Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0300m3.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/13/08 16:42:59
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1840 - por Varnhagen

"...São Vicente, vila talvez a mais inferior de todo o Brasil, não obstante ser a primeira por direitos de antiguidade..."

Santos sempre foi visitada por muitos viajantes, ao longo de sua história, e um deles foi Francisco Adolfo de Varnhagen, que depois publicaria uma importante, embora polêmica, História Geral, sobre os primeiros séculos da colonização do Brasil. Sobre essa visita, o pesquisador e historiador Costa e Silva Sobrinho publicou este artigo - mais tarde incluído em sua obra Romagem pela Terra dos Andradas - no jornal santista A Tribuna, num domingo, 8 de junho de 1952 (página 21 - segundo caderno - ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

SANTOS NOUTROS TEMPOS

Varnhagen e as suas viagens de estudos

Costa e Silva Sobrinho

Era em outubro de 1840. Na frescura matinal de um belo dia, pela estrada de Santos ao Cubatão, dois cavaleiros pouco a pouco se distanciavam da cidade.

Iam já agora na reta, ou "estirão comprido", no dizer dos antigos, que conduzia do Saboó à ponte das Canavieiras sobre o Rio de São Vicente, hoje ponte do Casqueiro.

O primeiro deles montava uma nédia mula. Era jovem, muito no verdor dos anos, tinha amplas espáduas e feições que acusavam o tipo germânico. Firme na sela, rédea na mão esquerda, postura elegante, parava de quando em quando absorto na contemplação da paisagem. Na agrura das serranias distantes, ou nas margens do caminho, em geral baixas, pantanosas, revestidas de manguezais.

Acompanhava-o o segundo caminheiro, velho escravo liberto, cujo muar trotava sacolejando na dianteira da sela uma pequena mala de couro.

Com uma hora de jornada, atingiam o Rio Casqueiro, que, túmido, em ânsias de ser Mar Pequeno, formava como até hoje a ilha de São Vicente. Transposta a ponte, deparavam-se-lhes ao pé desta quatro habitações, ficando uma delas à mão direita e as outras três à esquerda. A primeira das três era da Fazenda Nacional, conhecida por isso como "casa da Nação". Das outras duas eram donos, respectivamente, os herdeiros do falecido Felício José da Silva e Higino José Pereira. A da mão direita pertencia ao major Cipriano da Silva Proost, então um dos abastados negociantes de Santos, pois exportava ele gêneros do país e possuía numerosos prédios urbanos.

Depois, bem mais para a frente, atravessavam a ponte do Rio Santa Ana, ou Rio do Cascalho, de águas remansadas e lampejantes como prata em fusão. Ainda mais adiante, tomavam por um atalho à esquerda, que os levava enfim à casa do sítio Cutiapará, o qual em nossos dias demora na altura do quilômetro dez da estrada de ferro, e à esquerda de quem vai para São Paulo.

Ali encontraram Manuel Dias dos Santos, seu proprietário. Era ele português da ilha do Pico, já quase sessentão, mas robusto, ativo, de braços bem estriados de musculatura e mãos fortes para foiçar o mato.

Do primeiro diálogo estabelecido entre o moço viajor e o sitiante, deduzia-se que tratavam de uma ostreira ali existente. E procurava-a aquele moço, cujo nome era Francisco Adolfo de Varnhagen.

Ao fundo do sítio, projetava-se de fato a massa inerte de um morro de brando pendor, onde entre arbustos recortavam o céu azul as folhagens ondeantes de algumas palmeiras. É o que atualmente é chamado morro da Casqueira.

Não era esse, entretanto, o que Varnhagen fazia diligências por encontrar.

