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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MEDICINA - BIBLIOTECA NM
Santa Casa de Misericórdia (30-H)

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Em 1943, o mais antigo hospital e a primeira Irmandade da Misericórdia do Brasil completou 400 anos de atividade, sendo redigidas e compiladas por Álvaro Augusto Lopes estas Memórias dos Festejos Comemorativos do 4º Centenário da Fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos - Novembro de 1943. A obra de 235 páginas foi impressa na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, em 1947.

Um exemplar foi preservado na Biblioteca Pública Alberto Sousa, que por sua vez o cedeu a Novo Milênio para digitalização, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010 (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 128 a 144):

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Santa Casa de Misericórdia de Santos

Memórias dos festejos comemorativos do 4º centenário da fundação do hospital - Novembro de 1943

Alvaro Augusto Lopes

Redação e compilação

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9 de novembro de 1943

Semana Médico-Social (cont.)

Sessão solene promovida pelo Departamento do Serviço Social

No recinto do Consistório, realizou-se às 16 horas uma sessão solene, promovida pelo Departamento do Serviço Social de Santos, e presidida pelo dr. Euclides de Campos, diretor do Fórum.

Entre os assistentes havia médicos, advogados, magistrados, promotores públicos, diretores de instituições pias, exmas. senhoras e voluntárias da OFAG.

À mesa de honra, além do presidente, sentaram-se os srs. dr. A. Gomide Ribeiro dos Santos, prefeito municipal; monsenhor Luiz Gonzaga Rizzo, vigário geral da diocese; dr. Afonso Celso de Paula Lima, delegado auxiliar de polícia; J. J. Azevedo Marques,vice-provedor da Santa Casa; Polidoro de Oliveira Bitencourt, prefeito de S. Vicente; prof. Ernesto Souza Campos, dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, dr. Gervásio Bonavides e dr. Alves Feitosa.

Abrindo a sessão, o dr. Euclides de Campos explicou sua objetividade e transmitiu a palavra ao dr. Gervásio Bonavides, que, referindo-se à comemoração do 4º centenário da Santa Casa, enalteceu o sentido da Semana Médico-Social, elogiando os oradores que já se fizeram ouvir, o embaixador Macedo Soares, prof. Clementino Fraga e o sr. Valentim Bouças. E fez também o elogio do orador daquela sessão, sr. Joaquim Alves Feitosa, advogado encarregado da Procuradoria do Serviço Social em Santos, instituição que, segundo sua expressão, realiza o milagre da caridade no seio da Justiça.

A oração do dr. Gervásio Bonavides é a seguinte:

"Exmas. senhoras.

"Meus senhores.

"Ressoam nesses dias e nesse lugar festivos, em ondulações orquestrais, as vibrações canoras da inteligência,cultuando quatro centúrias de exaltação piedosa, em louvor à obra inestimável de benemerência desta ruidosa instituição de caridade.

"Vamos em meio das homenagens comoventes que lhe são devidas e para as quais a elas vieram associar-se os expoentes máximos da intelectualidade brasileira.

"Macedo Soares trouxe, desde as suas remotas origens, a risonha idealização dessa obra imperecível de amor ao próximo e de carinho às suas dores e sofrimentos, para melhor aproximar o homem de Deus. Penetrou, fundo, nas suas raízes históricas, para enaltecer a instituição até o cume de sua maravilhosa impotência, que não se diluirá jamais na consumidora ampulheta dos tempos. Trabalho erudito, voltado, todo ele, a uma rigorosa observação de detalhes, que lhe marcará, definitivamente, toda a sua sobrevivência e desafiarás obre ela as longevitudes seculares.

"Iniciando-se a Semana Médico-Social, essas arcadas venerandas agasalham a luz de uma inteligência poderosa, que é toda a expressão do sentimento, de cultura e de bondade. Clementino Fraga, olhando paternalmente para os médicos que aqui mourejam, nesta casa que é um hospital,não esqueceu de lhes aquecer a sensibilidade, numa lição de ensinamentos proveitosos. A essa altura, a ciência acode ao mestre para que a sua palavra deslize, serenamente, nas escarpadas do seu pensamento criador.

