Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0188o.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 05/26/07 22:57:31
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Igrejas
Igreja do Valongo resiste ao tempo (1)

Leva para a página anterior
Matéria publicada no domingo, 1º de julho de 1980, pelo jornal santista A Tribuna:
 
Os altares com detalhes em ouro aparentam ostentação. Mas a Igreja do Valongo atravessa um período de carência, como o bairro onde está instalada desde 1640.

O cenário mudou muito. Não se encontra mais o riacho de águas tranqüilas que passava diante da igreja. As residências de luxo desapareceram.

Hoje, por ali, trafegam pesados caminhões, que sacodem a velha carcaça da igreja. Nos hotéis e nos bares das redondezas há gente sem esperança; nos sebosos porões há famílias famintas; e nos becos há pessoas trazidas de longe pelos trens.

Para atender a toda essa gente da paróquia, que envolve os morros e os bairros da periferia da Cidade, a igreja recebe migalhas - é a mais pobre de Santos.

E apesar dos valores históricos que guarda, não é tombada pelo Patrimônio Histórico, e nem está em vias de tombamento.

No dia 12, véspera de Santo Antônio, a igreja completa 340 anos de fundação. Hoje, começa a trezena comemorativa da data: haverá quermesse como nos velhos tempos, com pipoca, quentão, caldo verde, jogos e bandeirinhas. Todo esse ambiente de festa quebrará a rotina da igreja barroca, esmagada entre a estação e as transportadoras. Mas imponente.


Nos altares, detalhes em ouro de uma igreja barroca...
Foto: Arnaldo Giaxa, publicada com a matéria

Da chegada à decadência

Aos 340 anos, a Igreja do Valongo cuida dos carentes. E resiste

José Carlos Silvares
Fotos de Arnaldo Giaxa

A temporada de caça aos índios foi aberta no século XVII: já não se escravizava só os negros. No meio dos índios, protegendo-os, os jesuítas faziam de tudo. Até que foram acusados de dar armas aos indígenas. A situação esquentou. Não demorou muito e a relação entre o povo e os jesuítas estremeceu, culminando com a expulsão gradativa dos padres. Primeiro, deixaram Santos e São Vicente; depois, o resto do País. Os tempos já eram quentes naquela época.

Foi nessa brecha que os franciscanos chegaram à região. O povo de Santos, praticamente sem religiosos, aproveitou a visita que o prelado maior dos franciscanos, Frei Manuel de Santa Maria, fazia ao Rio, em 1638, e enviou-lhe uma representação por meio da Câmara, pedindo que os franciscanos se instalassem aqui.

Alguns dias depois, o frei aportava em Santos, a caminho de São Paulo, onde inaugurou dois conventos da ordem. Em seguida, voltou a Santos para examinar pessoalmente o pedido dos santistas. Constatada a falta de religiosos, o frei passou a procurar um bom local para a instalação da igreja.

O Valongo foi escolhido. Ali habitavam as famílias abastadas, que poderiam ajudar na construção e na manutenção da igreja. O Valongo era cortado por um riacho que vinha do Morro de São Bento e desaguava no canal do porto. As terras à margem desse riacho foram logo doadas pela Câmara. Santos tinha pressa: os franciscanos também.

As obras começaram no dia seguinte ao da obtenção da licença eclesiástica: 18 de janeiro de 1640. Para cá vieram quatro sacerdotes e três irmãos leigos. Frei Pedro de São Paulo foi eleito superior da casa de Santos.

Construída com a ajuda do povo e dos escravos, a igreja já estava em condições de ser habitada quatro meses depois. No dia 12 de junho de 1640, véspera de Santo Antônio, os padres mudaram-se para lá. A data foi mantida como a da inauguração da Igreja de Santo Antônio do Valongo. Um ano depois, eram fundados o convento (à direita da igreja) e o prédio da Ordem Terceira da Penitência (à esquerda).

Decadência, destruição - As informações dos livros de termo e de toda a documentação em latim existentes no arquivo da Ordem Terceira - reunidas pacientemente pelo frei Basílio Rower no livro O Convento de Santo Antônio do Valongo, de 1955 - contam que em fins do século XVIII e início do século XIX, a situação do convento e da igreja era de decadência. O número de religiosos diminuía. A situação era tão precária que os documentos revelam que pedaços de terras do convento foram vendidos ou cedidos, para cobrir despesas. Também outras ordens religiosas entravam em decadência: faltavam vocações, a disciplina fora relaxada...

Frei Basílio revela no livro que, em 1859, o convento estava em más condições e que no ano seguinte, em carta aos superiores franciscanos, o Barão de Mauá, concessionário da Estrada de Ferro São Paulo Railway (a inglesa), pretendeu comprar o prédio do convento, para instalar ali a estação terminal de Santos. Mauá dizia que à desapropriação judicial preferia um acordo amigável e oferecia a irrisória quantia de 12 contos de réis. Os frades não aceitaram; a empresa entrou com a ação judicial. Mas, em 1861, houve um acordo, e o convento foi vendido por 20 contos de réis. A estação tomou o lugar do convento.

