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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
El Brasil (N)

Clique na imagem para ir ao índice da obraUm país recém-entrado no regime republicano, passando por grandes transformações políticas, econômicas e sociais, sob o império dos oscilantes preços do café. Assim é o Brasil encontrado pelo jornalista argentino Manuel Bernárdez, que em 1908 vem tentar decifrar o que aqui ocorria. É dele a expressão "Metrópole do café", com que alcunhou a capital paulista [*]. Sua obra El Brasil - su vida - su trabajo - su futuro foi editada na capital argentina, em castelhano, sendo impressa em Talleres Heliográficos de Ortega y Radaelli, Paseo Colón, 1266, Buenos Aires.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, foi cedido em maio de 2010 para digitalização, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, a Novo Milênio, que apresenta nestas páginas a primeira tradução integral conhecida da obra para o idioma português - páginas 172 a 190:

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El Brasil

su vida - su trabajo - su futuro

Manuel Bernárdez

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Imagem: reprodução parcial da página 172

São Paulo - O estado e sua metrópole

Em marcha para o país do café - Os subúrbios do Rio - A emigração do cafezal - As terras mortas do Estado do Rio - Meios de ressurreição - Uma formosa via férrea - O rio das lágrimas - Os domínios de Tibiriçá - Desde um cacique até um presidente - O indígena no Brasil: os nomes - O indígena no Brasil: os cruzamentos - A vila do padre Anchieta - A hegemonia de São Paulo - Passeios pela metrópole do café - O "Posto Zootécnico" - Escolas de fazer homens - São Paulo a vôo de pássaro

Saem dois trens diários do Rio para São Paulo, que dista treze horas por ferrovia da metrópole. Mas não sendo em dias de grande calor, deve-se tomá-los pela manha, porque a viagem é todo um espetáculo, ilustrativo e encantador. Desde logo, a linha, afastando-se da costa, atravessa quase toda a cidade do Rio, por bairros que não poderiam ser vistos andando-se em outros veículos; e quando o maciço urbano rareia, começa outra cidade, formada por subúrbios pitorescos, por bairros populosos, espalhados por gargantas e vales, empoleirados em morros,  reclinados em colinas suaves, aparecendo e desaparecendo à vista em visões fugazes, que deixam a retina cheia de cores e de formas rústicas, dominando o espírito a idéia de refúgios aprazíveis, onde a vida deve ser doce e fácil de viver.

Tudo isso substitui nossos numerosos povos da periferia buenairense; mas ali estão dentro do tecido metropolitano, que é enorme. A vida intensa do Rio se projeta até esses retiros todas as tardes, buscando frescor, repouso, verdores, brisas. Conservam os fluminenses, como os habitantes de Londres, o bom costume de sair afora depois de seu dia laborioso, mesmo agora que têm uma linda, luxuosa, iluminada e atraente cidade noturna.

Isso se vai vendo ao sair em trem do Rio, enquanto a via serpenteia entre os enormes morros, decapitados para abrir espaços e para explorar o granito, que são trabalhados à perfeição pelos obreiros brasileiros, muito destros em obras de cantaria.

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Uma plantação modelo, no Estado de São Paulo, que conta 800 mil pés de café em produção plena, sem solução de continuidade
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Meia hora depois se começa a entrar no Estado do Rio de Janeiro, onde foi o empório do café, a milagrosa mina vegetal que deixou bruscamente desertos os lavadores de ouro e as jazidas diamantíferas das serranias mineiras. Mas esta região que matou a outra foi morta por sua vez. Um século de café esgotou a terra e quase tudo isso é um ossuário – fazendas desertas, campos em que voltou a reinar a erva daninha, centenas de casarios abandonados à solidão, que lentamente os vai desmoronando com o roçar invisível de sua unha.

O café emigrou para as terras virgens e mais altas de São Paulo – mais altas e melhores, as verdadeiras terras cafeteiras, que não são coloridas de ocre, mas de um vermelho arroxeado, e que andam ao redor de 700 metros sobre o nível do mar, alcançando a 900 e até a 1.000 em algumas partes do altiplano.

Isto, averiguado, matou o outro bruscamente; e enche a alma de um pesaroso assombro ver toda essa campina, empório do antigo esplendor industrial, toda essa riqueza pretérita, reconquistada pelo deserto, abandonados os grandes edifícios das fazendas – desvencilhando-se as portas que nada fecham -, freqüentadas por ofídios e mussaranhos as habitações onde ninguém habita...

