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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AUTONOMIA
Tempo de recomeço

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Historicamente uma cidade guerreira, que sempre lutou por seus direitos, ao ponto de ser marcada com epítetos como Moscou Brasileira e Cidade Vermelha, Santos foi duramente castigada pela Ditadura Militar, com a perda de sua autonomia política e administrativa, em função de seu enquadramento como Área de Segurança Nacional.
Num domingo, dia 14 de novembro de 1982, o jornal santista A Tribuna registrou a perda, dias antes (10/11/1982), do prefeito eleito e cassado Esmeraldo Tarquínio: 
 


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Começar de novo

Nos tempos em que Santos era uma cidade cordial, em que seus habitantes viviam mais próximos uns dos outros, existiam muitos homens que poderíamos chamar de bondosos. Calmos por excelência polidos, afetuosos, conheciam todos os habitantes, paravam na rua para uma troca de palavras amigas. Com um tipo de comportamento quase paternal, preocupavam-se com os pequenos problemas dos amigos como se fossem os mais importantes do mundo.

Estes tempos não existem mais, a sensibilidade dos homens foi substituída pelo isolamento, pela falta de interesse pela vida do próximo. O individualismo derrotou a afetividade.

Na quarta-feira perdemos o último dos homens bondosos de Santos, o último a cultivar uma visão essencialmente humana de relacionamento entre as pessoas. Com Esmeraldo Tarquínio, perdemos boa parte da sensibilidade que ainda poderíamos conservar, se tivéssemos um pouco mais de sonho e emoção em nossas vidas.

Por tudo isso, Esmeraldo tornou-se uma pessoa amada. Poder-se-ia até discordar de suas idéias políticas, de seu comportamento medido, pausado como sua fala, mas ninguém seria capaz de qualquer restrição à sua honra e a seu bom coração.

Mas o amor do povo tem inimigos claros, declarados, mesmo que tentem disfarçar e fingir que se preocupam com o destino das pessoas. E foi assim que Esmeraldo passou sua vida inteira aqui sendo odiado e perseguido: aqueles que não conseguem ter o amor do povo, por pura incompetência, não admitem que outros o tenham.

"Eles conseguiram o que queriam", gritava no Paquetá, quarta-feira, alguém no meio da multidão. E todos sabiam que as tentativas foram muitas, começaram cedo demais, principalmente para quem, aos 18 anos, já fazia parte do Partido Social Sindicalista e, logo depois, do Partido Socialista Brasileiro.

Eleito vereador em Santos pelo PSB em 1959, em 1962 chegou a deputado estadual pelo Movimento Trabalhista Renovador. Tentou a Prefeitura pela primeira vez em 1965, perdendo para Sílvio Fernandes Lopes. Reeleito deputado em 1966, pelo MDB, em 1968 consegue finalmente ser prefeito de Santos, com 45.210 votos.

Já diplomado, faltando apenas 48 horas para a posse, foi cassado.

O racismo, sabe-se, foi uma das razões, assim como o fato de muitos poderosos da época, em Santos, não aceitarem como prefeito um negro que, ainda por cima, tinha idéias socialistas. Mas poucos duvidam que tudo não tenha começado em 1965, durante uma palestra na Associação dos Reservistas Veteranos da Fortaleza de Itaipu. Depois do discurso de Esmeraldo, um oficial o chamou de comunista, aos brados, e mandou que fosse limpar as latrinas de Moscou.

Foram anos duros, sem dúvida, e em 1978, na sua volta à vida política, comentava as dificuldades de resistir à cassação. Mas estava começando de novo. Em 1979, era eleito presidente municipal do PMDB.