"Depois disso, a meio de uma sonoridade comunicativa e estonteante, se exalta o homem de letras, no escrínio modelar da pompante beleza da frase, em períodos de ouro, de vagas duradouras e eternas.

"Um rio de águas claras e marulhantes, rolando, majestoso e dolentemente, no estuário, em sussurros ao sol, e em cujas margens adjacentes impera a música da prosa e a música do verso.

"A cadência mágica do poetar de Vicente de Carvalho e Martins Fontes se confunde no mesmo ritmo de emoção espiritual. E a errante harmonia do belo, na plangência de seus acordes, enche de muito esplendor místico as ternas e doces evocações.

"Valentim Bouças, a operosidade em ação, veio trazer a sua cooperação afetiva à terra que lhe serviu de berço e ao sodalício que lhe honra a terra, em prodigalidade sentimental, para derramar o seu coração no trabalho tentacular que se realiza nas Amazônias destes brasis afora.

"E como se tudo isso não fosse o desfecho de uma jornada já de glórias, recebe a Santa Casa a honra desta solenidade, que decorre de uma admirável parcela da administração pública de S. Paulo

"O serviço da Procuradoria Social realiza o milagre e caridade, no seio da justiça, 'que é o direito iluminado pela moral, protegendo os bons e úteis contra os maus e nocivos, para facilitar o multifário desenvolvimento da vida social'.

"Há precisamente três anos, chegava a esta cidade o dr. Joaquim Alves Feitosa, a mando de dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, advogado chefe da Procuradoria, para instalar esses serviços. Vinha sozinho, sobraçando uma pequena máquina de escrever. Não tinha, sequer, um lugar para trabalhar, como um cenobita que trabalha, a esmo, somente para servir a humanidade melhor do que merece a Deus. A então incipiente Procuradoria Social lutava com os mais sérios obstáculos e, se não fosse realmente a vontade dinâmica do seu diretor, os serviços dessa natureza haviam desaparecido de Santos. Mas, esse grande beneditino da justiça social, que é Pedro Xisto, a cujos talentos eu tenho a honra de lançar todas as flores de minha homenagem, não esmoreceu, não desanimou e não trepidou em hospedar-se na minha própria sala de trabalhos, no Fórum local. Recebi-o, eu e o dr. João Batista de Arruda Sampaio, então curador de menores, com assentimento do dr. Euclides de Campos, e recebi-o, meu caro Pedro Xisto, com o desborante defluir de reminiscências de nossa vida acadêmica, na saudosa Faculdade de Direito de Recife, onde nós ambos sonhávamos os mesmos sonhos, pelejávamos as mesmas pelejas, trabalhávamos pelos mesmos ideais, em plena mocidade em flor.

"Já naquela época a sua floração mental não era apenas uma esperança, mas, ao revés, uma realidade forte, dirigindo e orientando a vida acadêmica, à frente de seu centro de cultura.

"É com profunda ambição de contentamento que olhamos para trás, na longa curva do caminho, para reverenciar a velha escola que nos deu a luz da sabedoria jurídica e tanto tem engrandecido, como a de S. Paulo, o solo pátrio, como centro de irradiação mental.

"De então para cá, a Procuradoria Social avolumou e desenvolveu os seus trabalhos, de tal arte que ela é hoje uma necessidade palpável no nosso organismo judiciário. Testemunha presencial desse prestimoso serviço público, bem posso agradecer aos seus dirigentes a colaboração que eles vêm aqui fazer, trazendo, com uma seção própria, no dia de hoje, aos pobres da Santa Casa, a lei protetora, em todas as atividades da vida jurídica a seu alcance.

"A esse propósito, vem a talha o acerto de René Roland: 'Não se saberá louvar bastante os poderes públicos quando, fora de todo o espírito do sistema e com o único amor do bem, eles entrarem francamente no caminho que conduz a grandes progressos pela elevação moral dos indivíduos, da humanidade e da pátria'.

"Essa é a missão encantadora da Procuradoria Social e que em Santos tem como abnegados servidores os drs. Joaquim Alves Feitosa e dr. Carlos Dias, o primeiro dos quais traçará perante esta douta assembléia os grandes empreendimentos do sistema em foco, como lídimo encarregado de sua generosa realização.