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VINHETAS PAULISTAS - Grupo de gado Caracu, cruzando um banhado da Várzea de Piratininga,  onde vão buscar os renovados brotos da vegetação aquática
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Esta situação tem preocupado, como é de supor, os poderes públicos, e se tem pensado em várias alternativas para ressuscitar a antiga vida rural do Estado do Rio – mas a meu ver não se tomou com firmeza a única via certa de salvação, que não é outra senão o fomento do trabalho de granja – pecuária agrícola – com todo seu cortejo de pequenas indústrias auxiliares e derivadas.

A leiteria, para leite, manteiga e queijos, a criação de portos, de aves, de abelhas, de cabras laníferas, de ovelhas em pequenas quantidades, tudo isso bem feito, sobre modelos fáceis de implantar, criará naquele Estado um ambiente propício a rápidos desenvolvimentos.

Claro que há que se fazê-lo bem desde o princípio, para que as pessoas vejam, sigam e não desanimem com os fracassos de sua inexperiência, pois como ali não se fez nunca senão cultivar café, sabe-se muito pouca coisa racional da indústria pastoril e agrícola, tal como pode ser feita, e como pode florescer rapidamente, estando todo esse território vazio entre dois grandes mercados – Rio e São Paulo – e tendo todas as condições para ser uma grande região de granjas: boa altura, pois a ferrovia sobe desde que sai do Rio de Janeiro – e em conseqüência, clima muito suportável e até suave; terra subdividida e cheia de populações excelentes, que já evitarão o gasto de instalações; muita água, boa terra vegetal e gramíneas de fácil cultivo – pois a terra se cansou de dar café, mas não cereais nem forragens, que crescem perfeitamente nos antigos cafezais.

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VINHETAS PAULISTAS - As grandes residências da Paulicéia - Palácio do senhor Aguiar Ramos, em puro estilo arábico, obra do arquiteto senhor Ramos Azevedo, que selou com seu talento as melhores obras arquitetônicas de São Paulo e muitas de Rio de Janeiro, como o Palácio "das docas de Santos"
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O caminho de ferro não deixa tempo para aborrecer-se. É toda uma forte obra de arte e de conquista, que avança partindo e perfurando montes, com largos túneis, por dentro de um dos quais corre o trem durante cinco minutos, que parecem, em verdade, muito maiores do que diz o relógio. Entre morro e morro abrem-se bruscamente paisagens profundas, lá embaixo, distantes, brunidas pela luz e poetizadas pela distância – abrem-se e fecham-se como ventiladores, na sucessão de picos que o trem vai superando – e outros panoramas se sucedem, atraem, deleitam a vista meio segundo e passam.

Quando a via transpõe a altura culminante da serra e começa suavemente a descer até São Paulo, a paisagem inicia sua evolução ao aspecto de terra trabalhada, onde as linhas retas da vegetação, aparecendo claras entre as massas sombrias dos arbustos, revelam a presença humana. Os cafezais se insinuam, não muitos, porque não é nesse rumo a grande região do cultivo.

Mais adiante, o trem corre pelo vale de um rio que seria agradável de ver se não fosse sua trágica memória. É o sinistro Paraíba, ao longo de cujo curso se estendia, sob o látego, o trabalho dos escravos, cujas lágrimas, diz uma sombria tradição, chegaram muitas vezes a engrossar a corrente, transmitindo-lhe seu sabor salobro, que enche de angústia a quem o experimenta!

Hoje tudo isso passou: o rio levou muito distante os tributos amargos daquela imensa miséria. O Brasil livre mira seus rios, também livres, como futuros portadores dos comboios de sua grandeza – e o Paraíba está sendo navegado em vários trechos e o será em vastas extensões de seu largo curso, quando uma canalização inteligente ultrapasse suas restingas e suavize suas voltas, aproveitando correntes e desníveis para fecundar com a irrigação as excelentes terras de suas margens.

