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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
Clique na imagem para ir à página principal desta sérieJosé Bonifácio (2)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, em seu capítulo III (José Bonifácio), com grafia atualizada (páginas 338 a 353): 
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Assinatura de José Bonifácio de Andrada e Silva 
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Estudos primários. Influência materna na sua formação moral. Alexandre Vandelli

Na mesma terra natal, recebeu as luzes da instrução primária, sob a vigilante inspeção de seu próprio pai, que era um homem de espírito [5] e assaz instruído em relação ao tempo, ao meio e à classe a que pertencia [6].

A educação moral recebeu-a ele do excelso coração de sua mãe, matrona provida das mais eminentes qualidades afetivas, como é tradição na terra de seu berço, e conforme referimos ainda há pouco. Era ele, segundo o testemunho dos amigos e contemporâneos que o conheceram de perto, dotado de "uma bondade quase angélica" [7]. Era muito dado, amável, condescendente no trato familiar [8].

Posto que conservasse sempre no desenvolvimento de suas idéias um vigor pouco comum, era na execução delas benevolente com os homens, que tolerava porque não os podia fazer melhores [9].

"A sua índole era naturalmente boa", afirma um dos seus mais implacáveis adversários, o visconde de Porto Seguro [10]. Dos seus nobres progenitores (N.E.: correto é genitores) herdou, portanto, de um lado, o portentoso equilíbrio cerebral que o remontaria à altura das maiores mentalidades de sua geração, e de outro, o rico tesouro de raras virtudes altruísticas que o fariam vibrar intensamente em defesa dos que sofriam as monstruosas desigualdades da Justiça social.

Desde os primórdios de sua mocidade, quando ainda estudante na Velha Universidade conimbricense, já escrevia magnânimas dissertações em prol da emancipação dos escravos africanos e da proteção devida aos aborígenes do Brasil [11], aspectos capitais do problema brasileiro e nos quais, em plena madureza, consubstanciou os princípios fundamentais de seu programa político, estritamente subordinado às determinações supremas da Moral [12].

Realizou ele, portanto, o objetivo essencial de uma grande vida, segundo o pensamento imortal de Alfredo de Vigny:

Qu'est-ce qu'une grande vie?
Une pensée de la jeunesse, executée par l'âge mur

A filosofia biológica nos ensina que nós somos antes filhos de nossas mães que propriamente de nossos pais. Estes quase que apenas exercem, relativamente à geração dos filhos e à fase de seu desenvolvimento imediatamente posterior, a subalterna e grosseira função de estimulantes vitais dos órgãos procriadores da mulher e de meros protetores materiais dos produtos que elaboram nos êxtases legítimos da paixão ou nos delírios eróticos da concupiscência.

São nossas mães que nos trazem ao seio, alimentando-os durante o sagrado período da gestação e nos anos críticos da iniciação infantil, com o seu sangue sempre generoso, transmitindo-nos com ele a toda a hora os seus sentimentos mais puros e as suas mais ternas inspirações.

A alma de nossas mães, através dos mais abnegados sofrimentos, transfunde-se integralmente em nossa organização, e quando, ao raiar da puberdade, começa a nossa educação a receber o varonil influxo da autoridade paterna, nossa estrutura moral já se acha definitivamente constituída e amoldada à feição dos impulsos que o sangue materno lhe imprimiu vigorosamente. Essa é a razão indubitável por que as mães demonstram pelos filhos o seu afeto em grau muito maior que os respectivos pais.

Sobre o terreno da educação moral, preparado de antemão pelo maternal desvelo, principia então o pai a semear cuidadosamente os germes imprescindíveis da instrução mental. Desde que o terreno seja sáfaro, infértil ou não tenha recebido o prévio trato conveniente, a cultura intelectual só produzirá frutos repugnantes e dissaboridos.


D. frei Manuel da Ressurreição, 2º bispo de S. Paulo,
sob cujos auspícios e estimulantes aplausos fez José Bonifácio seu curso de preparatórios
(Reprodução a pena, feita por Paim, de um original a óleo, anônimo, existente na Capela do Recolhimento de Nossa Senhora da Luz, na Capital)
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Estudos propedêuticos

Tendo, pois, herdado a grandeza moral de sua mãe e os predicados intelectuais de seu pai, aproveitou José Bonifácio, de modo excepcional, e rapidamente, as lições de tudo quanto aqui se ministrava em matéria de primeiras letras. Concluídos seus estudos preliminares, escassos forçosamente naquele meio e naquela quadra [13], foi mandado para S. Paulo, aos 14 anos, a fim de se iniciar sem tardança nos preparatórios indispensáveis aos cursos superiores que pretendia freqüentar, com entusiasmo próprio e aquiescência unânime de toda sua ilustre família, encantada com a sua precoce revelação intelectual.