"'O patriotismo – disse um grande mestre – é a forma social do amor, e como tal, é força irresistível e incomensurável; aos fracos dá alento, aos dúbios decisão, aos descrentes fé, aos fracos ilumina, a todos une, num feixe indestrutível, quando é preciso agir ou resistir; não pede inspiração do ódio e não mede sacrifícios para alcançar o bem comum'.

"A Santa Casa, de pé, vos agradece".

Fez em seguida uso da palavra o dr. Joaquim Alves Feitosa, que assim se manifestou:

"Exmas. senhoras, exmos. senhores juiz diretor do Fórum de Santos, prefeitos municipais de Santos e S. Vicente, representante da s. excia. revdma. o sr. bispo de Santos, srs. médicos e mesários da Santa Casa e demais ilustradas autoridades.

"Cabe-me, inicialmente, agradecer as palavras amigas que a meu respeito pronunciou o sr. dr. Gervásio Bonavides, ilustre curador-geral da Comarca, palavras que eu, em virtude da boa amizade existente entre nós, de antemão sabia que seriam tocadas de simpatia e generosidade. Quando, exmas. senhoras e exmos. senhores, pelo fato de ser o advogado encarregado da Procuradoria de Serviço Social em Santos, recebi honrosa incumbência de transpor os umbrais deste recinto sagrado e sapientíssimo para falar, confesso aqui publicamente, agarrei-me nada menos do que a Nosso Senhor Jesus Cristo, o divino protetor dos fracos, para que me valesse. E agora me desculpo: fora eu a S. Paulo e, ao regressar, sem de nada saber, encontrei a coisa feita, e já noticiada nos jornais. Não me era mais possível, pois, esquivar-me, e, ao mesmo tempo, bem natural era minha aflição; porque, senhores, estas comemorações do quarto centenário da Santa Casa de Santos têm, por sua própria natureza, um caráter tão comovedor e grandioso que, dentro delas, eu não queria para mim nada mais do que um lugar à sombra, de onde eu pudesse, tranqüilo e embevecido, apreciar o desfile da ciência, que por tantos de seus luminares acorre de vários pontos do país; e, do meu delicioso recanto, ouvir extasiado a palavra da ciência suma e altíssima; e, pela voz de tantos oradores laureados, a história quatro vezes secular desta Santa Casa, que, repito, é templo, é casa e Deus, e casa de sábios, e é fortaleza de heróis que consumiram e consomem suas próprias vidas nas intermináveis vigílias do bem, na luta contra a morte e contra a dor; no árduo pelejar para o sustento desta instituição, desde o início da nacionalidade, pugna travada em prol do Brasil que mal abria os olhos para a civilização cristã, recém-transplantada para estas esplendorosas mas ásperas e selvagens regiões tropicais.

"Nestas paredes antigas, que neste local se alteiam desde 1836, impregnou-se um espírito sublime: nas suas moléculas penetraram as vibrações de dor do homem; da dor que corrige e abate orgulhos, que purifica, que redime e diviniza a criatura, obrigando-a a olhar angustiada e humilde para o céu, na ansiosa procura de Deus e penetraram-nas, santificando-as, as vibrações do espírito desses anjos tutelares que, sob a forma humana de médicos, de enfermeiros, de sacerdotes, de mordomos e provedores, têm dado o melhor de sua ciência, de sua energia, de suas vidas enfim, no combate ao sofrimento humano.

"Mas, para dentro destas paredes sagradas, não se mudou em 1836 apenas a instalação material de uma Santa Casa; para este recinto veio o mesmo espírito de 1543, de há quatro séculos passados, quando Braz Cubas, português votado ao Brasil, ao seu rei na terra e a Jesus Cristo no céu, e inspirado pela doutrina suavíssima que ressuma do Sermão da Montanha – levantou com quatro paredes um hospital, e escreveu-lhe no pórtico rústico e pequenino os dizeres tão grandes, tão formosos como a superior bondade cristã: - 'Casa de Deus para os homens e porta aberta ao mar'.

