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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
El Brasil (L)

Clique na imagem para ir ao índice da obraUm país recém-entrado no regime republicano, passando por grandes transformações políticas, econômicas e sociais, sob o império dos oscilantes preços do café. Assim é o Brasil encontrado pelo jornalista argentino Manuel Bernárdez, que em 1908 vem tentar decifrar o que aqui ocorria. É dele a expressão "Metrópole do café", com que alcunhou a capital paulista [*]. Sua obra El Brasil - su vida - su trabajo - su futuro foi editada na capital argentina, em castelhano, sendo impressa em Talleres Heliográficos de Ortega y Radaelli, Paseo Colón, 1266, Buenos Aires.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, foi cedido em maio de 2010 para digitalização, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, a Novo Milênio, que apresenta nestas páginas a primeira tradução integral conhecida da obra para o idioma português - páginas 141 a 151:

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El Brasil

su vida - su trabajo - su futuro

Manuel Bernárdez

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O NOVO RIO DE JANEIRO - Um detalhe em perspectiva da Avenida Central
Imagem e legenda publicadas na página 142-A. Clique <<aqui>> ou na imagem para ampliá-la

Homens, idéias e harmonias

Reportagens sobre política internacional - Quintino Bocaiúva - Nos picos morais do Brasil - Tipo moral e físico do brasileiro - O gentil-homem da democracia - As afinidades imperativas - Impossibilidade de discórdias - "Só loucos!" - Falando nobre prosa castelhana - Visita ao senador Pinheiro Machado - O caudilho e o estadista - Sentido patriótico e sentido prático - O internacional na política cotidiana - O interesse e o sentimento histórico

O dia em que cheguei ao Rio, de regresso do interior, aproveitei em fazer duas visitas: uma ao senhor Quintino Bocaiúva e outra ao senhor Pinheiro Machado. Elevada autoridade consular um deles, elevado sobre o nível ordinário da política e suas paixões, e personalidade influente e combativa o outro, atuante conspícuo dentro dessa política ardorosa do cotidiano, me interessavam ambos, por razões diversas; para saber, por um, o que se opina dos assuntos sul-americanos nas altas esferas do pensamento brasileiro, e para induzir, pela opinião do outro, o conceito com que se consideram, em sua esfera de influência imediata, as relações do Brasil com seus vizinhos geográficos – aumentando-se o interesse deste último ponto de vista, com a circunstância de ser o senador e caudilho rio-grandense um decidido mantenedor dos altos direitos do charque, com o fim declarado de erradicar a todo transe a indústria dos salgadeiros no Brasil.

Comecei por visitar o general Quintino Bocaiúva. O ilustre brasileiro, que tão fundas raízes de respeito e simpatia tem nos afetos de ambas as margens do Prata, vive em um pitoresco arrabalde dos imensos subúrbios do Rio; mas se encontra todas as tardes em seu estúdio da Rua da Quitanda, 21. Fui visitá-lo ali.

Um mezanino com escada de pinho fogoso e, nele, três quartos mobiliados com total simplicidade, servem de centro característico à austera modéstia do prócer – que havendo sido arauto das idéias republicanas no fulgurante manifesto de 1870 e plasmador genial do verbo revolucionário, fez carne sob seus polegares na incruente e formosa jornada do 15 de Novembro, investe hoje, em um voluntário retiro, a amplidão moral de um patriarca – mantendo na consciência e no carinho popular um prestígio parecido àquele são, sutil e confortante influxo espiritual que d. Bartolo exercia, desde sua Tebaida de octogenário, sobre a alma argentina.

Quintino Bocaiúva é, em meu sentir, física, moral e intelectualmente, o representante típico por excelência do ser masculino em sua pátria. De estatura média para baixa; delgado, fino de traços; intenso e elevado em seu pensar; impecável nas formas verbais; evocando em seu vestir, em seu aspecto e gestos a recordação romântica e nobre de sua geração, que viveu tanto e tão fundo das puras substâncias da alma; difundindo bondade e cortesia como eflúvios de seu belo espírito, o eminente republicano oferece ao observador as linhas genéricas de um arquétipo de seu povo, particularmente no que respeita ao aspecto psicológico.

Afastado tanto do jornalismo como da política, é um espectador pensativo, com cuja aprovação se desejaria contar, ainda que nem sempre se confesse seu íntimo desejo.