Na Capital, encarregou-se de superintender sua educação literária o bispo metropolitano, d. frei Manuel da Ressurreição, que mantinha à sua custa escolas para o ensino da Lógica, da Metafísica, da Ética e da Retórica, lecionando ele mesmo a língua francesa [14]. Tamanhos progressos fez José Bonifácio na aprendizagem dessas disciplinas, que o bispo instou com sua família para que aconselhasse o jovem santista a seguir a carreira eclesiástica, tão convencido se mostrava da necessidade, que tinha a Diocese, de sacerdotes ilustrados e inteligentes.

Mas, a família já contava um eclesiástico entre seus membros, o filho primogênito do casal, o padre Patrício; e naturalmente por essa razão ficou resolvido que José Bonifácio adotasse outra carreira, de acordo, aliás, com a sua própria vontade e deliberação.

Rumo de Portugal

Três anos depois seguiu para o Rio de Janeiro o nosso predestinado conterrâneo e dali se embarcou no ano de 1783, para Lisboa, com destino a Coimbra, em cuja Universidade se matriculou, na Faculdade de Direito e na de Filosofia Natural.

Formatura

Após um duplo curso brilhantíssimo, feito entre os mais rasgados elogios de seus doutos professores e a profunda admiração de seus melhores condiscípulos, conquistou, a 16 de junho de 1787, o diploma de bacharel em Filosofia e o de bacharel em Direito Civil [15].

Por esse tempo, D. João Carlos de Bragança, duque de Lafões, já se havia recolhido definitivamente à Corte Portuguesa, de onde saíra, ainda muito moço, a percorrer demoradamente, em viagem de recreio e de instrução, os mais adiantados países ocidentais. Na longa duração dessa viagem, freqüentara assiduamente os letrados de maior voga e reputação desses países, e, na estreita convivência que com eles manteve e lhe foi de proveitosos resultados, completou a fina educação de seu espírito.


Vista da Universidade de Coimbra, na época em que José Bonifácio lá estudou
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Encontro com o duque de Lafões

Comprazia-se o duque de Lafões em congregar, nos amáveis saraus de seu Paço de Lisboa, não os vulgares cortesãos atreitos ao mero serviçalismo bajulatório, mas os homens que melhor se destacavam na sociedade pelo resplendor de seu verdadeiro talento e de sua ilustração verdadeira [16].

Aos seus ouvidos chegara prontamente a fama que o estudante brasiliense adquirira no decurso da aprendizagem universitária, pela claridade de seus entendimentos e pelo esforço de sua aplicação.

Assim, pois, logo que José Bonifácio desembarcou em Lisboa, fartamente nutrido de saber teórico, mas desamparado de recursos práticos para se entregar aos afazeres de uma profissão ativa, atraiu-o simpaticamente ao seu grêmio e desenvolveu forte trabalho em favor dele junto aos mais poderosos elementos do mundo oficial.

Admissão na Academia de Ciências

Foi seu primeiro ato fazê-lo admitir, não obstante sua mocidade, como sócio livre da Academia de Ciências de Lisboa, instituto de que o próprio duque fora o principal fundador. A sua admissão deu-se a 4 de março de 1789 [17]; 23 anos depois, em junho de 1812, era ele unanimemente escolhido para o cargo de secretário perpétuo, que exerceu até voltar ao Brasil, em 1819, isto é, durante cerca de 7 anos, que foram os de mais fecundo e florescente labor da Academia [18].

Mas d. João de Bragança, cuja admiração pelo nosso emérito conterrâneo aumentava de grau, dia por dia, não se contentou com aquela simples admissão no alto cenáculo. Era forçoso que a nação aproveitasse as raras aptidões de tão notável engenho, em favor de suas indústrias decadentes e da possível reabilitação de seu prestígio.

Ele, que tantos povos lustrara, conhecia bem até que ponto caíra na opinião universal o respeitável crédito português de outrora. Fazia-se mister, portanto, que o patrimônio enceleirado por José Bonifácio em Coimbra se opulentasse com as modernas aquisições de que o restante da Europa se ufanava e que em Portugal quase ninguém conhecia.