"É preciso notar, senhoras e senhores, que Braz Cubas, guerreiro e colonizador, revelou nessa inscrição não só o seu irresistível e eficiente pendor para o bem, como marcada vocação poética, pois nessa inscrição – Casa de Deus para os homens e porta aberta ao mar – encerra-se também muita poesia, e da mais formosa, que é a que salta espontânea diretamente do coração, como a água cristalina rebrilha ao sol deixando o seio da rocha viva.

"Aqui dentro destas paredes, velando amargurados ao lado de agonias, ou sorrindo vitoriosos junto ao leito dos convalescentes, médicos doutíssimos mergulharam profundamente seus pensamentos em busca de uma solução salvadora para vidas que se extinguiam ou que periclitavam. E essa concentração profunda de pensamento médico na descoberta da víscera doente do remédio próprio vem se prolongando aqui há quatrocentos anos, de tal maneira que se esse pensamento, por vezes suado e torturado, gotejasse, e formasse concressões, ele tomaria a forma de altíssimas estalactites. Estas, espiritualmente, estão na realidade formadas, e significam o imenso cabedal de experiência acumulada, verificada e sancionada como ciência.

"E de início, senhoras e senhores, lá pelos remotos mil e quinhentos e mil e seiscentos e tantos – reconheçamo-lo agradecidos – esses médicos eram quase sempre os próprios sacerdotes da igreja católica, eis que não tínhamos aqui físicos e cirurgiões do reino. Eram porém eles, os padres jesuítas, os melhores cultores da ciência àquele tempo, entre nós; eram eles os nossos grandes naturalistas, os profundos botânicos e físicos do tempo, que observando pessoalmente e colhendo dos índios informações sobre as virtudes da nossa riquíssima flora medicinal; e eram eles os nossos grandes naturalistas, os profundos botânicos e físicos do tempo, que observando pessoalmente e colhendo dos índios informações sobre as virtudes da nossa riquíssima flora medicinal; e eram eles que, nesta colônia de sertão bravio e de litoral exposto aos corsários e piratas, eram eles, os sacerdotes de Cristo, que iam ministrando infusões e aplicando sangria.

"Quanta vez, no mesmo homem, se acomodaram e exerceram ao mesmo tempo as vocações de um grande sacerdote e de um grande médico, pelo menos do médico possível naqueles tempos – e uma coisa e outra foi por certo o nosso imortal José de Anchieta.

"Esta casa, desde o seu remotíssimo início, por natureza e por nome de batismo – Casa de Deus – foi templo; e, por destinação imediata, Santa Casa da Misericórdia – abençoado luzeiro a brilhar neste perdido recanto do então ignoto Novo Mundo.

"Por todos esses motivos, senhores, assustei-me quando fui surpreendido pelo dever de valar neste alto e magno recinto, quando já me não cabia recurso dessa decisão.

"E perguntei, ainda conturbado, ao meu prezado amigo, dr. Gervasio Bonavides: - 'Mas, no meio de solenidades tão grandes, falar eu o quê, em nome da nossa Procuradoria, em Santos, ainda tão modesta, e que diante dos quatrocentos anos da Santa Casa, está engatinhando nos seus três anos de idade?'

"- 'Dirá, respondeu-me peremptoriamente o Curador Geral, que a Procuradoria é uma Santa Casa jurídica para os pobres'.

"Essa definição, pois, certa ou errada, é dele. Todavia, na verdade, em um agravo interposto perante o Egrégio Tribunal de Apelação do Estado, já eu dissera: 'Esta Procuradoria é uma clínica de direitos de gente pobre!' E noutro recurso perante o mesmo Tribunal eu exclamara, apaixonado ao último ponto pela causa que defendia, quem sabe se sem razão: - 'Não sejam, porém, os médicos melhores que os juízes, que estes também devem cortar tumores e curar feridas! Porque a sociedade é um organismo vivo, atormentado de erros e de doenças físicas e morais, e, sob esse aspecto, o Direito é Medicina curativa!'