Os documentos dizem ainda que os empregados da companhia tentaram apoderar-se da igreja, mas o povo não permitiu, mantendo vigília diante do prédio. A partir de 1861, a igreja foi entregue à Ordem Terceira, que recuperou o prédio. Várias obras se seguiram, alterando tanto o interior como o exterior do edifício.

Valores históricos - A parte superior da igreja (frontispício), na opinião da historiadora Vilma Terezinha de Andrade, pode ser considerada um valor histórico, do ponto de vista arquitetônico, e foi qualificada por especialistas como um dos barrocos mais bonitos do século XVIII.

Há, também, imagens valiosíssimas, como a de Maria Madalena, um barroco da Ordem Terceira; a imagem de Nossa Senhora da Conceição, do século XVII, que está na sacristia da Ordem Terceira; o Cristo Místico com o crucificado de seis asas, no altar-mor; e outras imagens do altar. Os tocheiros da Ordem Terceira, a cruz do pátio frontal da igreja e a biblioteca também podem ser considerados valores históricos.

Na parede ao lado direito de quem entra, na igreja, há uma placa de 1823 que comemora a passagem do monsenhor Giovanni Mastai Ferretti, que mais tarde foi eleito papa, com o nome de Pio IX. Monsenhor Ferretti descansou no convento, de passagem para o Chile, onde foi em missão apostólica. Enquanto esteve em Santos, aproveitou para participar de festejos e presidir procissões. Pio IX foi papa entre 1846 e 1878, período em que a Igreja perdeu grande parte dos seus bens. Em 1874, Pio IX proibiu os católicos de participarem da vida política.


...sacudida pelo tráfego pesado dos caminhões, num bairro de muita carência
Foto: Arnaldo Giaxa, publicada com a matéria

Pelourinho no pátio?

Uma coluna de pedra, bastante parecida com um pelourinho, escondida nos jardins do Pátio da Ordem Terceira da Penitência, intriga o visitante. Afinal, Santos não preservou, ao que se sabe, nenhum dos dois pelourinhos que teve no passado, e que são do conhecimento histórico.

Mas o que significa, então, aquela coluna de pedra com mais de dois metros de altura e com incrustações de ferro em dois lados? O pelourinho era o símbolo da autoridade e da Justiça, e onde se castigavam os exploradores, os ladrões, que ficavam em exposição pública ou recebiam açoitadas. O que estaria fazendo uma peça dessas diante do prédio da Ordem Terceira dos Franciscanos? Há quem diga que aquela coluna foi uma cruz, que perdeu os dois braços, e os dois pontos de ferro seriam as hastes de sustentação dos braços.

O poste intrigou também a historiadora Vilma Terezinha, que esteve no local para tentar identificá-lo: "A peça assemelha-se a um pelourinho, embora não tenha algumas características, como a esfera no topo. É preciso pesquisar a respeito, para ter certeza de que se trata ou não de um pelourinho".

Na igreja e na Ordem Terceira, ninguém sabe informar ao certo sobre a origem da peça. Também o livro de frei Basílio Rower não esclarece a respeito. E não se tem conhecimento da preservação dos dois pelourinhos que existiram na Cidade.

A indicação desses dois pelourinhos está no livro Santos Noutros Tempos, de Costa e Silva Sobrinho. O primeiro era conhecido por pelourinho velho e foi levantado por Braz Cubas no local onde hoje se encontra a Casa do Trem. O segundo ficava no pátio do Carmo, entre a área onde hoje estão as praças da República e Barão do Rio Branco. Foi erigido em 1697, depois do episódio da deserção dos quartéis, cuja guarnição refugiou-se no Valongo, conforme narra frei Gaspar, à página 212 de suas Memórias. Este último pelourinho foi derrubado pelo povo, à época da Independência.

Benedito Calixto pintou os dois pelourinhos: o velho (conjectural) está no quadro da Fundação de Santos; o outro, aparece em parte no quadro da antiga Casa da Câmara e Cadeia do Largo do Carmo.

Sino e escravos - Nos fundos da Ordem Terceira há um sino que, na versão dos frades, era usado sempre que um escravo era torturado nas proximidades. A peça é chamada de sino dos escravos. A historiadora Vilma Terezinha, entretanto, revela que o sino era usado para anunciar o enforcamento de condenados. Com base em pesquisas, ela diz que na área detrás do convento, fora da Cidade, existia uma força pública, onde eram executados os condenados à morte por enforcamento. Essas pessoas aguardavam a sentença no pátio próximo ao sino, na Ordem Terceira da Penitência, onde há uma imagem do século XVII, desgastada pelo tempo, de Nossa Senhora da Conceição.

