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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PORTO & LITERATURA - BIBLIOTECA NM
Os navios iluminados de Ranulpho Prata (I)

Nacionais e de todo o mundo, como os navios que aqui aportam...

 

Clique na imagem para ir ao índice do livroCom o título "História e literatura no porto de Santos: o romance de identidade portuária Navios Iluminados", o jornalista Alessandro Alberto Atanes Pereira desenvolveu esse tema em sua coluna no site PortoGente. Essa dissertação foi defendida como tese de mestrado em 7 de abril de 2008 na Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de História, tendo como orientadora Inez Garbuio Peralta e a banca examinadora integrada também por Wilma Therezinha Fernandes de Andrade e Maria Luiza Tucci Carneiro. O autor enviou o material para publicação em Novo Milênio, em 27/1/2011. Clique aqui<< para obter o arquivo final em formato PDF (2,80 MB), ou veja nestas páginas a versão original, mais completa:

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História e Literatura no Porto de Santos:

O romance de identidade portuária Navios Iluminados

 Alessandro Alberto Atanes Pereira

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Capítulo 2 – A literatura de identidade portuária

2.2 O ciclo do romance de Santos e a literatura de identidade portuária

Nas páginas de A Tribuna de 4 de janeiro de 1938, um texto assinado por Álvaro Augusto Lopes destacava a chegada de Navios Iluminados, publicado no ano anterior. Para o autor, a obra ocupava um espaço que a literatura local ainda não havia preenchido, isto é, era a primeira a tratar do porto de Santos e seu universo de trabalho composto por uma "variedade caleidoscópica de episódios e indivíduos, (...) toda uma população cosmopolita e sofredora". A resenha recebia a publicação do romance da seguinte forma:

Navios Iluminados é bem o romance da pobreza de Santos, que ainda faltava escrever-se. Ranulpho Prata, pelo conteúdo humano que neste livro condensou, afirma-se, mais uma vez, com um dos mais brilhantes romancistas da geração contemporânea [120].

A mesma impressão é a de Rubens Amaral, que escreveu sobre o livro para a Folha da Manhã, de São Paulo, em 13 de março do mesmo ano. Para Amaral, a presença do porto fez com que surgissem na cidade de Santos talentos como Frei Gaspar, os Andradas, Vicente de Carvalho, Alberto Sousa, Martins Fontes, Reynaldo Porchat, Afonso Schmidt e Ribeiro Couto (com a exceção de Schmidt, nenhum deles era romancista), mas, continua o resenhista, naquele momento ainda faltava um grande romance que registrasse a cidade pelas lentes da literatura:

Praia e pescadores tiveram quem escrevesse seu romance e seus contos, quem cantasse as suas dores e as suas glórias. Por dentro das praias e diferentes dos pescadores, há o porto, com os seus estivadores e carroceiros, gente humilde perante a Fortuna, que a esqueceu como a esqueceu a Literatura. [...]

Apareceu agora esse romancista, no sr. Ranulpho Prata, autor de Navios Iluminados, que é história daquela gente do cais em sua mistura com a de Vila Macuco, à margem do giro do café, do movimento de importação, do gozo das praias com os seus balneários e os seus cassinos [121].

Na Folha de Minas, 12 dias depois, Jair Silva faz o mesmo destaque: "Em Navios Iluminados o autor realmente diz muita coisa da vida do mar. Mais, talvez, da existência dos homens obscuros que trabalham no porto" [122].

Ao ocupar um espaço literário ainda inédito, o porto, Navios Iluminados início ao que Narciso de Andrade chamou de ciclo do romance de Santos. Ele tratou do assunto na coluna semanal que assinava em A Tribuna durante a década de 1990, Escritos, ao comentar a obra ensaística do escritor e professor Adelto Gonçalves [123].

O autor não caracteriza o que seja esse ciclo, mas enumera as obras que dele fazem parte: além de Navios Iluminados, formariam o ciclo ainda Cais de Santos (1939), de Alberto Leal; Querô – uma reportagem maldita (1976), de Plínio Marcos, e Os Vira-latas da Madrugada (1981), do próprio Adelto Gonçalves, sem contar o então ainda inédito Barcelona Brasileira, também de Adelto, que só seria publicado no Brasil em 2002 [124].