Rodeados de espesso matagal e de terrenos alagadiços, existiam também, a pouca distância dali, no mesmo sítio, os vestígios áridos de outro outeiro. Foram todos em procura deles. E conseguiram encontrar os restos de uma grande ostreira que, impassíveis no decorrer do tempo, tinham ficado isolados na densidão do mato. Destarte, naquele ermo, pôde Varnhagen, com os olhos ávidos, contemplar ainda a parte superior dum esqueleto humano que jazera durante alguns séculos no seio da massa calcária.

Comunicou tudo isso ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual já era sócio correspondente aos 23 anos de idade. Sua carta foi lida na qüinquagésima sessão daquela sociedade, em 31 de outubro de 1840, e assim expunha os fatos que acabamos de narrar:

"Não me devo esquecer de participar ao Instituto que não me olvidei da sua recomendação, a fim de examinar o monte de ossos que viu o capitão norte-americano J. D. Eliot, sobre que C. D. Meigs publicou uma dissertação nas Transações da Sociedade de Filadélfia, cuja descrição eu tinha tido o cuidado de copiar verbalmente.

"Depois de obter as competentes informações, dirigi-me ao sítio de Manuel Dias, que é próximo do Cubatão. Tive a fortuna de encontrar em sua casa o sr. Manuel Dias, onde fui hospedado; li (traduzindo para o português), na presença deste senhor, tudo quanto se descrevia, e que desejava saber se eram aqueles os sinais da sua casqueira. Disse-me que havia dez ou doze anos se verificavam todas as circunstâncias mencionadas, porém que o outeiro fora já todo desmoronado para aproveitar as ostras e mariscos para cal.

"Levou-me depois ao local e então vi que ele não era mais que um depósito de mariscos, análogo aos que frei Gaspar chama Ostreiras, descrevendo-os à pág. 20, e dando-lhes uma origem, cuja veracidade ainda se pode contestar. Eu ainda vi uma caveira com todos os dentes nas maxilas, porém já quebrada; era do tamanho ordinário das da nossa espécie. O sr. Dias disse que de tamanho ordinário eram quase todos os mais ossos. Reservo-me para em melhor ocasião descrever todas as circunstâncias dessas casqueiras, como nesta Província lhe chamam".

Depois dessa investigação acerca da ostreira do sítio Cutiapará, passou Varnhagen a examinar a examinar tudo que se referia ao passado de Santos e de São Vicente.

Esteve ele na Fortaleza da Bertioga, na Fortaleza Velha da Barra, na Fortaleza do Itapema, na Capela de N. S. da Graça, no Monte Serrat, no outeiro de Santa Catarina, na Casa do Trem, na igreja Matriz, no antigo prédio do Colégio dos Jesuítas, no Convento do Carmo, no de Santo Antônio do Valongo, no mosteiro de São Bento, na Santa Casa etc.; e em São Vicente, no porto de Tumiaru, no engenho de São Jorge dos Erasmos, na Matriz e em diversos outros lugares.

Com as Memórias de frei Gaspar ante os olhos, viu tudo, conferiu datas, inscrições e até acidentes geográficos. O estudo do nosso passado encheu-lhe dias inteiros.

Na citada comunicação ao Instituto, escrevia também sobre esse assunto. Merecem traslado as suas palavras. São as seguintes:

"Creio de minha obrigação não dever demorar em notícias a esse Instituto, que não tenho um só momento perdido de vista, depois de deixar essa capital, as obrigações que me impõe a qualidade de seu membro.

"Em Santos procurei, com frei Gaspar à vista, examinar as localidades e inscrições.

"Maior diligência, ainda que pouco profícua no sentido que eu desejava, fiz no Arquivo da Câmara de São Vicente, vila talvez a mais inferior de todo o Brasil, não obstante ser a primeira por direitos de antiguidade. O Arquivo pelo desleixo dos camaristas passados foi não só desfalcado de muitas preciosidades e documentos mais antigos, como mal resguardado, do que resulta achar-se pela maior parte carcomido e sem ordem.