"De fato, senhores, na nossa Procuradoria não corre o sangue, mas há os portadores de feridas profundas, e os sofredores de dores lancinantes, para as quais não há, infelizmente, o recurso pronto das injeções sedativas; mas são dores reais, que abatem o espírito e aniquilam as energias do corpo. Não aparecem membros despedaçados, mas direitos com lesões gravíssimas, que se não forem tratadas em tempo, poderão levar o pobre ao manicômio, ao hospital de caridade ou às penitenciárias do Estado. E assim, tratando desses casos, dando-lhes adequado remédio jurídico a esses portadores do atestado de miserabilidade, a Seção de Santos da Procuradoria de Serviço Social obteve, no espaço de três anos de sua existência, mil e trinta e seis sentenças judiciais favoráveis aos assistidos.

"Porém, não viemos aqui proclamar o que a Procuradoria tem buscado fazer no sentido do reajustamento social dos desvalidos desta terra, e sim viemos – data venia – sustentar rapidamente um ponto de vista, o de que a assistência médica aos pobres e a assistência judiciária freqüentemente se completam, e, mesmo, que muita vez se torna uma indispensável à outra, para que o verdadeiro escopo de ambas, isto é, reajustamento e recuperação social do indivíduo fisicamente doente e economicamente débil, seja atingido.

"Se na doença física encontra-se a todo o momento a origem da ruína de um patrimônio material e moral, não é menos certo que na lesão de um direito, ou na falta de amparo à realização de um direito, encontra-se, muita vez, a origem do desespero, da desorganização do indivíduo e da família, da revolta, do desajustamento econômico e da miséria, e, portanto, da deficiência orgânica e da instalação da moléstia fatal ao organismo humano.

"Está se aproximando a hora em que será geralmente reconhecido e proclamado que o Direito não é nada cerebrino, nem fruto de lucubrações abstratas de gabinete, nem simples pilhas de Códigos e de coleções de leis, mas sim o mais importante ramo da Sociologia, ciência de laboratório, que é o imenso laboratório constituído pelos grupamentos humanos, cujas reações não são tão precisas e passíveis de redução a fórmulas como as reações realizadas no bojo das provetas, mas, nem por isso menos certas, menos profundas e decisivas, e afinal, felizes ou infelizes para a condução dos destinos da sociedade.

"O tempo está chegando em que o médico e o jurista fundirão fraternalmente seus esforços na consecução do bem social, ao invés de se colocarem em campos de atividade tão afastados um do outro, como se num deles se tratasse do movimento dos astros nos espaços infinitos, e no outro se decifrassem hieróglifos e caracteres cuneiformes.

"Socializa-se cada dia mais a nobre profissão médica, e, por sua vez, o direito social, isto é, o sistema legal de proteção aos economicamente débeis, mais se desenvolve. Aí está, modernamente, o mais forte traço de união entre ambas as atividades, a atividade médica e a atividade jurídica. Todavia, o Direito sempre teve profundas raízes na Medicina e na Biologia. Não só na criminologia, por sua fundamental dependência da Medicina Legal e da Psicopatologia, como em outras especialidades de Direito, as suas relações com a Medicina e a Biologia em geral são patentes.

"Realmente, o Direito, de certo modo,não é mais do que o invólucro protetor, regulador e moderador de energia vitais, das aspirações morais e das necessidades e instintos orgânicos, quer do indivíduo, quer das coletividades, isto é, dos instintos de nutrição e de multiplicação, de formação e de conservação e progresso do grupo social, dentro de normas gerais e superiores, tanto mais elevadas, justas e sábias, quanto mais alto o grau de cultura atingido pelo respectivo grupamento humano.