Coimbra. Tradição romanesca. Cultura retrógrada. A paisagem. A mocidade

Estava-se ainda ali em quase completa ignorância medieval. Sobre os arcaicos torreões do antigo Paço Real, onde a universidade funcionava, a clara luz das novas idéias ainda não tinha dardejado seus belos raios purificadores.

Os mestres, imobilizados diante da tradição imutável, conservavam-se estranhos e indiferentes à espantosa transformação que se operava lá fora nos impulsos, nos pensamentos e nos costumes da Humanidade. Os estudantes, os moços, os promissores germes da sociedade vindoura, sem guias, sem condutores, sem mestres que os dirigissem, passavam o melhor de sua vida a cantar... A empolgante beleza da paisagem local os fascinava e atraía.

Para longe as abrumadas apreensões pelo futuro vacilante e incerto! Gozem-se estouvadamente os efêmeros prazeres da hora que passa... "Esta vida são dois dias" - lá diz o estribilho de um dos seus fados mais populares. E ao opálico luar das noites de Coimbra, rolava o Mondego as suas quérulas ondas por entre os pomares viçosos e os tristes salgueirais pendentes de suas margens. Do mais espesso das tapadas circumpostas surgia, aqui e acolá, um ou outro bando arisco de tricanas sobressaltadas, enquanto as guitarras e os violões dos estudantes quebravam o silêncio da noite com seus melancólicos arpejos.

A linda Ignês, as estâncias imortais de seu cantor, as reminiscências lendárias ligadas a esse tocante episódio, o passado, a tradição, o sentimentalismo atávico da raça, a alma peninsular, em suma, evola-se, espiritualizada e sonhadora, do próprio coração da Natureza em êxtase, e palpita na copa dos matagais, estua de leve na remansada ondulação do rio, floreja nos roseirais abertos sobre as latadas, sussurra no cristalino borbotar das fontes, arde no pudibundo olhar das raparigas, freme naquelas vozes que ao pálido luar do idealismo cantavam...

Mas não era o canto varonil dos que marcham para o combate e para a glória; eram tristes canções de decadência, carpindo ilusões precocemente mortas; hinos funéreos salmodiados à agonia de um grande povo prestes a desaparecer...

Cumpria reagir contra a inércia modorrenta das gerações fossilizadas, arrancando os corações adolescentes às enganosas utopias em que se deleitavam e exortando-os a baixar das etéreas regiões da metafísica até ao mundo das concepções reais.

Reação do espírito positivo

Ninguém melhor que José Bonifácio para servir aos patrióticos intuitos do Duque de Lafões. Era tão grande sua notoriedade que ninguém estranharia vê-lo apontado para desempenhar as mais altas comissões dentro ou fora do país.

Comissão científica pela Europa

Sob proposta da Academia [19], e por sugestão e seu alto protetor, foi ele comissionado pelo governo para aperfeiçoar na Europa os seus estudos de ciências naturais, levando em sua companhia um outro brasileiro, também notável mineralogista, a quem já nos referimos: Manuel Ferreira da Câmara Bitencourt de Sá [20], consagrado autor de várias memórias sobre essa especialidade; e o alentejano Joaquim Pedro Fragoso de Siqueira [21].

Em junho de 1790 partiu de Portugal [22], o insigne santista em direção à França, ponto inicial de seus estudos e investigações. Datam daí os sucessivos triunfos que, como cientista, adquiriu em todos os países que perlustrou, no severo desempenho de sua grave comissão; data daí, portanto, a merecida ascendência que gradualmente foi conquistando no meio social de Portugal e Brasil, ascendência que lhe permitiu, anos mais tarde, concentrar nas suas mãos poderosas a organização e direção sistemática do movimento separatista, cujo feliz desfecho constituiu o gloriosíssimo remate de sua existência fecundamente devotada ao Bem.

Foi ao duque de Lafões que José Bonifácio deveu precipuamente a sua auspiciosa iniciação na vida pública; sem essa valiosa e simpática proteção, quem sabe lá o rumo desacertado que tomaria o seu destino perante as necessidades determinadas pelas circunstâncias?