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VINHETAS PAULISTAS - Os passeios de São Paulo - Detalhe do formoso jardim público da Luz
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Ao ir-se acercando de São Paulo, a via corre por amplos espaços planos, que formam boas pastagens, aproveitados por não pouca quantidade de fazenda. É a várzea (planura) de Piratininga, que com todo o atual tecido urbano de São Paulo e quanta campina preenche o horizonte, constituía o domínio do poderoso cacique Tibiriçá, há cerca de quatro séculos.

Precisamente daquele cacique tomou seu sobrenome o atual presidente do Estado, doutor Jorge Tibiriçá, cujo pai, seguindo um exemplo de exaltado patriotismo, muito em voga em certa época – da qual datam os Bocaiúva, os Brasil, os Sinimbu, Araripe, Japiaçú, Carijó, Tamandaré, Gitaí, Cuim-Atuá, Berigui, Moacir, Jaguaribe, Itagiba, Tupinambá e tantos outros nomes guananis com que floresceram brasileiros ilustres – adotou para sua estirpe esse sobrenome – Tibiriçá – que um deletrador de horóscopos teria podido declarar predestinado ao mando nos domínios de Piratininga – se bem, por um gentil contra-senso, bastante comum entre os homens e o aspecto de seus donos, o presidente de São Paulo leva seu patronímico de cacique com um físico de lorde.

Esta adoção de nomes indígenas para estirpes portuguesas não foi, por outro lado, senão o aspecto externo e literário, direi assim, de uma considerável fusão étnica operada entre conquistadores e conquistados, que caracteriza toda uma sub-raça na atual população do Brasil.

De fato: crê-se com demasiada superficialidade que a massa da população brasileira foi tisnada em grande proporção pelo pigmento negro. Creio isto um erro. O que mais interveio é o pigmento amarelo, como em nossa população pampiana, em toda nossa forte e valorosa criolagem, que é o melhor de nosso caudal étnico original.

Como aqui as tribos querandíes, azuleñas, pehuelches, e no Uruguai os chanás, os bohanes e carrúas, no Brasil os guaianases, os tupis, os carijós, entraram em cruzamento com os conquistadores. Já quando chegou a missão que havia de fundar a atual cidade de São Paulo, havia fincado raízes ali um português, João Ramalho, que alcançou grande prestígio e fundou toda uma genealogia – ele se havia casado nada menos que com a filha do cacique Tibiriçá, a formosa Bartira – podendo-se julgar esse enlace de amor e aventura como a primeira semente da atual cidade e da progênie de mestiços que daquela região saíram a conquistar terras ignotas para a coroa portuguesa.

"O elemento branco – diz um historiador -, tanto europeu como nascido no país, ganhou preponderância, mas tirando a nascente povoação os traços típicos do sangue indígena. E, cruzando-se as duas raças, nasceu a gente mestiça, os atrevidos e resistentes mamelucos, que tão brilhante papel deveriam representar na conquista dos altiplanos brasileiros". De fato: entre outros muitos, Antonio Dias, fundador da distante e opulenta Ouro Preto, era um bandeirante de São Paulo – e, pelo que nos interessa, foram os mamelucos paulistas os que, em uma grave questão mantida com os jesuítas que queriam submetê-los a seu regime, ocasionaram a emigração das Reduções do Guaíra, que haviam de formar, nos altos Paraná e Uruguai, as Missões, de civilização interessante, mas infelizmente efêmera por causa de seu regime hermético, privado de condições para alargar seu horizonte – sem o quê fatalmente teria de caducar e se extinguir.

Foi o mestiço indígena um fator de importância na formação étnica brasileira. Tribos poderosas, de altivez indomável e de virtudes tradicionais e simples, lhe transmitiram sua alma bravia. É nisto que se deve deter a atenção, porque foi o feito superior e o feito interno.

O negro, no desenho do mapa étnico do Brasil, não pode figurar senão mais como uma borda: foi um fato adventício, ao longo dos litorais, que encontrou sempre impermeável à população, desdenhosa em seu grupo superior, depreciando o escravo e vendo a mescla como um estigma.

Por isto foi limitada – e em conseqüência, cortado o laço material da escravidão, o negro tende a desaparecer, porque não pode transfundir-se nem aclimatar a semente. Em troca, a tribo, a raça indígena, penetrou consideravelmente na massa – e o Brasil, com os povos do Prata, não tem senão que se comprazer nesta circunstância feliz de sua formação etnográfica.

