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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PORTO & LITERATURA - BIBLIOTECA NM
Os navios iluminados de Ranulpho Prata (C)

Nacionais e de todo o mundo, como os navios que aqui aportam...

 

Clique na imagem para ir ao índice do livroCom o título "História e literatura no porto de Santos: o romance de identidade portuária Navios Iluminados", o jornalista Alessandro Alberto Atanes Pereira desenvolveu esse tema em sua coluna no site PortoGente. Essa dissertação foi defendida como tese de mestrado em 7 de abril de 2008 na Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de História, tendo como orientadora Inez Garbuio Peralta e a banca examinadora integrada também por Wilma Therezinha Fernandes de Andrade e Maria Luiza Tucci Carneiro. O autor enviou o material para publicação em Novo Milênio, em 27/1/2011. Clique aqui<< para obter o arquivo final em formato PDF (2,80 MB), ou veja nestas páginas a versão original, mais completa:

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História e Literatura no Porto de Santos:

O romance de identidade portuária Navios Iluminados

 Alessandro Alberto Atanes Pereira

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Capítulo 1 – A história do romance: a realização de Navios Iluminados, edições e recepção crítica

1.2. O real na obra de Ranulpho Prata

A subordinação da descrição literária ao testemunho do autor, de que temos indício na carta ("pudesse fazer o mesmo aqui"), é expressa ao longo de sua obra, por exemplo, em epígrafes aos seus livros. Elas indicam sua intenção de utilizar o texto literário para registrar a realidade. Em O Triunfo ele utilizou frase assinada por W. Wood levada ao autor por Lívio de Castro:

Seja graciosa ou não seja, a verdade é a melhor coisa que podemos ouvir; é melhor que a lisonja, melhor que a comodidade, melhor que a felicidade, melhor que a bondade, melhor que a beleza [34].

Ou ainda, em O lírio na torrente, obra dedicada a Jackson de Figueiredo, para a qual buscou como epígrafe um trecho do prefácio de A filha do doutor Negro, de Camillo Castelo Branco:

Estou apto para trasladar o que vi e vejo, sem pedir emprestado à imaginativa o que a natureza me não dá. Se, alguma vez, carrego as tintas, ou derramo às mãos cheias flores sobre as úlceras, é isso um excesso de generosidade, que uso com o mundo e comigo.

Restam as misérias vistas: poupemo-nos à estampa, que não corrige nem condena.

Para juiz lá está Deus.

Para algoz, basta para cada um seja o de si próprio [35].

Já a epígrafe de Dentro da vida, dedicado à memória do irmão Felisberto Prata Filho, é uma frase do poeta santista Miguel Couto sobre a natureza da profissão médica:

Não vos esqueças, então, de que se toda a medicina não está na bondade, menos vale separada dela.

À qual acrescentou:

Por menor e mais humilde que seja a sua condição, o homem pode realizar alguma coisa de grande e útil na vida [36].

Ouvir a verdade, trasladar o que se vê, misérias vistas. São as condições que Ranulpho Prata apresentava para seus leitores antes que chegassem às primeiras linhas de suas obras iniciais, escritas com a pretensão de “realizar alguma coisa de grande e útil na vida”. Essa intenção autoral, de presença e testemunho, está também espalhada por sua obra e evolui até a forma em que se dá em Navios Iluminados.

1.3. A experiência clínica do autor em Santos

– Não pode continuar a pegar peso por uns tempos. Vai ter uma licença de três meses. Tome aqui este atestado e procure no escritório o superintendente, o doutor Custódio. (NI, 152) [37].

A frase acima é do doutor Miranda, médico do serviço médico dos estivadores, direcionada ao estivador José Severino de Jesus, o protagonista de Navios Iluminados. Não há como saber quantas vezes o próprio Ranulpho Prata teve que dizer algo parecido aos estivadores que atendia, mas há como se registrar a atuação de Prata como médico em Santos, experiência que preenche 10 dos 12 anos de hiato ficcional entre os contos de A longa estrada e o romance Navios Iluminados, sobre o qual, novamente na entrevista a Silveira Peixoto, o próprio autor considera a importância do testemunho:

– De certo modo posso dizer que fui forçado a escrever este romance. Os personagens viviam em tão íntimo contato comigo, que não foi possível deixar de utilizá-los [38].

Além de chefe do serviço de radiologia para da Santa Casa desde maio 1927, no mesmo ano, conforme anúncio de Prata publicado em A Tribuna em 30 de setembro do mesmo ano, Prata já presta serviços também para o hospital Beneficência Portuguesa, além de atender em seu consultório na Rua Frei Gaspar, no Centro[39].

Em 13 de maio de 1930, a mesma A Tribuna publicaria uma reportagem sobre a inauguração do novo prédio do Ambulatório Gaffrée e Guinle, criado para o atendimento dos trabalhadores do porto em 1926 (Gaffrée e Guinle são os sobrenomes dos sócios da concessionária dos serviços portuários), na qual lista Ranulpho Prata como integrante de seu corpo clínico como assistente de radiologia [40].