O jornalista pratense foi entendido em seguida em seu propósito pelo mestre, que, não tendo na pureza de suas idéias nada que esconder, lhe deixou ver até o fundo das admiráveis diafanidades de seu pensamento e o fruto são e maduro de suas meditações patrióticas.

Oxalá fosse dado ao respeitoso ouvinte reproduzir a meia hora de prosa castelhana, fluída e harmoniosa, com que se comprazeu Quintino Bocaiúva em adornar suas idéias!

Dizendo que lhe causava prazer exercitar seu velho castelhano, porque lhe parecia com isso reviver simpatias de outros tempos e evocar sombras caras de amizades que a morte levara, disse ao viajante em sua língua quanto uma curiosidade discreta e aguda poderia demandar. Afirmou a solidariedade de nossos povos no presente e no futuro, como uma dupla conseqüência de vínculos antigos e de novos interesses.

A conveniência superveniente não fazia senão seguir por seus próprios passos, como cedendo a una sina, o rastro da simpatia tradicional e das afinidades históricas. Causas de possível discórdia haviam existido e haviam sido impotentes, podendo mais que elas o nobre afã recíproco de paz e de justiça, que levou Brasil e Argentina a converterem a arbitragem na forma superior e invariável de solucionar seus litígios.

Diferenças de idioma e resíduos de velhos atavismos coloniais pareciam ocasionar óbices aparentes a uma harmonia perfeita – mas nada disso passava da superfície: não eram senão deficiências da cultura, asperezas que a educação e a fricção constante dos interesses afins iam limando.

Para apressar esta boa obra, a propaganda de idéias concretas, o conhecimento recíproco, o mútuo estudo dos idiomas, da história, das literaturas, o exame do progresso que cada qual realiza, do trabalho em que cada um verte honrados suores, as visitas de vizinho a vizinho, tudo isso, era preciso fomentar, aconselhar com veemência, como o melhor calmante de antipatias sem motivo, como o melhor argumento para dissipar desconfianças.

Para todo homem de pensamento era uma evidência física elementar a impossibilidade de que estes dois países, de órbitas próprias, distintas, puras, pudessem se chocar por implicâncias na linha de suas respectivas trajetórias.

"Só loucos", exclamou o ilustre estadista em um arranque de veemência que deu à sua voz aprazível um timbre de paixão juvenil. "Só loucos, loucos uns e outros, podia sobrevir uma calamidade semelhante, que seria por vez uma desonra para a América do Sul! Mas felizmente – completou, recobrando sua lentidão oratória, familiar e fluente, como um fio de água mansa – afortunadamente, a loucura não é epidêmica, e os casos individuais, se acontecessem, se isolariam por si mesmos, por sua própria evidência patológica. Há que confiar na saúde e na cordura dos povos como força moral determinante!"

O senhor Bocaiúva se referiu aos navios e outros elementos de guerra encomendados pelo Brasil, manifestando pouco acordo com esses gastos – porque, ao objeto de criar uma garantia material contra possibilidades remotas de agressão européia, reputa muito discutível a eficácia de umas poucas unidades navais; sendo sua crença que maior há de ser a garantia moral deduzida da conduta eficiente e correta que o Brasil republicano vem impondo à sua política externa e de maior progresso possível no trabalho e à riqueza, a cultura e a atração de capitais e povoadores – tudo o qual vai sendo cultivado e vai criando uma força defensiva que chegará a ser inatacável pela via de fato.

Considera a questão navios como um detalhe sem importância nem significação quanto às relações do Brasil na América do Sul, e só o toma em conta por sua face econômica interna. Com navios e sem navios, suas convicções de harmonia e de crescentes vinculações entre Argentina e Brasil, são indestrutíveis, afirmando-as como um postulado que nenhum estadista poderia desconhecer sem prejuízo de conveniências nacionais imanentes e sem prejuízo da influência exterior que estes países, em sua saúde e em benefício continental, chegarão a exercer atuando em harmonia, mas nunca pretendendo qualquer deles uma superioridade patronal, e muito menos baseando-a em elementos de força.

Por aí não se pode ir senão ao debilitamento recíproco, com guerra ou sem ela, à extenuação financeira e ao conseguinte retrocesso político interno, com seu cortejo de desordens – ficando, então sim, à mercê de qualquer misericordioso pacificador, à nova maneira – que consiste em fazer a felicidade dos países anarquizados, tomando conta deles!