Era o índio o senhor da terra, altivo e fero, nobre, sóbrio, inteligente, galhardo e muscular – e não tinham senão ganhos a obter com seu cruzamento as trabalhadas raças ultramarinas.

São Paulo é uma cidade sem igual no Brasil, e sem muitas similares tampouco nas Américas, no que tange à bizarria de seu crescimento nos últimos 30 anos. Embora em um ponto muito menor, nossa metrópole do trigo – o Rosario – a reproduz em seu belo aspecto urbano, e em seu violento desenvolvimento – mas São Paulo, ademais da maior população e do luxo de suas vivendas particulares, leva a vantagem panorâmica de um solo pitoresco, pleno de suavidades e declives, altiplanos e morros, que oferecem agradáveis pontos de observação. Tudo é suave, sem colinas violentas, oferecendo contornos e tangências para ir e vir sem fadiga, apensas usando liberalmente da curva.

Dois rios cruzam a planta urbana em diversos sentidos – e basta dizê-lo para supor quanto partido se pode sacar e vão obtendo deste feliz acidente os zelosos e diligentes governadores municipais da cidade, entre os quais se destaca, como um patriarca e um benfeitor, o conselheiro Antonio Prado, um dos homens mais eminentes do Brasil, a cujo patriciado pertence sua nobre família, e que leva já dez anos consagrados a fazer de São Paulo uma grande cidade moderna, realizando verdadeiras maravilhas de trabalho edificador, sem outros recursos que o orçamento ordinário.

Hoje anda São Paulo em cerca de 300.000 almas – alojadas em 27.000 casas; mas estas cifras, que em si não dizem senão que há ali muita gente e muitas casas, adquirem outro gênero de expressão quando se acrescenta que há trinta anos a população era de 30.000 pessoas e as casas eram 3.000. De modo que neste tempo as casas foram multiplicadas por nove e os habitantes por dez.

Correlativamente a este bizarro galope de progresso, a higiene tem feito sua boa obra reduzindo a cifra da mortalidade, que de 30 por mil desceu até 17, mantendo-se entre esta cifra e 20 como máximo; pode-se dizer que hoje São Paulo é uma das cidades mais sãs do mundo. Tinha para isto elementos de clima que foram aproveitados inteligentemente e que concorrem hoje a fazer deliciosa a vida na culta Paulicéia, como chamam à sua bela cidade os filhos do antigo burgo do padre Anchieta – o jesuíta de amada memória, chefe das falanges evangelizantes, uma das quais fundara, faz mais de 35t0 anos, a hoje populosa Metrópole do Café, estabelecendo, ao amparo de uma aliança com Tibiriçá, rei dos guaianases, uma missão e colégio, em uma barraca de junco e barro, sob cujo teto de palha se deu a primeira missa em 25 de janeiro de 1554, dia em que a igreja comemora a conversão de São Paulo, apóstolo das gentes...

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FIGURAS CONSULARES - O conselheiro Prado, prefeito da cidade de São Paulo
Imagem e legenda publicadas na página 180-A

Ao amor de uma temperatura primaveril, cuja média no verão não passa de 25 graus, graças à altura de 700 a 800 metros em que se mantêm os diversos níveis da cidade, foi esta formando lentamente seu núcleo – muito intenso em cultura – e só necessitava uma razão econômica para tirar partido de suas notáveis condições naturais e progredir de ímpeto, como o fez desde 1880 até agora.

Naquela época começou o cultivo do café a invadir sua nova zona de expansão – já extenuadas as terras do Estado do Rio; e com isto, seu clima, sua tradição universitária e sua aptidão para o progresso, a cidade tomou em passo firme a rota de seus destinos.

Desde logo, a riqueza, em vez de adormecedores sensualismos, despertou em sua alma elevados anseio – e sua influência na propaganda republicana, a ação patrícia, abnegada e preponderante dos filhos espirituais de sua Academia de Direito na grande revolução de idéias que decretou a caducidade do Império, é a mais nobre página de sua história – já ilustrada pela atuação do espírito paulista na independência do Brasil, comemorada pelo monumento de Ipiranga – belo edifício que se alça numa colina próxima à cidade, dando albergue a um museu.