"Achei no Arquivo uma carta de Marcelino Pereira Cleto, datada de Santos em 3 de abril de 1786, que agradece à Câmara os papéis importantes que lhe confiara; e pode ser que, havendo esta facilidade, para outros houvesse a mesma franqueza, e se extraviassem com a morte de alguns que os tivessem entre as mãos. Além disso, sabe-se que há poucos anos um velho escrivão, que tinha em sua casa, em São Vicente, muitos papéis, se negara a entregá-los, e, temendo não levar avante a sua pertinácia depois da morte, os queimara poucos dias antes de falecer. Examinando o local de São Vicente, me convenci que frei Gaspar não teve razão para sustentar a grande questão a favor da casa de Vimieiro, e as poucas palavras de Pero Lopes me decidiram em sentido contrário".

A respeito da vila de São Vicente, converge ao mesmo conceito de Varnhagen o juízo de um munícipe vicentino, em 1842. Assim se referia ele à terra de Martim Afonso: "Lugar hoje decadente, porém cercado de antigas e orgulhosas tradições. Pobre vila de São Vicente!".

De seguida, vamos encontrar Varnhagen em São Paulo. Contava ali com um velho e influente amigo de seu pai, isto é, com o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, então presidente da província.

O brigadeiro Tobias era natural de Sorocaba, município ao qual pertencia a povoação de São João do Ipanema, onde nascera Varnhagen, a 17 de fevereiro de 1816, deste sendo pais o coronel de engenheiros e sargento-mor Frederico Luís Guilherme de Varnhagen, alemão, e dona Maria Flávia de Sá Magalhães, brasileira, e afigura-se-nos até que da mesma cidade. Esse engenheiro militar tinha vindo de Portugal para o Brasil em 1809, a fim de trabalhar na Real Fábrica de Ferro de Ipanema. Pelo seu saber e grande competência em mineralogia, passou em pouco tempo a diretor da fábrica.

Sobre essa passagem por São Paulo do máximo historiador do Brasil, recebemos há poucos dias uma curiosa informação do dr. Afonso de Taunay, ao presente cimo preclaro do saber histórico brasileiro. Ei-la, com os requintes amáveis das expressões do mestre: "Talvez já lhe não chegue com tempo, em todo o caso o aviso. Vai-lhe a título de ardimento de apreço o mais cordial.

"No Registro Geral da Câmara de São Paulo, ano de 1840, à pág. 218, há uma interessante portaria do presidente da Província sobre a viagem de Varnhagen. Conhece-a?".

Não a conhecíamos. Consultamos, por isso, o livro indicado, e demos com este valioso documento: "Portaria do exmo. presidente da Província. - Lida a 31 de outubro de 1840.

"O presidente da Província ordena à Câmara municipal desta cidade, que mande franquear a Francisco Adolfo Varnhagen seu arquivo, para ele fazer as indagações dos documentos históricos de que deseja prover-se para aumentar os seus conhecimentos da história desta Província, a cujo estudo tem-se dedicado com preferência por ter nela nascido.

"Palácio do Governo de São Paulo, 22 de outubro de 1840.- (a) Rafael Tobias de Aguiar".

A quem trazia no primeiro plano das suas preocupações a visita aos arquivos, foi esse sem dúvida um esclarecido auxílio. Examinou, pois, Varnhagen os livros e papéis do Arquivo da Câmara Municipal de São Paulo, os livros de sesmarias da antiga Provedoria da Fazenda e os documentos do cartório dos jesuítas. No Arquivo da Câmara, entre outros documentos antigos, encontrou os cadernos de vereações de São Paulo (1573-1577), da Vila de Santo André (1555-1558) e roteiros de sertanistas.

Visitou depois vários arquivos do interior. E em carta de Curitiba, de 15 de dezembro de 1840, escrevia ao cônego Januário da Cunha Barbosa, dizendo-lhe haver colhido apontamentos em todas as vilas onde havia estado, não só para a história das mesmas, senão também para a História Geral do Brasil, que tencionava compor.