Se hoje, numa época mais liberal, em que as competições quaisquer francamente concorrem a todas as carreiras, o gênio, a falta de uma proteção assinalada e eficiente, é não raras vezes sacrificado à audaz reputação de um impostor, fácil é de imaginar-se o que poderia ter acontecido, naqueles tempos de oprobrioso despotismo, ao nosso ilustre conterrâneo, se acaso não tivesse ele na Metrópole o braço dedicado e firme que constantemente o amparou através de todas as vicissitudes.

Os brasileiros em geral, e especialmente os santistas, devem à memória desse eminente e generoso bastardo da casa brigantina, eterna e reverente gratidão, porque amou, admirou e protegeu tão extraordinário, singular engenho que talvez houvesse transitado obscuro entre os frívolos magnatas daquela Corte decadente, se não fora o alento, o estímulo, o salutar apoio que de tão alto e tão a tempo recebeu.

Trabalhos científicos executados antes de sua viagem

Antes de se transportar para o estrangeiro, no cumprimento de seu mandato, entendeu José Bonifácio que devia dar a seus compatriotas uma demonstração positiva de que, malgrado seus verdes anos, dispunha abundantemente dos requisitos teóricos essenciais para honrar na terra alheia o nome de seu país.

E ofereceu à Academia de Ciências uma instrutiva Memória sobre a pesca das baleias e extração do seu azeite [23] e outra sobre a viagem minerográfica que empreendera na Província de Extremadura, ambas elogiadas e mandadas tipografar na revista oficial daquele instituto.

Pesca da baleia

A pesca das baleias tinha tomado grande incremento e as armações destinadas a essa útil e rendosíssima indústria abundavam nas costas brasílicas. Só em 1776, na Capitania de S. Paulo se tinha pescado, nas suas movimentadas armações da Bertioga, de S. Sebastião e da Barra Grande de Santos, nada menos de 182.

Mas o advento dos barcos a vapor [24] e outras poderosas circunstâncias anteriores, contribuíram decerto para o desaparecimento quase completo desse precioso mamífero que antigamente cruzava com freqüência os mares do nosso litoral.

E na Capitania de Santa Catarina, onde existia a maior armação do Brasil, só em 1775 se pescaram perto de 500 baleias, rendendo cada uma cerca de 400$000 réis ou sejam aproximadamente 15:000$000 na moeda atual [25].

O que assombrava em José Bonifácio era o íntimo consórcio em que na sua prodigiosa cerebração viviam o talento teórico e o talento prático. Tanto como homem de ciência ou como político, estadista e administrador, essas duas faculdades que muito excepcionalmente se encontram juntas, nele atuavam harmonica e simultaneamente. É esse espírito prático, esse bom senso, que nele notava Oliveira Martins [26], ligado ao saber teórico, que há de, no pináculo dos cargos eminentes ou no retraído labor dos laboratórios e dos gabinetes, fazê-lo vencer as mais sérias dificuldades e sobrepor-se a todos os seus conterrâneos de Portugal e Brasil.

Em relação, por exemplo, à pesca das baleias, disserta ele não só como um teorista profusamente conhecedor da especialidade, mas também e sobretudo como um profissional prático de rara competência, que em sua vida nada mais tivesse feito do que pescar os formidáveis cetáceos e aproveitar utilmente os seus diversos produtos, tal a soma espantosa de dados e observações concretas com que corrige os erros até então cometidos e aconselha a adoção de métodos mais inteligentes, mais positivos e mais eficazes. Ele mesmo não hesita em dizer que a esse respeito suas idéias "são em muita parte novas".

Na Introdução, discorre sobre as pescas em geral como fator da grandeza de vários povos que na História antiga e na moderna História se distinguiram pelos seus feitos e pelos seus exemplos; estabelece um paralelo entre o que foi Portugal, quando os seus previdentes reis impulsionaram e animaram essa indústria e o que veio a ser desde que o domínio dos Felipes a cerceou, tributando-a exorbitantemente, o que determinou a sua decadência, até que d. José 1º começou a restaurá-la, ordenando uma série de providências que a favorecesse e lhe desse novamente um pouco das perdidas forças.

Lembra a necessidade de se aperfeiçoar e incrementar a pesca da sardinha e do atum, abundante nas costas portuguesas; a do bacalhau do Minho; a do bacalhau brasileiro, existente, não só no Rio São Francisco, mas igualmente na costa do Sul da Bahia, na de Paranaguá e na de Santos; além de outros peixes de que todo o litoral do Brasil é rico, tais como as tainhas, de Cabo Frio a Santa Catarina; as cavalas e as anchovas, no Rio de Janeiro; as garoupas e pargos, no Espírito Santo; os sargos, nos mares santistas e nos fluminenses.