Por tão nobres antecedentes, a hegemonia moral de São Paulo entre os Estados irmãos está implicitamente consagrada – dando dela claro indício o fato de haverem sido paulistas os três primeiros presidentes civis – Morais, Campos Salles e Rodrigues Alves – fazendo-se sentir o valimento do grande Estado enquanto o novo regime, canalizado em suas normas definitivas, pôde deixar campo livre às sãs influências preponderantes.

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Alguns giros em automóvel me deixaram ver, em rápidas sínteses objetivas, os principais órgãos elaboradores da saúde, do bem-estar, da cultura e do progresso docente, no vasto mecanismo fundamental da Paulicéia.

De manhã, em companhia do doutor Assis Brasil e do conde de Prates, conhecido cavalheiro e opulento industrial e financista, visitamos o Posto Zootécnico, que é uma escola prática de pecuária, instalando-se sobre um plano perfeitamente racional, chamado a exercer decisivas influências na incipiente indústria pastoril do Estado.

Mais ainda que uma escola, é um centro demonstrativo de trabalho pecuário, sobre modelo intensivo, em que, ao mesmo tempo que são estudadas as raças, se provê a quem o pede o serviço de reprodutores seletos, se mostra como se explora uma leiteria fazendo-o diariamente e fabricando manteiga em uma instalação modelo, e se ensina a economia das forragens úteis, não só semeando-as e dando a lição ou o conselho em forma experimental, como empregando um excelente silo de modelo americano, de onde se tira o alimento diário para as bestas estabuladas.

O local eleito – distante da cidade, pouco mais ou menos, tanto como do centro de Buenos Aires o recinto das exposições de Palermo – compreende 240 hectares, em situação excelente para o propósito – que se completa com uma série de pavilhões espaçosos e adequados, em que já se celebrou no ano anterior a primeira das exposições agro-pecuárias, que hão de servir, segundo o plano idealizado pelo governo, para passar anualmente revista aos progressos agrários do Estado.

As instituições da escola ou Posto propriamente dito são excelentes, em formosos pavilhões de alvenaria e telha, que contêm as vivendas de diretor e sub-diretor, administração e laboratórios, estábulos de bovinos, ovinos, eqüinos e suínos, recinto de ordenhar, perfeitamente organizado sobre o sistema e costumes belgas, fábrica de manteiga, enfermaria, cavalariças de serviço, pavilhão de máquinas agrícolas etc.

Tudo foi feito com amplidão e sobre um plano prospectivo, que credita a iniciativa ao ilustrado critério do doutor Carlos J. Botelho, ministro de Agricultura do Estado, a quem se deve esta interessantíssima fundação.

O projeto, a idéia e o plano mesmo são irrepreensíveis. Apenas se poderia objetar a excessiva variedade de raças com que se dotou o Posto – pois com o perfeito conhecimento que se tem das condições biológicas, zootécnicas e econômicas de cada família pecuária, há base suficiente para limitar as experiências de aclimatação e adaptação a dois ou três raças de cada espécie, com o que se ganha tempo e se evita que toda a indústria pastoril do Estado, que utilizará os serviços do Posto, participe das tentativas e possíveis erros na escolha das raças, usando o que com certeza não lhes servirá, como por exemplo o Hereford em bovinos, por não ser leiteiro, o Hackney em eqüinos, por ser uma raça artificial, com caracteres típicos necessariamente muito frágeis, e o Lincoln, que pensam adquirir, segundo me foi informado, em ovinos – pois bastaria a experiência argentina, se não houvesse outras, para saber que as raças de lã convenientes àquele meio estão dentro das merinas (N.E: maiores, em espanhol, em referência particular a carneiros ou ovelhas com focinho espesso e largo, o nariz com rugas transversas, e a cabeça e as extremidades cobertas, como todo o corpo, de lã muito fina, curta e crespa), de imediato, e se se quer carne, as caras-negras, entre as quais não é difícil assinalar a Oxford-Shire-Down como preferível – e se deseja uma raça inglesa grande não deve ser o Lincoln, mas o Rommey-Marsh o escolhido, que é mais rústico e forte -, não perde, como o Lincoln, com os calores, sua iniciativa de reprodutor, e dá um excelente cruzamento com as raças merinas.