Anúncios de 1937 e 1938 ainda demonstravam a ocupação profissional de Prata nos dois hospitais, no ambulatório e no consultório (já na Praça Rui Barbosa, também no Centro, na Casa Alemã, atendimento das 3 às 5 horas) [41].

Dr. Ranulpho Prata, entre os anúncios do Indicador Profissional

publicado no jornal santista A Tribuna em 2 de janeiro de 1938

Imagem: reprodução da página 31 do arquivo da dissertação

A peça de publicidade de 1927 chamava a atenção para "doenças internas", "raios-x" e "tratamento das hemorróidas pela eleotraterapia e injeções esclerosantes". Uma década depois, anos de publicação de Navios Iluminados, os anúncios indicam a realização de exames de pulmões, coração, aorta, estômago, vesícula biliar, rins etc. A experiência do médico nesse intervalo provavelmente permitiu ao escritor conhecer os tipos que trabalhavam no porto e no bairro do Macuco, principalmente do ambulatório da CDS, suas enfermidades, seus sentimentos em relação às doenças e o sucesso dos tratamentos.

No Ambulatório Gaffrée-Guinle, ligado à Sociedade Beneficente Docas de Santos, mas não só nele, Prata deve ter mantido constante com estivadores "chumbeados" [42], como o protagonista José Severino de Jesus (ressalte-se que exame de pulmões é o primeiro item dos anúncios de 1937 e 1938). Essa experiência lhe permite exercitar o caráter testemunhal que vinculava a seus textos nas epígrafes a suas obras anteriores ("ouvir a verdade", "trasladar o que se vê", "misérias vistas").

Vejamos como o ambulatório aparece no romance:

À tarde, compareceu à consulta dos doentes do peito. A vasta sala transbordava de homens, mulheres, crianças. Não quis acreditar que todo aquele povo estivesse doente de moléstia tão ruim e perigosa. No meio dele, viu muitos conhecidos e até o Cassiano, da sua turma, que lhe disse, jovial:

– Que é isto, José, por aqui, também "chumbeado"?

Severino veio para perto dele, perguntando, admirado:

– Você também é doente?

– Como todo este pessoal que você está vendo. Vai pra mais de três anos. Toda semana venho aqui tomar injeção. Estou secando um pulmão. [...]

Severino, passando os olhos pela sala, notou, admirado, que, de fato, a maioria tinha aspecto de boa saúde. Na sua terra quem sofria daquela moléstia (era tão raro!) afinava como palito, e o povo todo fugia do padecente como se fosse bexigoso. Felizmente, o pobre pouco durava, se acabando em três tempos. Ali, pelo que via, as coisas não se passavam do mesmo modo, o mal atacava muita gente que não fazia caso, vivendo misturada com os sãos, trabalhando e até contente como o Cassiano. (NI, 151)

Das mais de 70 indicações profissionais de médicos em 1º e 2 de janeiro em A Tribuna, não mais que cinco informam trabalhar em mais locais que o consultório – embora muitos informem o endereço ou o telefone residencial. Ribeiro Gomes, especialista em partos, além de sua clínica privada e do endereço e telefone de casa, atendia na maternidade da Santa Casa e também no ambulatório Gaffrée-Guinle. Já J. F. Dourado, clínico geral, além das indicações de consultório e residência, mostra que era médico da Beneficência Portuguesa em Santos e em São Paulo. Além do consultório, dos hospitais e do ambulatório, Prata também informa seu telefone residencial (6063) [43].

Antes da experiência em Santos, o próprio Prata havia refletido em 1922 sobre a dedicação ao trabalho médico na frase de Miguel Couto em epígrafe à Dentro da vida ("se toda a medicina não está na bondade, menos vale separada dela"). O acréscimo que faria à epigrafe, de que "o homem pode realizar alguma coisa de grande e útil na vida", porém, não é clara sobre seu alvo, se a prática médica ("fotógrafo de vísceras") ou a prática literária. Considerar sua especialidade apenas a de um “fotógrafo de vísceras” parece indicar que a medicina, ao menos a radiologia, era menos satisfatória para Prata que o ofício de escrever, no que informou a Silveira Peixoto:

Escrevo para satisfazer uma necessidade orgânica. Médico radiologista que não passo de mero fotógrafo de vísceras, escrevo porque não posso deixar de escrever. Há uma força incoercível dentro de mim, que me faz pensar, que me faz arquitetar enredos, que cria em meu cérebro uma porção de personagens, exigem vida própria e não me deixam sossegado enquanto não lhes dou liberdade, enquanto não apanho da pena para fixá-los no papel e aí encontrar suas aventuras. Quer saber de uma coisa?... Gostaria de não ser escritor. Gostaria sinceramente de poder viver uma vida exclusivamente física. Mas, é sina da gente.