A indústria da pesca, além de contribuir para o desenvolvimento da fortuna privada e para o acréscimo das rendas públicas, é uma escola criadora de marinheiros, classe de que têm necessidade irrefutável as nações marítimas.

Entrando propriamente no assunto de sua Memória, assinala os erros principais que se praticavam na pecaria da baleia e os danos que deles resultavam para a economia do povo, para a indústria e para os interesses do Erário. O primeiro desses erros era a deficiência de armações. A da Bahia, a do Rio de Janeiro, a de S. Sebastião e a da Barra Grande de Santos estavam abandonadas na época em que compôs sua Memória; na costa da Capitania de S. Paulo, numa vasta extensão de oitenta léguas, só existia em funcionamento a da Bertioga, no litoral santista. Mais para o Sul, funcionava apenas a de Santa Catarina.

A imensidade de baleias existentes nessa região indicava, pois, o estabelecimento de novas armações nas entradas e barras dos rios e nas baías, em sítios que indicaria mais tarde, mas preciso seria que se não construíssem nem governassem segundo o tipo e o sistema até então adotados e sim pelo modo que o autor mostraria na projetada segunda Memória, com grande economia de lenha, de escravos e de utensílios.

O segundo erro consistia em se não atreverem os pescadores a dar caça às baleias ao longo das costas do Brasil e da América espanhola, limitando-se a pescá-las somente dentro das barras. Se os norte-americanos e os ingleses vinham de tão longe, gastando muito dinheiro, pescar nas costas do Brasil, e disso tiravam lucros fabulosos, porque não praticavam da mesma forma os nossos pescadores, se o tempo e o dinheiro a despender seriam em menor escala e menores também os perigos a afrontar, desde que se aumentasse o número das armações atuais?

Outro erro, e dos mais perniciosos, era o irracional costume de matarem os baleotes de mama, para assim arpoarem com mais facilidade as mães, porque estas, na sua imensa ternura pelos filhos, não abandonam o lugar onde eles tenham sido mortos.

Com semelhante processo, só conseguiam os pescadores estancar as fontes da natalidade, pois as baleias só parem de dois em dois anos um único filho, morto o qual desaparece com ele toda a sua futura descendência. Além disso, a morte das fêmeas, assim estupidamente sacrificadas, faria com que anualmente fosse diminuindo o número delas, crescendo em proporção o dos machos, com irreparável prejuízo para a procriação da espécie.

Outros inconvenientes aponta o autor em relação a essa funesta prática, muito generalizada entre os pescadores, tais como o pouco rendimento útil que dão os baleotes de tenra idade e as baleias mortas no tempo da amamentação - porque aqueles e estas acham-se então em condições extremas de magreza.

Aponta ainda erros que se cometiam com o uso de lanchas exclusivamente de socorro, quando podiam, ao mesmo tempo, conduzir arpoadores que coadjuvassem os trabalhos da pesca, socorrendo-se as próprias lanchas de serviço mutuamente, em caso de precisão ou de perigo manifesto; com o emprego de operários inexperientes ou boçais; com a pouca habilidade na feitura dos arpões, das lanças, dos ganchos e dos aparelhos necessários ao corte do toucinho; com o precioso tamanho e justo peso desses utensílios; com a forma e capacidade das lanchas; com a péssima fabricação do azeite, incapaz de concorrer com o estrangeiro, pela sua fetidez, pela sua cor e pela sua consistência; com a má construção das fornalhas e grelhas para frigir e derreter as gorduras e com os tanques destinados a depósitos das mesmas - fornalhas, grelhas e tanques que, além de produzirem um artigo inferior, exigiam despesas vultosas e escusadas, sobretudo com a lenha consumida superfluamente e com o trabalho de numerosos pretos que poderiam ser utilizados noutras obrigações e mais rendosos misteres.

Para cada mal apontado, José Bonifácio indicava imediatamente o remédio a aplicar, causando no espírito de quem o lê a maravilhosa impressão de que ninguém melhor do que ele conhecia, em todas as suas mais insignificantes minúcias, os erros e vícios dessa lucrativa indústria e os meios de combatê-los eficaz e vigorosamente.