"Quando, porém, esses impulsos vitais,  energias orgânicas, se hipertrofiam e despedaçam as peias moderadoras da norma jurídica, então surgem os atos brutais de assalto individual ou de agressão e de conquista coletiva; e então, no comportamento puramente individual, manifesta-se a violência do salteador e do conspurcador de todos os preceitos nobres e dignificantes da existência humana; e, no comportamento coletivo, dá-se o desencadeamento brutalíssimo de rapinagem internacional; e é quando vemos, com a ruptura da norma jurídica. Asseguradora do desenvolvimento normal e moderadora dos instintos, é quando vemos, numa franca manifestação de predatismo – e o predatismo é um fenômeno biológico – a interdevoração dentro da mesma espécie humana; o mais forte despedaçando e devorando o mais fraco; e isso não só entre os canibais, como entre os trancos, soi-disant civilizados; do homem  feroz para com o seu semelhante: homo homini lupus; do grupo social feroz para com outro grupo social mais fraco; - vemos então a Holanda, a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Albânia e a Grécia – esta, a mãe gloriosa de toda a cultura ocidental – despedaçadas e devoradas pela monstruosa fome patológica, pelo predatismo, pelo orgulho delirante de paranóicos que os manicômios não recolheram em tempo oportuno.

"Contra a hipertrofia dessas terríveis personalidades psicopáticas, que lançam uns povos contra os outros, a força magnética e invencível do Direito – que é também Justiça – tem levantado a força dos exércitos, mas sem poder impedir que o sangue humano corra em catadupas. Porém temos fé, senhores, e especialmente vós, senhores médicos, em que o esplendoroso desenvolvimento da Medicina e, neste caso, da Psiquiatria, da Endocrinologia e da Psicanálise, tornará, em breve, impossível o desenvolvimento internacional desses trágicos desequilibrados, porque eles serão oportunamente reconhecidos nas suas taras, suas perturbações endócrinas, no seu hábito paranóico, e serão em tempo recolhidos a clínicas psiquiátricas, como perigosos megalomaníacos, histéricos mitomaníacos, e como loucos morais. Ainda mais esse benefício a humanidade sofredora espera do progresso da Medicina.

"Mas, busquemos ainda outra profunda correlação entre a Biologia e o Direito. Se a Biologia é a ciência da vida, e a vida é marcada nas suas diferentes fases, pela concepção do novo ser, pelo seu nascimento, crescimento, maturidade, decadência e morte, é bem claro que o homem, ainda no ventre materno, e depois no berço, e mais tarde na juventude, e, após, na estação dos frutos sazonados, e na velhice, e no ponto final do derradeiro batimento cardíaco – o homem tem sempre, quer queira, quer não o queira, ao redor de sua pessoa física e moral, um invólucro jurídico, que deve ser forte como uma armadura, mas que, se não for bem constituído, se romper na luta, ou se enfraquecer, a criatura se debilitará economicamente, e fisiologicamente, e iniciará, de modo fatal, a decida que termina na miséria, no hospital de caridade e na cadeia pública.

"Quando o direito recolhe as energias físicas e efetivas que levam à constituição da família humana, e regula institutos tais como o matrimônio, pátrio poder, não faz mais do que impor à proto-energia reprodutiva os imperativos da consciência jurídica, da moral e da religião cristã.

"Da  mesma forma, quando o direito civil, no direito das coisas regula a posse e a propriedade dos bens materiais, está dando preceito, de acordo com a cultura geral da época, a uma outra força orgânica tremendamente poderosa, isto é, ao instinto de nutrição, a suprema força vital e orgânica, que agita desde os últimos seres monocelulares aos mais complexos grupamentos sociais.

"Onde, senhores, maior entrelaçamento do Direito Social e da Medicina Social do que nas leis trabalhistas? Onde, mais do que nesse ramo jurídico, a colaboração do médico e do jurista é mais íntima? O médico e higienista apontando as medidas indispensáveis à defesa orgânica do operário em geral, do menor trabalhador, da operária gestante, do repouso da operária antes e depois do parto, dos descansos especiais para amamentação do recém-nascido etc. O jurista e legislador, recolhendo cuidadosamente esses preceitos da ciência médica, para dar-lhes a forma jurídica possível dentro da estrutura legal do país, fazendo-os absorver pelo organismo jurídico nacional, isto é, articulando-os organicamente com as normas do Direito Constitucional, com o Direito Civil e Penal, e com possibilidades da organização economico-social do país.