Já em 1839, Antônio de Vasconcelos Menezes de Drumond havia indicado Varnhagen, cujas excepcionais aptidões o repassavam de admiração, para a carreira diplomática. Em ofício reservado de 14 de dezembro, a Caetano Maria Lopes Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, assim se expressava: "Nós ganharíamos com isso, supondo eu, mormente se ele fosse empregado com o título de adido a esta Legação, com o encargo especial de coligir documentos e diplomas para a História do Brasil e diplomática, coordená-los e analisá-los de modo que verifique datas e acontecimentos e apure a verdade do fabuloso que abunda nas relações daquele tempo de propensão maravilhosa".

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que tinha voz autorizada no assunto, procurou influir no mesmo sentido. Destarte, aos 18 de maio de 1842, era Varnhagen nomeado adido de primeira classe em Lisboa.

Vasconcelos de Drumond sabia avaliar as canseiras que dão as buscas nos arquivos. Conhecia o espírito devotado e laborioso do tenaz investigador. Maravilhava-se do gosto que ele tinha para esmiuçar crônicas, para escavar documentos, para explorar na história e na literatura o ouro dos mais ricos filões. Por isso mesmo, conseguiu Varnhagen abeirar-se aos mananciais copiosos dos arquivos portugueses. Suas pacientes investigações foram ali de 1842 a 1846. Em carta de 14 de março de 1843 ao cônego Januário da Cunha Barbosa, inteirava-o do seu processo de trabalho. Desde manhã até as 4 horas era o tempo dividido entre a Legação e as pesquisas na Torre do Tombo, "onde, dizia ele, me vai aparecendo tanta coisa, que não devo fazer mais do que copiar e andar para diante". Tencionava, após as pesquisas, catalogar os documentos e fazer a exposição histórica.

Preparava-se Varnhagen, dessa maneira, para a sua grande obra futura. Em 1847, foi transferido para Espanha. E, como encarregado de estudar nesse país os papéis referentes a questões de fronteira, estendeu suas pesquisas a Sevilha, Simancas e Madri.

Em Simancas encontrou valiosíssimos documentos a respeito das negociações dos tratados de 1750 e 1777, e de tudo que houve antes relativamente à Colônia do Sacramento. Na Relação das Cópias de Manuscritos extraídos do Arquivo Geral de Simancas, escreveu ele: "Passam talvez de 10.000 os documentos acerca dos nossos limites existentes no mencionado Arquivo".

Promovido de secretário de legação a encarregado de negócios, em 1851, começou então a elaborar o seu trabalho mais importante, a História Geral do Brasil, tirada à luz em Madri, em 1854, com este título: História Geral do Brasil, isto é, do descobrimento, colonização, legislação e desenvolvimento deste Estado, hoje império independente; escrita em presença de muitos documentos autênticos, recolhidos nos arquivos do Brasil, de Portugal, da Espanha e da Holanda, por um sócio do Instituto Histórico do Brasil, natural de Sorocaba. Tomo primeiro. O tomo segundo saiu em 1857.

O notável bibliógrafo português, Inocêncio Francisco da Silva, sobre a História Geral, enunciou-se deste teor, no Dicionário Bibliográfico Português:

"Esta obra, objeto incessante das vigílias do autor nos melhores anos de sua vida, não só granjeou o sufrágio e a aprovação dos homens ilustrados e competentes, mas abriu-lhe as portas de várias corporações científicas e literárias, entre elas a da Academia de Munich e da Sociedade Geográfica de Paris, que espontaneamente se apressaram a chamá-lo para o seu grêmio.

"Em Lisboa são raros os exemplares, porque o sr. Varnhagen, destinando a obra para os seus compatriotas, remeteu toda a edição para o Brasil".