Sala dos atos da Universidade de Coimbra, ao tempo em que José Bonifácio recebeu o grau de Bacharel em Direito Civil e os de Bacharel e Doutor em Filosofia Natural
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NOTAS:

[5] CONº. DR. SILVA MAIA - Elogio histórico de José Bonifácio, lido na Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, a 30 de junho de 1838.

[6] Esboço anónymo, atribuído a António Carlos, e já citado.

[7] Ibidem.

[8] Carta da VISCONDESSA DE SEPETIBA ao senador FRANCISCO OCTAVIANO DE ALMEIDA ROSA, a 4 de abril de 1877 (Apógrafo de seu filho, o DR. AURELIANO DE SOUSA E OLIVEIRA COUTINHO, e existente no arquivo particular do sr. Francisco de Sales Collet e Silva, arquivista da Cúria Metropolitana de S. Paulo).

A viscondessa de Sepetiba era d. Narcisa Emília de Andrada Vandelli, filha da primogênita de José Bonifácio, d. Carlota Emília de Andrada, casada com Alexandre António Vandelli, nascido em Coimbra a 27 de junho de 1784 (SACRAMENTO BLAKE, obr. cit. V. 1º pág. 27, engana-se quando o dá como natural de Lisboa). Casou-se d. Narcisa com o dr. Aureliano de Sousa Oliveira Coutinho, depois visconde de Sepetiba.

Alexandre Vandelli, filho de um distinto naturalista, o dr. Domingos Vandelli, era também qual seu pai um abalizado cultor das ciências naturais, tendo deixado numerosos trabalhos, uns impressos, outros inéditos, em manuscrito, sobre Zoologia, Botânica, Geologia, Agricultura e matérias que tais.

Em Portugal foi guarda-mor dos estabelecimentos literários da Academia Real de Ciências, membro da Comissão de Reforma dos Pesos e Medidas, e ajudante da Intendência Geral das Minas e Metais, da qual era diretor José Bonifácio, que foi quem o propôs para este último cargo, que exerceu gratuitamente desde 1813.

A proposta de José Bonifácio foi aprovada por Alvará Régio de setembro de 1813. Vandelli então não conhecia a família do Patriarca, com cuja filha mais velha veio a casar-se seis anos depois, em 1819.

SACRAMENTO BLAKE (Op. et loco cit.), contestando o bibliógrafo português INNOCÊNCIO DA SILVA, afirmou que o motivo da vinda de Alexandre Vandelli para o Brasil fora a falsa imputação feita a seu pai de ter sido adepto da dominação de Portugal pelos franceses em 1807; mas é erro completo do bibliógrafo brasileiro.

Quem está com a razão é Innocêncio, pois não foi pela época da Independência, mas depois da abdicação do primeiro imperador, que Vandelli se transferiu com sua família para o Brasil, embarcando no Tejo a bordo da galera Lysia, a 15 de dezembro de 1833, e seria absurdo acreditar que passados 26 anos sobre a invasão francesa na Península é que ele, por motivos ligados a esse fato, se tivesse lembrado e sair da Pátria.

Narra sua filha na carta a que nos estamos referindo, que o pai deliberou deixar Portugal, depois que as tropas de d. Pedro IV (1º do Brasil) venceram as do governo absolutista, inaugurando o regime liberal no velho Reino. Vandelli era partidário dos vencidos. Intimado a fornecer aos vencedores uma lista dos funcionários subalternos que com ele serviam, limitou-se a enviar o seu nome. Ato contínuo, retirou-se do país.

António Carlos, que se achava ausente na Europa, dirigiu-se a Lisboa especialmente para auxiliar a sua retirada, correndo por conta de José Bonifácio as despesas de viagem (Testamento do Patriarcha, na Chronologia Paulista, de J. J. Ribeiro, 1º V. pág. 642, c. 1ª), que importaram em 1.780$000 réis, a saber: passagens de Lisboa ao Rio - 1.170$; passagem do Rio a Santos - 180$; dinheiro adiantado na mesma ocasião - 510$; uma letra de câmbio - 280$000 réis. Alexandre Vandelli, que foi mestre de ciências naturais dos príncipes brasileiros, faleceu no Rio a 13 de agosto de 1862.

[9] DR. MELLO MORAES - História das Constituições Políticas do Brasil (Tomo I, página 372, edição de 1871).