"Assim, a função social do médico e a função social do advogado são sinérgicas e irmãs, indispensáveis uma à outra para que ambas atinjam, não elementarmente, mas superiormente, o mesmo fim, que é o bem extra-individual e coletivo. Eis pois, senhores, porque venho aqui sustentar o ponto de vista de que a assistência médica para os pobres – nem sempre, é certo, mas num sem número de casos – exige como complemento indispensável a assistência judiciária, se não se visar apenas tirar momentaneamente esse pobre do estado de doença que o inutiliza socialmente.

"E, mutatis mutandi, a assistência judiciária, muita vez, torna-se inoperante e até mesmo impossível, sem a imediata colaboração da assistência médica.

"São do eminentíssimo professor Clementino Fraga, que ainda anteontem nos encantou a todos com a sua palavra tão rica de beleza e de ciência, estas palavras de largo descortino transcritas de sua excelente monografia, Medicina Social:

'A Assistência Social abona a personalidade médica na expansão, transpõe o dever clínico, modesto e unilateral, realizando obra de outro vulto, porque de proteção do maio número sem distinção de classe, condições e hierarquia. É, pois,o trabalho que visa a comunhão social, que se inspira nos votos auspiciosos de sua defesa, que busca o benefício comum da solidariedade do movimento tutelar. Assim a obra da Medicina preventiva vai da subtração do contágio ao cuidado da resistência individual, aos imperativos orgânicos da higidez às cogitações da previdência social'.

"Ora, a previdência social ultrapassa o âmbito puramente médico e higiênico.

"Senhores: colaboração, eis a palavra mágica para as realizações da assistência social integral. Colaboração ampla e intensa, entrosamento perfeito entre as diversas instituições assistenciais de finalidades específicas diversas, eis a fórmula para consecução desse ideal tão claramente exposto pelo eminentíssimo mestre. E onde, melhor do que em Santos, poder-se-á praticar essa assistência integral? Parece-nos que em nenhuma outra parte do mundo. Porque, senhoras e senhores, a gente desta terra é singularmente acolhedora e colaboradora de todos os impulsos nobres. As suas instituições particulares de assistência social tão notavelmente bem organizadas. Parece que todos têm a volúpia de colaborar. E não há como fazer distinções.

"Encarregado, nesta cidade, de um serviço social público, que me foi entregue pela honrosa confiança que em mim depositaram meus chefes, o eminentíssimo cientista, médico e homem público, o dr. Francisco Salles Gomes Junior, diretor geral do Departamento de Serviço Social, e dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, ilustre diretor advogado chefe da Procuradoria, aqui presentes, eu posso sinceramente declarar que nada tenho feito que mereça menção especial, porque aqui em Santos todos ajudam a trabalhar pelo bem coletivo, e quem não fizer alguma coisa pelos desvalidos nesta terra, é porque não tem jeito mesmo: o Ministério Público, os cartórios, hospitais, asilos, sociedades de beneficências em geral.

"Da Justiça, que havemos de dizer, se o diretor do Fórum, o meritíssimo juiz da 1ª Vara, essa estimadíssima e paternal figura do dr. Euclydes e Campos é um dos visitadores da Sociedade S. Vicente de Paulo, que com as suas próprias mãos distribui pelas casas dos pobres os dons de sua imensa bondade?

"É bem possível que, em tanta e tão singular magnanimidade, tenha influído profundamente, como escola, esta Santa Casa que há quatrocentos anos cultiva e ensina pelo exemplo a prática do bem.

"Quanta vez, senhores, os nossos assistidos, famintos de Justiça, têm também urgentes necessidades de pão para mitigar sua fome, e assim, temos invariavelmente batido ás portas da nunca assaz louvada Sociedade S. Vicente de Paulo, para que os alimente. No início, ainda incipiente, da nossa atividade em Santos, inúmeras vezes, e a nosso pedido, sob o ardente sol de dezembro e março, irmãos de S. Vicente de Paulo subiram as ásperas encostas dos morros de S. Bento, do Fontana, da Nova Cintra, a fim de verificarem in loco a situação de pobreza dos nossos assistidos, apresentando-nos relatórios notáveis pela franqueza e fidelidade. Por isso, aproveitamos agora esta oportunidade sem igual para rendermos – a Seção de Santos – nossa comovida homenagem também a essa Sociedade S. Vicente de Paulo, tão digna de trazer o nome do santo que é o mais antigo e continua sendo o mais alto patrono do serviço social no mundo inteiro.