A Tribuna publicou no domingo seguinte, 15 de junho de 1952 (páginas 19 e 20) a continuação deste artigo (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

Varnhagen e as suas viagens de estudos

Costa e Silva Sobrinho

O estudo da História Pátria foi a vida inteira o afã, tão saboroso quanto fatigante, de Varnhagen. A História Geral, sua obra dileta, é o resultado da farta colheita de documentos e de preciosos informes respigados sobretudo nos fertilíssimos celeiros dos arquivos portugueses, espanhóis e holandeses.

"Antes dela," observou Rodolfo Garcia, "a história do Brasil quase prescindia dos documentos, abeirada, como se achava, às velhas crônicas, sem dúvida utilíssimas, mas insuficientes, como fontes únicas para a interpretação definitiva dos fatos narrados, para lhes dar a significação precisa, as circunstâncias que os determinaram e a finalidade que cumpriram. O que, nesse sentido e para a época em que se realizou, representa de esforço e inteligência atarefa que se impôs Varnhagen, são forçados a reconhecer quantos têm estudado a sua ação como historiador".

Retornou Varnhagen à Pátria em 1851, e, no fim desse ano, já voltava para a Espanha, de onde poucos meses depois participava ter ultimado as biografias de brasileiros ilustres, que estavam na forja, e dava notícia das pesquisas concernentes às questões de fronteira e aos holandeses no Brasil.

No período de 1852 a 1858, que foi de permanência constante na Espanha, absorveu-se ele inteiramente na publicação da História Geral. Promovido nesse derradeiro ano a ministro residente e designado para Assunção, no Paraguai, pouco tempo depois, sujeitando-se até a uma demissão, abandonava o posto, impressionado com as barbaridades e misérias irrogadas àquele país pelo presidente Carlos Antonio Lopez.

Em 1861 serviu nas Repúblicas de Nova Granada (atualmente Colômbia), do Equador e Venezuela, passando em 1863 a Santiago, no Chile, e a Lima, no Peru.

Aqui vem de molde um ponto que desejamos não deixar no esquecimento, e que é muito sério, é mesmo substancial na vida de todo homem. Referimo-nos a Varnhagen perante as mulheres. Que vibrações teria produzido naquela alma sincera esse sentimento tão forte e delicado, que a nossa imaginação enfeita e transmuda, esse sentimento que tudo despreza quando se deixa prender de um rosto meigo, e que constituiu um inefável encanto e também a maior inquietação na existência, por exemplo, de Rousseau?

Se consultarmos as autoridades na matéria, veremos que Júlio Dantas disse que "a mulher é um capítulo eloqüente e indispensável na biografia e na história de todos os homens célebres". E Eça de Queiroz notou que "o homem, sem um pouco do Eterno Feminino, facilmente se enrudece e ganha uma casca áspera como a das árvores na solidão".

Ora bem, contra os sentidos adotou Varnhagen, sem dúvida, algumas precauções. Não era ermo de afetos, antes pelo contrário, era de embevecida ternura, mas ternura viril, honesta. O sol do Brasil não lhe escaldou a juventude. Conservou ele sempre a integridade da sua moral e da sua inteligência. Foi um novo Sansão à prova das Dalilas.

Pensava como o grande crítico francês Sainte-Beuve, que dizia que "a sensualidade é um grande agente de dissolução da fé, pois nos inocula, em maior ou menor grau, o corrosivo do ceticismo.

"A vaga tristeza que dimana e se evola como um perfume letal do abismo dos prazeres, essa lassidão enervante e desalentadora, não nos causa apenas uma perturbação dos sentidos, mas influi até na boa seqüência das nossas convicções. Padecem as nossas crenças um decréscimo na sua austeridade".

De caráter rude e franco, Varnhagen era áspero por fora e suave por dentro. Extremado nas virtudes e deveres domésticos. Fora feito para o casamento e a paternidade. Por isso, na cidade de Santiago do Chile, a 28 de abril de 1864, casou com d. Carmen Ovalle, chilena. Deu-lhe dois filhos esse enlace de bonançosa felicidade, os quais vieram a usar mais tarde, como sobrenome, o título do viscondado paterno: Porto Seguro.