Estreitei com carinhoso respeito a mão do republicano simples e eminente, que fora por sua vez paladino e gentil-homem da democracia; e me despedi contente de que me fora dado referir no Prata a claridade meridiana e a reta polarização moral com que são consideradas as questões fundamentais da América do Sul desde as altas esferas do pensamento brasileiro.


PATRIARCAS DA REPÚBLICA - Quintino Bocaiúva
Imagem e legenda publicadas na página 144-A

Conversei com o general Pinheiro Machado no Senado Federal. Na noite anterior eu o havia saudado no Hotel dos Estrangeiros, onde participou de um banquete político; e ficamos combinados em que eu o visitaria no Senado.

Velho conhecido e cordial amigo de Buenos Aires e de numerosos argentinos, o hábil político rio-grandense recebe com prazer notícias e afetos de nossa terra. Muito combatido atualmente na política interna, defende-se com energia e recursos que nós diríamos "de grande pulso", mantendo suas posições, que são sempre importantes, e que chegaram a ser de uma decisiva preponderância na ordem nacional.

Na visível tendência da política brasileira para a organização institucional, que é impessoal, os caudilhos não estão em condições vantajosas para ganhar terreno – mas o general Pinheiro Machado é homem de elementos consideráveis e de uma grande flexibilidade de espírito, que lhe permite manter seu equilíbrio e sacar partido das mais difíceis circunstâncias.

Arrojado, generoso, simpático, ativo e sagaz, encarna toda uma categoria dominante dentro da política, não só do Brasil, como também de nossos meridianos. É com essas forças e esses temperamentos que há que contar, já se trate de ir com eles ou contra eles, porque com seu jogo especial, sua resolução e seus grandes recursos, é muito difícil que uma partida chegue a ser perdida de todo, e é em troca muito freqüente vê-los na política, como no truco – jogo de predileção no Rio Grande – jogar até a falta, ainda que seja sem pontos, e oprimir o adversário timorato, que não se anima em arriscar-se sem mão de trinta e três!

É também o senhor Machado um tipo característico do Brasil, onde pouco prospera o tecido adiposo: alto, mas enxuto de carnes e livre de gorduras – osso, nervos e músculo. Muito afável, de palavra fácil e sorriso insinuante, resulta particularmente agradável na conversação. Seu amplo gesto de franqueza acusa mais o homem de ação que o político cauteloso.

Entretanto, tem o senador rio-grandense fama de imitar na política ao tero (N.E.: ou teruteru, ave pernalta, da mesma família que os maçaricos, de 30 a 40 cm de envergadura, com plumagem branca mesclada de preto e pardo. Anda em bandos e se caracteriza pelos seus gritos desagradáveis ao levantar vôo) – o clássico pássaro fronteiriço -, em sua estratégia peculiar para esconder o ninho em um lado e dar seus gritos e giros no outro.

Mas se isto pudesse talvez ser assim no que se refere às suas proverbiais experiências de líder, no que respeita às suas manifestações de cordial simpatia por nosso país e de convencida inclinação ao acordo de interesses e propósitos, encontrei-o de uma sinceridade perfeitamente insuspeitável -, pois, junto às suas expressões de concordância internacional, política e econômica, expressou com louvável franqueza sua resoluta convicção de que seu país devia e podia se bastar para muitas coisas, e desde logo, para prover às necessidades de seu estômago – coisa em que se vê decididos todos os brasileiros – e que, pondo-se em seu ponto de vista, resulta inobjetável.

Falou também da questão navios de guerra o senador Pinheiro Machado – para recordar que nunca havia sido (o motivo de ter uma esquadra mais forte) razão de inquietudes ou desconfianças entre estes povos – e que se em tempos em que o imperialismo continental podia apontar veleidades – quando a força era um argumento mais usado que agora – quando o direito e a arbitragem não gozavam a voga e o consentimento que hoje se lhes rende – quando tínhamos questões espinhosas a solver: se então não se havia despertado apreensão alguma quanto a possíveis veleidades de predomínio; se nem a maior esquadra brasileira nunca havia preocupado aos argentinos, nem a recente supremacia naval argentina havia inquietado aos brasileiros – mal podia agora, nem em caso algum, aparecer como uma remota ameaça para os aliados naturais rio-pratenses o reforço da esquadra do Brasil – esquadra que se havia desfeito por razões internas e que lhes era forçoso refazer – mas que, precisamente, se refazia com navios que nunca se poderia supor destinados a um ataque à Argentina, até porque eram inadequados para agredir a Buenos Aires, centro do poder e da vida daquele país – pois os futuros encouraçados do Brasil encalhariam muito antes de chegar a tiro de canhão de Puerto Madero!

