os guardas fingiram que não viam os presos conversando em voz baixa uns com os outros durante o "passeio" pelo convés. Ascendino se pôs ao meu lado e se apresentou. Fora preso pelo capitão dos portos de Santos - capitão Júlio de Sá Bierrenbach - e enviado para o navio apenas por ser advogado de vários sindicatos da orla marítima.

Ao ser interrogado, não escondeu o fato de ser socialista, motivo pelo qual chegou a bordo com recomendação de "tratamento especial". Ficou muitos dias no "El Moroco", mas não se deixou abater moralmente. Analisou, em ligeira palestra mantida comigo durante o desfilar pelo convés, a "revolução". Falou sobre a mobilização da imprensa, do rádio e da televisão, coisa fácil de ser feita em virtude de sua dependência das grandes agências de publicidade estrangeiras. Referiu-se, com ódio, às classes produtoras e aos açambarcadores de gêneros alimentícios que organizaram "caixinhas" para entregar dinheiro ao sr. Adhemar de Barros, para aquisição de armas com as quais deveria ser feita a revolução.

Ouvi em silêncio as palavras do jovem advogado. Comentamos em voz baixa o absurdo da medida tomada pelo chamado "Alto Comando Revolucionário". O presidente João Goulart, em defesa da economia popular, ordenara severa repressão aos que desrespeitavam o tabelamento de gêneros de primeira necessidade. Brasileiros deviam ser presos e processados com todo o rigor da Lei; estrangeiros, enviados para a Ilha das Flores, onde aguardariam o processo de expulsão do território nacional. Muitos exploradores do povo já se encontravam na ilha quando do movimento armado de 31 de março.

Pois bem: o "Alto Comando Revolucionário" mandou que todos fossem imediatamente postos em liberdade para em seus lugares serem recolhidos os patriotas, os nacionalistas, que sempre se bateram por um Brasil melhor.

Ao retornar à minha cela, durante muito tempo meditei sobre as palavras de Ascendino. Sim. Não havia dúvida que as grandes agências de publicidade norte-americanas tinham planejado a "revolução". Um país importante como o Brasil, quando efetivamente independente, arrastaria toda a América do Sul a uma posição vigorosa contra o imperialismo, que visa manter todas as repúblicas sul-americanas como meros fornecedores de certas matérias-primas. O complexo industrial militar, que lidera os setores mais reacionários dos Estados Unidos, decidiram acabar de uma vez com o sonho de emancipação nacional, o que conseguiram com relativa facilidade garças ao servilismo de alguns maus brasileiros.

Eu pensava no dinheiro dado por industriais ao governador de São Paulo para aquisição de armas. Teriam sido adquiridas as armas ou o sr. Adhemar de Barros teria ficado com o dinheiro? Se foram adquiridas, a quem foram entregues tais armas depois da "revolução"?

Estava intrigado com o caso das armas quando Caricati bateu três vezes na parede de madeira. Agarrei as grades da vigia com ambas as mãos e suspendi o corpo. Pela primeira vez, Caricati não falou no velho de 83 anos que tivera seus óculos quebrados. Entrou direto no assunto, transmitindo a grande novidade: dezesseis presos, aos quais havia sido concedida ordem de habeas-corpus, seriam postos em liberdade. Entre eles Osny e Colegã, detidos há mais de cem dias sem nota de culpa formada.

A notícia correu de xadrez em xadrez e logo se formou um clima de expectativa e ansiedade. Através das grades das vigias, os presos espiavam o mar, esperando ver chegar, a qualquer momento, a lancha que vinha buscar os companheiros a serem soltos.

Em virtude da forte ventania e da maré enchente, o navio, encalhado num banco de areia, como ocorria constantemente, virou de posição e ao invés de enxergar o porto de Santos, de meu xadrez só via o mangue, o pântano escuro da Ilha Barnabé. Mas meu ouvido permanecia alerta para perceber a chegada de qualquer barco a motor.