A autonomia não veio mesmo, e perguntaram se Esmeraldo aceitaria ser prefeito nomeado de Santos, caso Franco Montoro fosse eleito governador do Estado. A resposta foi essa: "Sem eleição, não! Só escolhido pelo povo. Já me disseram várias vezes que eu deveria aceitar uma nomeação caso Montoro fosse eleito governador, porque seria única e exclusivamente uma devolução do que me tiraram. Gente, sou um homem que procura ser realista, embora muitas vezes seja sonhador. Ora, em 13 para 14 anos houve uma alteração séria no colégio eleitoral de Santos. Temos aí cerca de 45 por cento de eleitores novos, que não me conhecem ou apenas ouviram falar de mim. É evidente que eles não foram chamados para dizer sobre o prefeito que desejam. É preciso que eles sejam ouvidos pela primeira vez e os demais serem novamente ouvidos. É preciso que o povo se manifeste: o senhor será ou não será prefeito. Nomeação, não!".

Mas as pressões continuaram, o nome Esmeraldo Tarquínio e o que ele representa contrariavam, ainda, os interesses de muitas pessoas. Triste mesmo foi ver que membros do seu próprio partido ajudaram a fabricar estas pressões, por puro oportunismo.

Esmeraldo não está mais aqui.

Alguns, porém, pretendem continuar com suas pressões mesquinhas, atingindo pessoas ligadas a Esmeraldo e que acreditam nos mesmos ideais. Esquecem eles que o povo não se deixa mais iludir facilmente e que os olhos continuam a ser testemunha de tudo o que acontece.

Não perdemos apenas um político e um homem. Santos perdeu muito mais, incluindo a perspectiva de seu povo resgatar todo o silêncio e a opressão dos últimos 18 anos. Santos ficou frustrada pois não teve a oportunidade de reparar a História, de levar novamente o homem que amava ao seu verdadeiro lugar.

Perdemos o maior exemplo de humildade e bondade que possuíamos, o elo de ligação com uma época em que ser feliz era uma constante na vida das pessoas.

Mas as idéias sinceras resistem a tudo. Resta apenas retomar a caminhada e começar de novo.

Sementes

Lavrei a terra.
Adubei-a com água e sal
Dos olhos, meus
E da companheira
E dos amigos fiéis.

Vamos à colheita
O trigal apendoou
Demos graças a Deus

Esmeraldo Tarquínio

Esta pequena e sincera poesia, tão significativa quanto suave, foi escrita por Esmeraldo Tarquínio na redação de A Tribuna, este ano, quando surgiu um fio de esperança de que a autonomia política de Santos fosse restabelecida e de que teríamos eleições para prefeito.

Os órfãos de Esmeraldo

É isso aí, amigo Lane (N.E.: Lane Valiengo, jornalista de A Tribuna). Estamos órfãos.

Onde, agora, buscar a força, a serenidade, a medida exata das palavras e da ponderação?

Onde, agora, encontrar a confiança para ser ouvido, o profundo respeito pelo indivíduo e aquele inegável olhar de amor que sabia levantar até mesmo o mais duramente golpeado?

Onde, agora, aprender, sem ranços demagógicos, lições de humildade, perseverança e a crença ilimitada de que podemos mesmo começar de novo e despertar para um novo amanhecer?

É bem verdade que ficaram os seus ensinamentos, mas foi-se um sustentáculo, uma fortaleza recheada de luz e ficou nos seus amigos (ou filhos?) a irreparável certeza do insubstituível. Ficou a saudade daquele aceno de mão que nunca foi simplesmente um cumprimento, mas o "estou aqui e se precisas de mim..."

Ficou até mesmo um certo egoísmo de não ter privado mais dele, para ter a chance de aprender a crescer, como ele, diante da vida e dos homens.

Ficou em mim, particularmente, a convivência de quatro anos de faculdade e a sensação de impotência de não poder resgatar o tempo passado. Ficou a comunhão de ideais de que ele e meu marido participaram e que pude presenciar, há tão pouco tempo, através de rápidos encontros e poucas, mas significativas palavras. Ficou ainda a alegria de ver que também ao meu filho ele estendeu seu amor e carinho, com aquela condescendência paternal de quem agüenta e até incentiva travessuras infantis.