Cumpre-nos frisar que o título de barão de Porto Seguro foi concedido a Varnhagen pelo governo imperial do Brasil, por decreto de 24 de julho de 1872. O de visconde com grandeza, por decreto de 18 de maio de 1874. Essa denominação de Porto Seguro, escolheu-a ele próprio para título de sua nobreza, porque foi Porto Seguro o primeiro ponto da costa do Brasil tocado pela frota de Cabral. É um nome que nos leva o pensamento ao berço da nacionalidade; e que constitui ao mesmo tempo um designativo dos ideais que sempre afervoraram o ânimo do notável historiador.

O último posto diplomático de Varnhagen foi o de Viena d'Áustria, para o qual fora designado em 1868, e nele permaneceu até 1876. Viajou então pela França, Alemanha, Suécia, Noruega, Rússia, Itália, Holanda, Estados Unidos, e novamente pela Espanha, sempre à cata de novos documentos sobre o Brasil. O termo final de sua carreira coincidiu, destarte, com a fase do mais intenso labor intelectual.

Pedro Lessa, o insigne Pedro Lessa, denominou-o "primeiro historiador da nação brasileira (primeiro na ordem cronológica e no merecimento)". Oliveira Lima considerou-o "o mais valente trabalhador da história nacional: o mais notável dos nossos historiadores". Ferdinand Denis chamou-o, por ocasião do aparecimento dos seus primeiros trabalhos: "Jovem sábio, um dos mais laboriosos e instruídos brasileiros do nosso tempo".

O amor à história foi, entretanto, para Varnhagen, um condão de glórias e também de amarguras. Logo ao alvorecer-lhe a magnífica aurora de escritor e historiador, teve de sacudir sobre adversários rancorosos a poeira das suas maldades. Eis aqui, a esse respeito, um caso que nenhum dos seus biógrafos até hoje mencionou.

Em 1829 vinham a lume, no Porto, três dramas da autoria de I. P. de M. S., iniciais do nome de Inácio Pizarro de Morais Sarmento. Dominavam-se aqueles dramas: Lopo de Figueiredo, ou a corte de d. João II; Diogo Tinôco; e Henriqueta, ou o Proscrito. Os dois primeiros eram históricos.

Varnhagen, que estava seguindo o curso do Colégio Militar de Lisboa e já era inimigo de fumigações de incensos, criticou o primeiro drama, principalmente pelo desprezo com que o seu autor havia tratado a figura de d. João II. Camilo Castelo Branco, depois de contar que os dramas "sugeriram debates mais ou menos facciosos na imprensa de Lisboa, nomeadamente o Lopo de Figueiredo", acrescentou: "Foi notável a altercação de dois jornais de 1839, o Correio e o Diretor".

"Francisco Adolfo de Varnhagen", continua Camilo, "moço de vinte anos, e sedento de glória, com armas débeis para conquistá-la, agrediu, mais apaixonado que douto, o drama de Inácio Pizarro, exposto às provas públicas, e galardoado de aplausos. Saiu o autor em defesa do seu escrito, e tão acesa afinal correu a refrega, que já não houve o terminar-se sem entrarem armas neste certame literário. O certo é que Francisco Adolfo de Varnhagen, algum tanto desairado no fecho da pendência, fez-se de vela para o Rio de Janeiro, sua pátria, e lá, mais discretamente aconselhado no exercício de sua ciência, vingou altear-se a posição de créditos literários, que já agora podem emparelhar com os mais prestadios de Portugal". (Esboços de apreciações literárias, pág. 243).

A parcialidade de Camilo ressumbra em todas as palavras desta frase que ele usara pouco antes: "D. João II, sujeito que o sr. Pizarro detesta cordialmente, e eu também". Ora, Varnhagen defendia d. João II, cognominado O Príncipe Perfeito, soberano odiado pelos nobres porque se manifestara a favor do povo contra os enormes abusos da fidalguia do seu tempo. Estava ele, pois, com toda a razão.