Pouco depois das 21 horas, uma lancha cheia de fuzileiros navais fortemente armados encostou no navio-presídio. Meia hora depois, a despeito da escuridão reinante, os que se penduravam nas grades viam os companheiros descerem a escada e embarcarem na lancha. Cada um descia vigiado por um fuzileiro armado de metralhadora.

Mesmo no escuro, assim que o homem saltava dentro da lancha, era identificado pelos presos que espreitavam nos xadrezes: Nelson Frutuoso Amado, Rafael Babunovitch, Manoel de Almeida, Osny Santos, Osmar Alves Campos Colegã, Jurandir de Abreu, José Barbosa Leite, Antônio Lisboa, Afonso Neves Guerra, Henrique Martins dos Santos, Altamiro Cláudio Costa, Nilton Silva e Alcidino Bitencourt Pereira. Treze prisioneiros embarcaram na lancha.

Mais tarde. todos souberam que Argeu Anacleto da Silva, Orlando José Ribeiro e Sérgio Martins, a despeito de estarem também com ordem de soltura, não foram, sequer, retirados de suas celas. Todos estranharam que os que desciam as escadas e que seriam postos em liberdade não levassem malas ou embrulhos com seus objetos de uso pessoal. Enfim, era possível que todos tivessem sido, como eu, presos apenas com a roupa do corpo.

A simples notícia de soltura de 16 presos trouxe uma sensação de alívio entre todos no navio.

Diariamente continuavam chegando novos detidos. As informações esparsas que recebíamos de fora é que continuavam promovendo acusações infamantes sem dar aos acusados o direito de defesa. Do navio, só saíam pessoas gravemente doentes ou que enlouqueciam. Saíam carregadas, amarradas, saíam para morrer. A soltura, pois, dos 16 companheiros de infortúnio, deu a todos novo alento. Um fio de esperança passou a existir entre os prisioneiros.

Cerca de uma hora depois do embarque dos presos, aos quais o juiz Antonio Ferreira Gandra, da 2ª Vara Criminal de Santos, concedera ordem de soltura, o barulho de motores de lanchas que chegavam ao navio fez com que todos se pendurassem nas grades para ver o que ocorria. Caricati, agitado, dizia que seríamos todos postos em liberdade.

Tensão.

Expectativa.

As duas lanchas pararam junto ao cais improvisado na ponta da escada que conduz ao portaló. Com surpresa, todos viram desembarcar os companheiros aos quais havia sido concedida ordem de habeas-corpus.

Ninguém atinou, de pronto, com o que ocorria. Na manhã seguinte, na fila do café, ouvimos do Colegã as primeiras explicações: o capitão dos portos, capitão-de-mar-e guerra Júlio Bierrembach, recebeu todos os presos em seu gabinete. Mandou que os fotógrafos de imprensa batessem chapas à vontade. A seguir, dirigindo-se aos homens que acabavam de sair do navio, disse pausadamente:

"A 2ª Vara Criminal concedeu habeas-corpus para que vocês fossem postos em liberdade. Vocês têm qualquer reclamação a fazer sobre o tratamento recebido?"

Ninguém respondeu. Todos estavam ansiosos por sair dali, abraçar esposa e filhos. O capitão dos portos encarou a todos e, colocando ambas as mãos sobre a escrivaninha, proferiu as seguintes palavras:

"Muito bem. Então vocês já estão em liberdade. Agora que estão livres, quero comunicar-lhes que estão presos novamente, à minha disposição, para responder a um novo inquérito que vou instaurara. Podem voltar para o navio!"

Escoltados pelos fuzileiros navais, com lágrimas nos olhos e ódio no coração, os presos políticos retornaram ao navio, aos mesmos cubículos infectos de onde haviam saído cheios de esperanças uma hora antes.

O promotor da Justiça Militar reuniu um grupo de presos políticos no convés do navio-presídio e disse dos motivos de sua ida a bordo: apurar se os detidos estavam recebendo tratamento humano. Nesse dia, até a comida foi melhorada para impressionar o visitante, que estava acompanhado de jornalistas

Imagem e legenda publicadas com o texto, na página 120-A