Silveira Bueno, por sua vez, traça uma relação entre os dois ofícios, escritor e médico, na realização de Navios Iluminados. O crítico [44], na introdução sobre o autor para a segunda edição do romance (Clube do Livro, 1946), anota como a visão e o testemunho (a prática médica) são na obra de Ranulpho Prata a matéria-prima para a ficção (o olhar do artista), um eco do que o próprio autor reivindicava em suas epígrafes:

 A medicina disciplinara-lhe a fantasia pela observação quotidiana do ser humano, a obra mais real da Criação. O laboratório do médico educara os olhos do artista para tudo ver na medida exata da verdade, embora a fantasia do escritor atenuasse um pouco a crueldade dos episódios [45].

Um desses episódios de fantasia disciplinada pela medicina ocorre no capítulo 18:

No fim dessa mesma semana, foi trabalhar no armazém frigorífico. Cá fora um noroeste bravo, sapecando a pele, escaldando a cidade, e lá dentro uma temperatura de 30 graus abaixo de zero.

Quando o fardo de carne congelada, enrolado de pano branco e duro como ferro, lhe caía nas costas, Severino encolhia-se, fazia caretas, mordia os beiços. Não era o peso, era o frio que o incomodava, que lhe queimava os ombros como uma cataplasma fervendo. A tarde todo e a noite até as dez horas, ficou a carrear para a plataforma do armazém os fardos de carne que o guindaste pegava e depositava nos porões do Witell, que partia ao amanhecer para a Alemanha.

Deixou o serviço com uma dor no peito esquerdo, uma dor fininha que aumentava ao puxar o fôlego. Florinda [esposa de Severino] queimou o lugar com iodo e na manhã seguinte estava sarado. Mas depois do café, ao rumas para o cais, teve um acesso repentino de tosse e tornou a cuspir sangue, desta vez uma estria mais vermelha e mais grossa. Reparou na novidade. Durante o dia, na descarga de sal, as pernas molhadas até os joelhos, o sangue reapareceu por três vezes. (NI, 148)

Do verão do vento noroeste, o trabalho de Severino na estiva continua e avança sobre às garoas do inverno:

Às três horas da manhã, vindo da cantina, onde fora tomar um café quente para espertar, tossiu e tossiu forte, como até ali ainda não o fizera. Subiu-lhe à garganta um líquido morno e doce. E não houve como impedi-la. A golfada, irresistível, projetou-se no chão. Severino arregalou os olhos apavorado. Olhou em torno para ver se não fora observado. E como sentisse vontade de ter novos vômitos, correu para as latrinas do pátio, fechando-se por dentro. Aí, à vontade, botou sangue pra fora a valer. Vendo tanto sangue jorrar-lhe da boca, com o ímpeto e volume das sangrias de bois, em Patrocínio, nos dias de feira, Severino aterrou-se, deu de tremer, alagando-se de suor. Se não sentasse, cairia. Tomou a cor do ladrilho branco que cobria as paredes. (NI, 149)

O geógrafo Carles Carreras y Verdaguer, professor de Geografia e Literatura, ao comentar as descrições dos acidentes de trabalho e do avanço da tuberculose do protagonista de Navios Iluminados, destacou a literatura produzida por médicos. Assim como os padres, sua formação humanista do século XIX e início do século XX os coloca como "narradores privilegiados do drama humano". Escritores sem ser escritores, formam uma categoria profissional com acesso à "documentação humana", matéria-prima de seus escritos [46].

Cabe aqui um comentário de Carlo Ginzburg sobre a influência da forma de conhecimento médico na formação das ciências humanas entre os séculos XVIII e XIX, desde o caso individual até a análise dos indícios. Daí as metáforas do diagnóstico e da "anatomia da sociedade", esta usada, por exemplo, por Karl Marx. Ginzburg vai além e aproxima a atitude do médico em relação ao paciente à do historiador em relação com seu objeto. Comparação que vem bem a calhar nesta análise histórica da atividade literária de um médico:

Mesmo que o historiador não possa deixar de se referir, explícita ou implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis, a sua estratégia cognoscitiva assim como os seus códigos expressivos permanecem intrinsecamente individualizantes (mesmo que o indivíduo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural [47].

O conhecimento médico, vale lembrar, está na base do "paradigma moderno" brasileiro, cujos alicerces são três formas de saber técnico-científico, "a medicina (normatizando o corpo), a educação (conformando as 'mentalidades') e a engenharia (organizando o espaço)"
[48]. Ao se considerar um "mero fotógrafo de vísceras", Prata inclui de uma forma bem particular o peso do saber científico da medicina na conformação da sociedade, ainda mais quando ao "mero" médico contrapõe a necessidade de escrever. Silveira Bueno descreve o amigo como "médico de profissão, mas escritor de nascimento".