Ficou, infelizmente, o gosto ruim da coisa incompleta, de não ter havido tempo para dizer obrigada e de não termos nós, os mais jovens, podido acompanhá-lo na sua trajetória de lutas. De todos os sofrimentos que passou, só pudemos estar mais próximos agora, no fim, tentando lutar não só contra a maledicência, mas tentando também vencer um inimigo implacável. E não vencemos. Ele morreu.

Daí, afloram dois sentimentos difíceis de conciliar: o dos orgulhosos e afortunados, porque te tivemos, Esmeraldo. E o medo dos desamparados, porque te perdemos, Esmeraldo.

(VL)


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Uma carta ao presidente

Durante o debate realizado na Faculdade de Comunicação de Santos, no início de setembro, com a participação de Antônio Manoel de Carvalho e Jessé Rebello, Esmeraldo Tarquínio falou a respeito da autonomia política, assumindo então um posicionamento inédito, desistindo da candidatura a prefeito, pois seu nome era apontado como o fator que impedia o restabelecimento da autonomia.

"Há adeptos na nossa Cidade, dada a notória aplicação que venho mantendo nesses 13 anos, desde a cassação do meu mandato de deputado estadual e a suspensão dos meus direitos políticos, de que essa minha postura em busca da Prefeitura - que me tiraram e ao meu partido - seja um dos obstáculos que impedem o restabelecimento da autonomia. Que é a redenção desse e de todos os municípios, que haverão de recobrá-la um dia, sim senhores"

"Em face disso, tomei a seguinte deliberação e peço licença aos debatedores e à coordenação, para ler a seguinte declaração que faço ao senhor presidente da República.

"Senhor presidente. Sabe vossa excelência que fui eleito em 1968 prefeito de Santos, quando ainda era deputado estadual pelo MDB. Em 13 de março de 1969, cassaram meu mandato e suspenderam meus direitos políticos por dez anos, o que impediu a posse no cargo para o qual a população de Santos me elegera. Meses depois, cassaram a autonomia política de Santos.

Pois bem, senhor presidente da República e cidadão João Batista de Oliveira Figueiredo: se as circunstâncias e as pesquisas de opinião indicam que o meu nome seria novamente escolhido para governar a nossa amada Cidade, caso nossa liberdade política fosse restituída e se esse fato cria obstáculos que vossa excelência não possa transpor, para que o orgulho dos santistas seja legitimamente satisfeito, pelo retorno do direito de ser ouvido por meio de eleição, na escolha do prefeito, saiba compatriota João o que agora aqui declaro.

Meu orgulho pessoal não é tão grande que se sobreponha aos interesses dessa comunidade santense, à qual a História assegura grande crédito na formação política, econômica, cultural e social do Brasil. Se a autonomia política de Santos for restabelecida a tempo de seu prefeito poder ser eleito em 15 de novembro, dou-lhe, companheiro João, minha palavra de que não postularei minha escolha como candidato a esse cargo, permanecendo na campanha que já iniciei, por uma cadeira no Palácio Nove de Julho à Assembléia Legislativa de São Paulo.

E minha palavra, irmão João Baptista, este Estado conhece a minha palavra: nunca foi desonrada!"


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No último discurso, a confiança no futuro

Este foi o último discurso oficial feito em Santos por Esmeraldo, durante a inauguração do comitê de Mário Covas, no dia 24 de setembro:

"Vocês não estão aqui tangidos pelo medo dos chefes das repartições públicas. Vocês não estão aqui pelo temor de serem transferidos para outras cidades. Vocês não estão aqui trazidos por condução grátis. Vocês não estão aqui para comer churrasco. Vocês estão aqui porque acreditam que é preciso mudar! É preciso mudar!

Vocês estão aqui porque acreditam que um homem, depois de conhecer o poder, de ser vilipendiado nos seus direitos, de ser massacrado pela humilhação da prisão, retorna junto a todos nós para começar de novo. Eu falo de Mário Covas: nós estamos aqui, companheiros, para começar de novo.