Com desígnios ulteriores de agressão haveria sido uma curiosa insensatez ter encomendado semelhantes barcos, que só podiam ferir ao suposto adversário nas extremidades, de forma que melhor serviriam para irritá-lo e estimular sua bravura, que para desanimá-lo ou abatê-lo.

Basta falar dessas coisas – disse o senhor Machado – para logo em seguida mostrar sua insustentável consistência. Só um interesse secundário e difícil de explicar pode manter apreensões que uma simples análise de fatos materiais destrói totalmente. O sentimento e a suscetibilidade, até a superstição patriótica, podem ser exploradas, mas não até a inocência – que é aonde parece que se quer levar nisto o absurdo das coisas!

E logo, para fazer juízos decisivos sobre intenções, bastava ver o país, bastava visitar o Brasil, como bastava visitar a Argentina. De lá do Prata vinha o visitante com a visão de um povo ansioso de paz e de garantias para seu gigantesco adiantamento – por que não haviam os argentinos de levar impressões iguais do Brasil, que também tinha sede de tranqüilidade, que provava seu espírito pacífico com sua própria política interna, rapidamente canalizada na ordem e comprometida em um vasto trabalho de progresso, para o qual a paz e o crédito externo, que só a paz procura, eram fatores indispensáveis?

O Brasil não buscava nem aceitava papéis estranhos a seu interesse liso e plano: tinha uma herança rica e vasta e queria se engrandecer nela, sem zelos de nada, respeitado e respeitando. Esta era a orientação dada à política exterior pelo barão de Rio Branco, com a qual estavam no presente em plena solidariedade todas as idéias conservadoras, todas as influências preponderantes e todas as forças vivas do Brasil.

Falamos depois de outros assuntos públicos, da legislação da propriedade imóvel - que estava agora sendo reformada pelo Senado, com um critério liberal quase até o revolucionário; da indústria salgadeira, que o senhor Machado crê como eu de iminente e próspero desenvolvimento no interior, sobretudo nos estados de Minas e Goiás. – Eu não tratei já – me disse – de estabelecer um salgadeiro em Minas, porque havendo sustentado a necessidade do imposto proibitivo para o charque, não queria que se pudesse dizer que me guiava o propósito de usar para mim os resultados da tarifa. Mas o salgadeiro em Minas é um negócio perfeitamente maduro, que não tardará em prosperar.

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VINHETAS FLUMINENSES - Perspectiva de montanhas verdes, casarios brancos e águas azuis, tomada desde a "Vista Chinesa", que é um estupendo balcão aberto sobre o encanto da natureza. À esquerda alça seu pico o Corcovado, e o Pão de Açúcar se esfuma no fundo
Imagem e legenda publicadas na página 146-A. Clique <<aqui>> ou na imagem para ampliá-la

Com as reportagens com o presidente da República, o ministro Assis Brasil, o senhor Bocaiúva e o senador Pinheiro Machado, tinha já substanciado o juízo brasileiro sobre os assuntos internacionais desde quatro diversos pontos de vista, em diversas alturas e por muito distintos temperamentos. Era inútil insistir em buscar novos elementos de informação ilustrativa, pois nada se acrescentaria ao juízo com meras abundâncias. A orientação do Brasil estava explicitamente definida no mental, no governamental, no político.

Faltava-me só subir ao ponto culminante – escutar o barão de Rio Branco – síntese de todos os juízos e centro em que, como o foco da lente, convergem, no plano internacional, todos os raios luminosos da circunferência. Até aquele ponto de vista superior devia ir, empurrado por todas as referências, que a ele invariavelmente remetiam à instância suprema. E lá fui, com ele falei e dele ouvi o que verá o amigo leitor na crônica seguinte.


FIGURAS DA ALTA POLÍTICA - General Pinheiro Machado,

 senador pelo Estado de Rio Grande do Sul
Imagem e legenda publicadas na página 148-A