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A EVOLUÇÃO PASTORIL EM SÃO PAULO - Detalhe fotográfico do Posto Zootécnico, que mostra, além dos diversos pavilhões que o constituem, uma parte da pista destinada a passeio da fazenda fina e a desfile de premiados nas exposições anuais
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Sobre estas vistas, parece que, concentrando-se mais naquelas raças que se sabe que seriam adequadas em maior ou menor grado, a ação do Posto Zootécnico, além de ganhar em intensidade, não precisaria perder alguns anos para exercer a função docente que dará realce a seu destino – pois na forma atual seria melhor um mostruário de raças, em que o interessado leigo se depara forçosamente com l'embarras du choix (N.E: o embaraço da escolha, em francês), e escolhe sem ter ele uma convicção e sem que lhe seja sugerida decididamente, como em meu conceito seria o saudável, para marcar rumos precisos e não dar passos em falso, que depois é difícil desandar.

Claro é que a isto vai a instituição, sendo apenas questão de critério no modus facendi (N.E.: modo de fazer, em latim); e não me permito assegurar que meu modo de ver de observador transeunte seja necessariamente o preferível. O que, sim, creio, é que nossos vizinhos esquecem demasiado o inegável progresso zootécnico da Argentina, com cuja observação ganhariam muito tempo e dinheiro em averiguar coisas que já foram há muito averiguadas e resolvidas.

A mesma forma de estabulação que ali e em outros estabelecimentos é imposta aos reprodutores, acusa um transplante de sistemas feito sem descontar bastante as diferenças de clima, que é impossível esquecer sem se expor a sérios contratempos.

O manejo e tratamento das bestas, a cura de suas doenças ordinárias, a profilaxia de suas epizootias, a toilete, o banho, o alimento e sua higiene, infinidade de detalhes que na Argentina são já familiares em suas melhores formas, simplesmente porque levamos muitos anos de aprendizagem, se observam aqui muito imperfeitamente dominados, sendo assim que da prática argentina poderiam ser transplantados com bem pouco custo.

E isto me é agradável ressaltar bem, porque seria um meio mais de aproximações, um amável motivo de nos conhecermos e vincularmos, ao estudar nossos progressos internos. Os criadores brasileiros não perderiam em nenhum sentido seu tempo em acercar-se a ver o que nós já aprendemos nessas matérias, e podem crer que as estâncias e vivendas argentinas se abrirão com prazer de par em par a suas cultas curiosidades; como têm deixado para as minhas invariavelmente francos todos os centros de trabalho, de indústria e de cultura brasileiros, onde têm também muito que ver e que aprender nossa insaciável sede de novos horizontes.

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REBANHO AUTÓCTONE DO BRASIL - Um exemplar típico da chamada raça Caracu, descendente de gado peninsular, que acabou por fixar suas características no meio-ambiente brasileiro. É de forte esqueleto, rústico e são, e tem apreciáveis aptidões leiteiras, fáceis de melhorar. Constitui uma excelente base para fazer uma rápida seleção, cruzando-a com bons touros de raças adequadas, entre as quais a Devon e a Flamenca têm a indicação preponderante. Esta vaca pertence ao Posto Zootécnico de São Paulo e está pastando capim jaraguá, gramínea do país, de boas condições forrageiras e de fácil propagação
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Pondo de parte estes reparos incidentais, o Posto Zootécnico Central, que está formando à sua semelhança outros vários em diversos pontos do Estado, é uma criação transcendental para o futuro de São Paulo, que hoje tem sua opulenta indústria do café como base única da economia, do trabalho, das finanças, da vida toda do Estado.

Sem dúvida alguma, tem séculos por diante esse futuro e as conjeturas são mais de otimismo – pois, afora que não está ainda cultivada senão uma parte de suas terras de café e aqui a planta é de vida secular, é indubitável que o consumo do café tende a crescer, enquanto as terras aptas para seu cultivo diminuem em todos os países cafeeiros – diminuem com o esgotamento e não aparecem outras novas.

Tem pois São Paulo um tesouro praticamente inesgotável por séculos – mas é de alta prudência e de sábio governo abrir outras veias de riqueza que estão latentes – para aumentar por sua vez a solidez e o volume da economia estadual. Nada mais indicado que a pecuária, que aqui como no Rio de Janeiro, como em Minas – para não falar senão do que vi com meus olhos – pode obter grandes e relativamente fáceis prosperidades.