[10] História da Independência do Brasil, página 213.

[11] CONSELHEIRO SILVA MAIA - Opúsculo citado.

[12] "A verdadeira política é filha da Razão e da Moral", dizia ele na Representação apresentada em 1823 à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravidão (edição santista de 1886, não mencionada na Bibliographia Andradina do sr. Remígio de Bellido e impresa na tip. a vapor do Diário de Santos, página 27).

Tal representação, que, quando publicada em 1825, foi transladada para o inglês, não chegou a ser apresentada à Constituinte por ter sido esta dissolvida inesperadamente. (HOMEM DE MELLO, Esboços cit. pág. 35, nota 15).

[13] O VISCONDE DE S. LEOPOLDO (Memórias, pág. 10), descreve-nos em rápidas linhas incisivas o que era o ensino primário em Santos por aquele tempo. Depois da expulsão dos jesuítas, não havia escolas conceituadas e os pais recorriam às tíbias luzes dos seus honrados caixeiros. A gramática latina era ensinada por mestre João Floriano, tipo exemplarmente acabado dos pedagogos de então - "ignorante, duro e vingativo".

[14] Ofício do governador e capitão-general Castro e Mendonça ao secretário d'Estado, d. Rodrigo de Sousa Coutinho (Docs. ints. Vol. XXX, pág. 45).

[15] O diploma de bacharel em Filosofia Natural acha-se no Instituto Histórico do Brasil, onde colhemos esta e outras datas que seguem e cuja procedência citaremos.

[16] LATINO COELHO - Obr. cit. pág. 12.

[17] Diploma existente no Instituto Histórico do Brasil.

[18] CONS.º DR. SILVA MAIA - Obr. cit. (Rev. do Inst. His. do Brasil, V. 8º, página 116).

[19] CONS.º DR. SILVA MAIA - Obr. cit. pág. 120. VARNHAGEN, ob. cit.

[20] LATINO COELHO (obr. cit. pág. 11) troca-lhes os nomes pelos de Manuel Ferreira de Araujo Câmara, equívoco em que incide também o dr. Estêvão Leão Bourroul, na biografia já citada.

[21] PEREIRA DA SILVA - Varões Illustres, página 258, 2º volume.

[22] LATINO COELHO - Obr. cit. pág. 52, nota 3ª.

[23] O título desta Memória é o seguinte: Memória sôbre a pesca das baleias e extracção do seu azeite; com algumas reflexões a respeito das nossas pescarias; e foi publicada no tomo 2º, páginas 388 a 412, das Memórias Económicas da Academia de Sciências de Lisboa, ano de 1790. Assim o registra o sr. REMÍGIO DE BELLIDO (obr. cit. 1ª parte, pág. 17, nº 1).

Mas SACRAMENTO BLAKE (obr. cit. 4º v. pág. 346) dá-lhe, não sabemos com que base, este outro título: Memória sobre a pesca da baleia, sobre os melhores processos para preparar o azeite e sobre as vantagens que o Governo tiraria animando e favorecendo as pescarias que se poderiam fazer nas costas do Brasil; e acrescenta: "Foi publicada nas Memórias da Academia Real de Sciências de Lisboa, tomo 2º, págs. 388 a 412, ano de 1790". Por aí se vê que é da mesma Memória que se trata, sendo diferentes apenas os títulos.

Como, porém, José Bonifácio, em  nota apensa à pág. 11, promete uma segunda Memória na qual, além da correção do velho método de extrair o azeite, exporia outro, mais fácil, mais asseado e menos dispendioso, o sr. REMÍGIO, pensando que o título dado por SACRAMENTO BLAKE era o da nova Memória prometida pelo autor, transcreveu-o na pág. seguinte, 17, sob nº 5, como obra distinta da primeira, mas com tamanha inadvertência que não reparou que a indicação bibliográfica era a mesma: Memórias da Academia, 1790, tomo 2º pág. 388.

[24] AZEVEDO MARQUES - Obr. cit. pág. 42.

[25] JOSÉ BONIFÁCIO - Memórias citadas, seção II, página 402, nota a e página 404. O autor enumera as várias causas que determinariam, e de fato determinaram, o desaparecimento das baleias de toda a nossa costa marítima, fenômeno que fatalmente se daria ainda que os navios a vapor ficassem por inventar.

[26] Obr. cit. capítulo VIII, pág. 227.

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