Com o mesmo peito, com a mesma vontade, com o mesmo respeito, com o mesmo amor à terra e à gente que a faz bonita. Nós voltamos! Ói nóis aqui outra vez, o que que há?

Eu ouvia agora há instantes também a palavra bonita desse João Francisco, que a língua de seus pais fez Gianfrancesco: eu ouvia a palavra desse Guarnieri que se projetou aos tempos em que o teatro brasileiro se reerguia em São Paulo no seu Eles Não Usam Black Tie, que são todos aqueles desprovidos e afastados do grande banquete dos poderosos. Eu ouvia a palavra desse Guarnieri que nos empolga há tanto tempo, desde o Teatro de Arena, na companhia de Augusto Boal, eles que vinham dos jograis de São Paulo, que vinham dizer coisas que todos nós quiséramos dizer mas não temos como. E ali, a sua companhia no Teatro de Arena, lançava Arena Conta Zumbi. Foi a forma de o teatro contar a verdade a respeito do Quilombo dos Palmares, repondo a História, tirando-a do véu com que pretendem sempre ocultar a verdade nesse e em outros países. E ali aprendi que não importa com que cor de pele, com que raça pode-se contar uma história. Com qualquer cor de pele e qualquer raça!

Foi assim que aprendi que para os que têm sentimentos de verdade, para os que realmente se dão as mãos - não só ao orar ao Pai Nosso, mas também ao pedir o pão nosso de cada dia - não há outros momentos que não aquele da grande comunhão que todos pedem, antes de exigir violentamente. Nós estamos pedindo antes de exigir violentamente: vamos mudar, gente! É fundamental que se mude, é imperioso que se altere a ordem das coisas neste País, para que todos possam habitá-lo, para que as crianças não cheguem aos três, quatro anos com seus cérebros irremediavelmente comprometidos pela má nutrição. É fundamental que se alterem as coisas, para que o homem não se envergonhe do envelope do salário ao chegar em casa, e passe antes no boteco mais próximo para embebedar-se, para entorpecer, para distrair, para esquecer a sua miséria.

É fundamental que as coisas mudem. Nós não estivemos à toa nesses anos de afastamento. Nós não nos dedicamos apenas ao dia-a-dia, ao ganha-pão. Nós, como Almino, esse imenso amazonense que São Paulo acolheu e tomou do Estado do maior rio desse continente. Nós, como Mário Covas, Nélson Fabiano, Marcelo Gato, não ficamos parados não. Tornamo-nos muito mais perigosos do que éramos naqueles momentos em que fomos cassados. Sabem por quê? Porque eliminamos quaisquer diferenças e que eram poucas. E nos unimos com todo o amor e toda a coragem, pois acima de todos nós há a causa popular que o PMDB representa, sem substituição. É aqui, no PMDB, que há de levar Franco Montoro ao Governo de São Paulo e que tem a figura de Ulisses Guimarães como seu presidente e que resistiu a todas as pressões - e que se algum pecado tivesse antes de 64 resgatou-os todos -, trazendo-nos ao comando dessa nau, desse navio, pois na sua repetição do poeta português, navegar é preciso; viver não é preciso.

É preciso navegar. E já que estamos no terreno poético e Mário e eu gostamos disso, pois que a poesia nunca foi tão necessária... gente, Ho Chi Min, no cárcere, escreveu as mais belas poesias! Poderia ter o recurso de gravar nas paredes os seus dias e os seus ódios. Pois ele simplesmente se fiou em escrever poesias, pois os que lutam têm cor, têm aproximação ao homem, à mulher, à criança, sabem chorar sem nenhuma vergonha ou constrangimento. Os que lutam, os que amam, que não têm ódio, rancor ou revanche no coração, sabem perfeitamente bem como fazer e como enfrentar a luta de todos os dias, sem ferir, sem machucar, pois que a nossa obra não é de destruir, é de construir.

Pois haveremos de reconstruir esta Nação a partir de São Paulo, com Franco Montoro e com Almino Afonso. Sairemos vitoriosos e nesse dia nós iremos mudar!"

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