O Posto Zootécnico de São Paulo é um passo firme em tão úteis rumos – e o haver posto em obra essa idéia de futuro, num presente de opulência, quando quase ninguém pensa aí senão no café, nem crê que valha a pena se preocupar com outra coisa, revela uma ilustrada previsão governante, digna de todo aplauso e de todo prestígio popular.

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O POSTO ZOOTÉCNICO DE SÃO PAULO  - Éguas crioulas para cruzamento/vista geral dos edifícios do posto. Campo experimental de forragens - Garanhão Alter, importado - Éguas com crias mestiças em uma pastagem do posto - Carneiros de raças importadas, nascidos no posto - Uma boa raça, vaca Schwitz importada - Garanhão Ardenês, importado
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Ao rápido andar do automóvel – que permitia apenas paradas de minutos e rápidos avistamentos – visitei a Escola Politécnica, a prata trabalhada (N.E.: o termo original espanhol platita labrada, empregado pelo autor, tem simultaneamente o sentido de moeda cunhada de grande pureza, algo equivalente à expressão portuguesa jóia da coroa) dos institutos paulistas – um verdadeiro modelo de oficina de formar homens práticos, em sugestiva simetria com a clássica Academia de Direito.

Os paulistas estão, com motivo, igualmente orgulhosos de sua fábrica de bacharéis, que formou as mais brilhantes inteligências do Brasil, e de sua escola de criar aptidões para o progresso material, para cujo fim responde o instituto aludido, de forma acabada.

Instalado em um palácio, constrói-se outro ao lado para ampliar entretanto as aulas, cujo material de ensino científico faria honra a qualquer grande escola técnica de Itália, Bélgica ou América do Norte, onde esse sistema de fazer homens úteis tem sido especialmente cultivado.

Não tive tempo de ver as escolas primárias senão pelo seu exterior monumental – nem pude fazer mais que cruzar em velocidade os formosos passeios, pois a tarde caía e havia desejo de ir ver a cidade desde as alturas, à hora do crepúsculo. Era entretanto indispensável dar uma olhada ao teatro municipal em construção, cujo aspecto grandioso havia admirado pela manhã, em um passeio a pé com o doutor Assis Brasil – que me fez andar horas insensivelmente, ouvindo-o evocar seus tempos de estudante, que, de passagem, evocavam o passado da cidade, hoje refeita sobre as ruínas daquelas saborosas e aprazíveis tradições, desvanecidas com a trêmula luz dos faróis de azeite, que eram, então, melhor que os inimigos, os cúmplices misteriosos e amáveis das trevas e das aventuras.

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VINHETAS PAULISTAS - As grandes residências da Paulicéia - Palácio da chácara do senhor Antonio Prado, prefeito da cidade, que tem ali, além de uma morada senhorial, um centro de interessantes experiências agronômicas, que serve de recreio para ele e de útil aprendizagem para muitos
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Acabava de ver o teatro do Rio, também em construção, e cuja fachada, em puro estilo Renascimento, tem a graça atrativa de reproduzir, com nobreza suntuária, os traços dominantes da Ópera de Paris. Ali se fizeram as coisas, senão muito grandes, pois o teatro municipal do Rio terá uma capacidade máxima de 1.700 espectadores, com gosto e sem economia, como no propósito de fazer honra ao modelo. Assim, os materiais, afora um bom gosto seguro, são dos mais custosos, havendo-se importado até os ladrilhos, apesar de que os do Brasil são muito melhores que os do Prata. Dentro deste conceito amplamente suntuoso, o teatro custará dez mil contos, ou seja uns sete milhões argentinos -, mas será sem dúvida uma jóia, no duplo e estrito sentido da arte e da riqueza.

O teatro de São Paulo está concebido com outro conceito, de maior amplitude e mais sobriedade no luxo. Mas excederá o do Rio na beleza da localização e terá em seu conjunto uma harmonia de linhas que aquele não pode obter, por causa da exigüidade do terreno e de sua forma irregular.

Isolado por uma praça de 45 metros de largura à frente, por avenidas de 30 metros dos lados e por uma rua de dez metros ao fundo, será todavia realçado opr um jardim exuberante em um de seus costados, que cai inclinado, e por onde se oferecerá em perspectiva destacado em verde, como sobre um imenso e delicado almofadão de veludo.