Há, ainda, uma outra curiosidade: a existência de escravos no convento. O fato é narrado por frei Basílio Rower, em seu livro, com base nos registros do recenseamento de 1798 e do inventário de 1853, existentes no arquivo da Ordem Terceira. Os documentos revelam que o convento mantinha alguns escravos, em número reduzido, que ajudavam nos afazeres, eram bem tratados e andavam livremente. Todos eles, a exemplo do que aconteceu com os escravos de toda a região, foram soltos bem antes da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.


A misteriosa coluna
Foto: Arnaldo Giaxa, publicada com a matéria

Zona de fome e de medo

1 - O homem negro está lá, estendido na calçada.

2 - Os caminhões trafegam barulhentos e esfumaçantes.

3 - Uma família dorme sobre trapos, na porta da estação.

4 - Há brigas nos bares; a cachaça enlouquece.

5 - Joana ganha a vida nos hotéis dos prédios históricos.

Assim vive o Valongo, hoje. As luxuosas residências, a ostentação das famílias e o riacho de águas limpas deram lugar aos prostíbulos, às famílias carentes, ao trânsito infernal dos caminhões que vêm do porto. No meio de tudo, sacudida pelo tremor dos trens e das carretas, a igreja se destaca, portões abertos a eventuais visitantes.

"Um brinco de princesa numa orelha de porca" - diz o pároco do Valongo, frei Abílio Amaral Antunes, referindo-se à igreja e ao contexto que a envolve - o antigo Centro de Santos.

É por tudo isso que os paroquianos deixaram de freqüentar a igreja matriz, principalmente à noite, quando o medo aumenta. E as duas igrejas da paróquia - a de Nossa Senhora da Assunção, no Morro de São Bento, e a de Nossa Senhora de Fátima, na avenida do mesmo nome - passaram a ser preferidas pelo povo da região.

A paróquia existe desde 1923 e abrange uma grande área carente: os morros que dão face para o Valongo, os bairros da Zona Noroeste e os jardins Piratininga e São Manoel, até a divisa com o Casqueiro. É uma área de difícil atuação. Os recursos financeiros da igreja são baixos. "Aqui se vive de migalhas. Temos a paróquia mais pobre da Cidade, embora nossa área de atuação seja tão difícil", diz Frei Abílio que, com freqüência, recebe gente de outras cidades, chegada de trem, sem destino certo, e que vai bater palmas na igreja, pedindo qualquer tipo de auxílio. A região também está repleta de porões com várias famílias vivendo nas condições mais subumanas.

Os dois casarões do Largo Marquês de Monte Alegre - que serviram de Câmara e Prefeitura a partir de 1867 - abrigam hoje hotéis de baixa categoria. Nos bares, reúnem-se motoristas de caminhão, prostitutas, desocupados; as brigas são freqüentes. Há crimes de morte. Nada disso acompanhou a urbanização que a Prefeitura tentou implantar na área, dando um ar de saudosismo ao bairro.

Renovação - Os constantes abalos, sofridos com a passagem dos caminhões e dos trens, causam estragos à estrutura da igreja e da ordem. Por isso, vez ou outra, as paredes e os nove altares com detalhes em ouro passam por reparos.

Assim aconteceu há algumas semanas, quando a Ordem Terceira teve que reconstituir os altares, também tomados de cupim. Sem recursos, a igreja foi obrigada a passar livros de ouro pelas empresas das proximidades e arrecadar verbas com promoções beneficentes. Assim vive uma das mais antigas igrejas da região. Uma sobrevivência que vem se arrastando a cada ano. Exemplo disso é o livro de frei Basílio Rower, com edição de dois mil exemplares vendidos em benefício da restauração da igreja e da Ordem Terceira, em 1955.

Mas o trabalho continua. E uma nova mentalidade está nascendo entre jovens franciscanos, integrantes da Juventude Franciscana - Jufra -, que se movimentam no sentido de dinamizar o trabalho com o povo, numa atuação mais direta, mais abrangente, numa paróquia carente e que exige nova metodologia. Os 94 cadastrados na Ordem Terceira têm média etária de 62 anos, daí o movimento dos jovens para renovação dos franciscanos.


A grade separa a igreja da Ordem 3ª
Foto: Arnaldo Giaxa, publicada com a matéria

N. E.: Registre-se que, na área da igreja do Valongo, a coluna de pedra que se cogitou ser parte de uma cruz de pedra ou de um pelourinho, na verdade é apenas uma coluna de portão (e existem duas delas). Como explica Paulo Gonzalez Monteiro, da Secretaria de Turismo de Santos, em mensagem a Novo Milênio em 16/5/2007:

"Na realidade não há uma, mas duas colunas que agora estão deitadas próximas à entrada do Santuário. Como pode ser conferido em imagens antigas, os postes nada mais são que as colunas que sustentavam o antigo portão gradeado e que após alguma reforma foram substituídas pelas atuais".

Leva para a página seguinte da série