E a sua vinda para o Brasil foi porque se dizia que ele havia perdido os direitos de cidadão brasileiro após a abdicação de d. Pedro I ao trono do Brasil, e por haver lutado a favor deste monarca, que já não era nosso imperador. Ademais, era oficial do exército português.

Tudo isso apareceu quando Varnhagen se tornava conhecido e admirado. Era, pois, obra de invejosos dos méritos alheios, ou de despeitados. De maneira que, para solver tais dúvidas, embarcou em 1840 para o Brasil. Aqui solicitou do governo imperial um decreto que o declarasse cidadão brasileiro. E essa qualidade lhe foi conferida por decreto de 24 de setembro de 1841.

Era ele, pois, muito bom brasileiro, brasileiro "natural de Sorocaba",  como havia declarado naquele volume da História Geral, onde pusera também uma vista de Ipanema, em 1821 - para mostrar que tinha dentro do coração a figura representativa dos seus caros penates e, portanto, que nunca se esqueceria da terra onde nascera.

De muita injustiça foi vítima o criador da Historiografia do Brasil! Inúmeros foram os seus críticos. Por cortar dilações, citaremos apenas um trecho de um deles, porque a crítica foi publicada em Santos, em seis números do periódico denominado O Comercial, de Joaquim Roberto e Roberto Maria de Azevedo Marques.

No número de 14 de agosto de 1853, sábado, há tópicos como este: "A História Geral do Brasil é uma mediocridade que nunca poderá ser condecorada com o título de história, se quisermos ter literatura digna desse nome. Que pasmosa inversão de idéias! Que sátira viva à ilustração de nosso país!". Esses conceitos são de F.I.M. Homem de Melo, isto é, Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo, mais tarde barão Homem de Melo.  Eles não podiam deixar de ser desaceitos e até censurados. Consideremo-los, porém, como delitos da mocidade. O crítico contava apenas 21 anos de idade.

Levar-nos-ia longe o copioso catálogo de todos os trabalhos literários e históricos de Varnhagen. Fora mesmo prolixidade não omiti-lo nesta altura.

Foi Varnhagen, enfim, um espírito rigorosamente lógico, que buscava a verdade sem qualquer concessão ou complacência.

Não possuía decerto a erudição sarcástica de um Martim Francisco (3º). Era austero até na dicacidade. Veja-se, por exemplo, esta piada com que, como se fosse uma bandarilha, asseteou João Francisco Lisboa. Escrevera este: "A verdade é o grande fim do historiador, e, mediante o seu culto fervoroso e constante, a tarefa que ele empreende simplifica-se de um modo admirável. Tal o voto de Thiers".

Varnhagen achou, e com toda razão, que, para a verdade corriqueira do primeiro período, era desnecessário invocar-se a autoridade de Thiers. Grifou pois o último período e anotou a citação do seguinte modo: "O mel é doce, 'segundo Plínio', dizia um estudante de Coimbra... que era um tanto besta...".

Eis aí os relevos principais dessa grande vida. Eis aí os fatos que lhe douram os bronzes da imortalidade.

Conta Capistrano de Abreu que Varnhagen, "pouco antes de morrer, quando a enfermidade mortal o obrigava a guardar o leito, escrevendo a um amigo, o dr. Ramiz Galvão - que a esse tempo dirigia a Biblioteca Nacional - em vez de queixar-se dos sofrimentos que o atormentavam, fazia rolar toda a carta 'sobre questões de história pátria, sobre pontos obscuros que desejava ver esclarecidos, sobre manuscritos cuja existência desejava conhecer'".

E assim termina: "Nobre e tocante vida, votada ao trabalho e ao dever! Grande exemplo a seguir e a venerar!".

Com esse remate cassamos também as velas ao nosso assunto.