"Outra vez, senhores, é o Asilo Anália Franco; outra é o Asilo de Proteção à Infância, dirigido por essa nobilíssima figura de homem ilustre, bom e eficiente que é o dr. Vitor De Lamare; outra, é a Gota de Leite, conduzida por outro homem de ciência que é o dr. Othon Feliciano. E assim são todos, derramando bondade às mancheias, fazendo desta cidade a cidade santa da solidariedade humana.

"Mas, senhores, e vós particularmente, senhores médicos da Santa Casa, quiserdes saber ao certo o que a assistência jurídica, retribuindo, pode fazer pelos vossos assistidos, realizai apenas, por exemplo, um inquérito entre as vossas parturientes pobres! Vereis quanto sedutor bem abonado e impenitente, e quanto pai relapso deveria ser chamado perante a justiça, através das ações de alimentos e de investigação de paternidade. Fazei entre os vossos doentes pobres uma pesquisa social, e vereis quantos deles, antes de chegarem a essa situação de penúria econômica e descalabro orgânico, foram antes privados de tudo, lesados nos seus direitos patrimoniais, e assim privados do agasalho e do pão de cada dia!

"Termino, e já não é fora de tempo. Perdoai-me, exmas. senhoras e senhores, pelo muito que falei; julgo merecer perdão, ao menos pelo espírito de disciplina que demonstrei, deixando a modesta penumbra, em que tanto amo viver, para cumprir uma determinação, aliás sobremodo honrosa para mim. Perdoai-me, principalmente, pelo desejo da Procuradoria de Serviço Social de também servir a esta casa ilustre, gloriosa e santa; que se algum de vossos doentes pobres precisar também do amparo da Lei, a um simples aceno a Procuradoria do Serviço Social aqui estará, a qualquer hora do dia ou da noite, rente à sua cabeceira, seja qual for a moléstia, eis que esse é o vosso abnegado e magnífico exemplo, srs. médicos, administradores e enfermeiros desta casa.

"E eis que, transpor os  umbrais da Santa Casa de Santos para prestar serviço, é, para qualquer um, honra muito excelsa; é servir a Deus e à Pátria, é servir ao próximo sofredor; é conquistar um bem alto brasão de benemerência.

"Mais ainda: é fazer com que as vibrações atuais de nossa alma alcancem, maravilhosamente, pela prática do bem, os homens do porvir; porque, como estamos vendo, as gerações passam e passarão, mas esta Santa Casa não passará a não ser com a geração derradeira. E daqui a cinco séculos, haverá nesta cidade esta Santa Casa; e será honrada a memória dos seus grandes vultos emoldurando a figura imortal de Braz Cubas; e esplenderá nos seus pórticos monumentais a velha, amada e abençoada divisa: 'Casa de Deus para homens, porta aberta ao mar'".

Palavras do dr. Xisto Pereira de Carvalho

Após ouvir-se a palavra do dr. Alves Feitosa, falou ligeiramente o dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, advogado-chefe da Procuradoria de Serviço Social em São Paulo.

Disse que a Procuradoria do Serviço Social poderá, segundo os preceitos do Departamento do Serviço Social, dispor de "instalações ad-hoc" onde e quando seja necessário tal serviço de proteção social. Em Santos, por exemplo, e no próprio recinto da Santa Casa, em seu novo hospital, onde haveria uma sala para o advogado da Procuradoria do Serviço Social prestar assistência específica à assistência geral dessa secular instituição de caridade.

E terminou por declarar, simbolicamente, inaugurada a "instalação ad-hoc" – importante atribuição do Serviço Social do Estado – junto à Santa Casa de Misericórdia, em homenagem ao quarto centenário de sua fundação.

- O dr. Euclides de Campos, depois de agradecer as palavras dos oradores e de referir com entusiasmo a obra assistencial da Sociedade de S. Vicente de Paulo, citada pelo dr. Alves Feitosa, declarou encerrada a cerimônia.