Trabalhado no estilo barroco italiano – tão móvel e tão sólido por sua vez -, apresenta uma fachada magistral, sobre cuja vestidura de pedra clara destacam-se 32 colunas de granito rosado, redondas – esculpidas em um só bloco, de oito metros de altura cada uma, de um efeito admirável, e realçada todavia sua severa e artística nobreza com embasamentos e capitéis de bronze.

O interior corresponde em geral ao conceito externo – e se não se houvesse incorrido na sensível omissão de suprimir os antepalcos, este teatro, que não custará acima de três milhões argentinos, deteria o título de ser o mais perfeito, harmonioso e belo da América do Sul.

Restada aquela deficiência, ficará entretanto em um nível de primeira importância – fazendo honra à cidade e ao arquiteto brasileiro senhor Ramos de Azevedo, a cujo talento e probidade artística deve em grande parte São Paulo o bom gosto e o severo estilo monumental de seus palácios públicos, e a distinção arquitetônica de suas encantadoras residências.

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VINHETAS PAULISTAS - As grandes residências da Paulicéia - Palacete do senhor Elias Chaves, localizado no centro de um belo parque
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Precisamente, estão as melhores e mais numerosas dessas vivendas, reveladoras do savoir vivre (N.E.: em francês no original, saber viver) da boa sociedade paulista, na formosa avenida deste nome, que com as chamadas Higienópolis, Tiradentes, Rangel Pestana, Intendência, Glette, Nothmann, Burchard, do Triunfo e Barão de Piracicaba, compartem o prestígio dos bairros aristocráticos.

À Avenida Paulista subimos por uma larga rua comercial, creio que a Quinze de Novembro, flanqueada de belas casas novas e animada pelo febril movimento de nossas vias populosas; mas o espetáculo esperava lá em cima, pois a Avenida Paulista se desenvolve em uma moderada elevação, core, dilatada e vistosa, no frescor sombreado de suas alamedas, e à certa altura, por uma depressão do morro, que se recolhe sobre seu flanco como um telão lateral, deixa gozar lá embaixo, diverso, apinhado, pitoresco, o panorama da cidade.

De ali se a vê grande como é, com suas trinta alamedas, suas vinte praças, suas quarenta e uma avenidas, suas novecentas ruas, na acidentação graciosa de sua topografia, acentuada ainda com as torres, cúpulas, mansardas, minaretes e flechas de seus palácios e suas igrejas.

Cinco minutos de contemplação, fixando os rumos, e logo em marcha outra vez, para ir ancorar no Hospital de Isolamento, modelo em seu gênero, distribuído em dez formosos pavilhões, recortadas as ruas de seu vasto recinto por fragrantes alamedas.

Localizado em uma altura dominante a três ventos, o hospital é um passeio e um balcão sobre os amplos vales – donde a escuridão, naquela hora, ia baixando cautelosamente, enquanto sobre as cristas dos morros a luz fluída do sol reinava entretanto, aureolando-lhes os bordos denticulados.

Seguimos o passeio, tomando uma magnífica via de circunvalação, que ondula e se estende por quilômetros, bordejando o vasto subúrbio, sobe e baixa, se torce como uma enguia ou se desenvolve como uma cinta, oferecendo a cada passo um panorama novo, já de uma cidade entrevista à distância, já de próximas vivendas rústicas, já de serras sombrias, já de largas planuras tranqüilas, onde a tarde morre em santa paz.

Uma parada na quinta agronômica, que não pudemos visitar senão sumariamente naquela hora – outra no parque Antártica, onde uma fábrica de cerveja criou um centro de diversão e recreio em que nos domingos aflui em ondas a vida alegre e sadia da cidade –, e logo, após uma repousante meia hora no dito parque, entre as árvores adormecentes, consteladas de pirilampos, regressamos ao centro urbano, radiante de luzes e agitado no incessante ferver de uma cidade que, para completar suas características metropolitanas, tem uma intensa, divertida e brilhante vida noturna.

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VINHETAS PAULISTAS - As grandes residências da Paulicéia - Chácara da ilustre matrona dona Veridiana Prado, mãe do prefeito de São Paulo  relíquia venerada de sua estirpe patrícia. A chácara de dona Veridiana seria uma residência senhorial nas cercanias de Londres
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