Em Escritos, Narciso de Andrade publicava poemas, memórias, crônicas e textos sobre literatura como Adelto Gonçalves ou a paixão pela literatura, no qual aponta para a produção literária santista realizada naquele momento. Seu objetivo é fazer o leitor voltar os olhos para a produção literária contemporânea: "mas é preciso que esta cidade saiba que a literatura por aqui não vive só de passado". A idéia de ciclo é assim aplicada para unir obras recentes e pretéritas, oferecendo ao leitor uma perspectiva de continuidade temática e de qualidade.

Narciso de Andrade não inclui no ciclo Agonia na noite, de Jorge Amado, segundo volume da trilogia Subterrâneos da Liberdade (1954), sobre o mundo do trabalho em Santos, Rio de Janeiro e Salvador. O episódio que dá início à trama é uma greve realizada em 1938 em Santos na qual os estivadores se negaram a embarcar café para a Espanha governada por Franco. Na obra de Amado há poucas referências geográficas. Ali o porto de Santos é um espaço mítico ocupado por heróis-estivadores que dão a seus filhos o nome de Luís Carlos em homenagem ao líder comunista Prestes.

Cabe aqui uma reflexão sobre a expressão "ciclo do romance santista": a qualificação "santista" leva a considerar que as obras foram feitas na cidade ou que a tem por cenário. Desde o século XIX, conta Franco Moretti em Atlas do romance europeu (1800-1900), as cidades são os espaços privilegiados dos enredos romanescos, desenvolvidos em tramas e subtramas que reúnem entre 15 e 20 personagens que se movimentam em torno de seus espaços ("socialização secundária"), formando assim o "romance da complexidade".

É por meio desse arranjo tripolar (protagonista, antagonista e "sobredeterminação social") que surge a "forma secreta da cidade, onde a natureza indireta – triangular – das relações sociais se torna inconfundível e inevitável" [125].

Das obras acima, é Barcelona Brasileira que cumpre o requisito de forma mais clara. Seu protagonista, o Poeta (personagem baseado em Martins Fontes [126]), circula de carro entre os mais variados ambientes da Santos de 1917, durante a Belle Époque: sessões nos sindicatos de tendência anarquista, as festas nos salões da classe política dirigente, as redações dos jornais burgueses, as conversas nos bares do Centro.

Ao reunir sindicalistas, trabalhadores, políticos e policiais no universo operário de Santos nas greves de 1917, a ação evita o cenário exclusivamente portuário e se desloca em direção às manifestações de outros grupos proletários (empregados da companhia de bondes e das concessionárias de serviços públicos, por exemplo).

A movimentação interclassista do protagonista – um médico e poeta burguês com trânsito no movimento operário – permite ao enredo mostrar uma série de locais da cidade além do porto. O mesmo faz seu antagonista, o delegado Parsifal Abud, que cruza a cidade desmantelando greves e piquetes. Essa mobilidade é ainda acentuada por serem os dois os únicos personagens do romance que possuem carros (Abud até recebe um novo carro de presente da burguesia local devido aos serviços prestados para a manutenção da ordem na cidade).

Já as outras obras são mais portuárias que santistas. Cais de Santos e Navios Iluminados já trazem essa vinculação nos próprios títulos, como Cais, do poeta Alberto Martins, de 2003 que, lógico, não poderia estar na lista de Narciso. O espaço pelo qual circulam seus personagens é o porto e seu entorno. Eles percorrem os bairros portuários do Centro, Paquetá e Macuco. Com maior ou menor ênfase, estas ficções, ao invés de caracterizar o romance urbano de complexidade, optam pelo microcosmo ligado ao porto [127].

Mas pode-se ainda diferenciar as obras portuárias entre si. Embora contenham diferenças de estilo e conteúdo, Cais de Santos, Querô e Os Vira-latas da Madrugada apresentam o porto indiretamente, por meio de atividades que acabam se desenvolvendo em cidades portuárias, como boates, casas de tolerância, bares, prostituição, brigas, furtos e arranjos informais espalhados num espaço literário que se estende pelos bairros em torno do porto: Paquetá, Vila Nova, Macuco e Centro, que formam, enfim, o "porto dos pequenos expedientes", à margem de sua atividade principal [128].

Em Cais de Santos lemos histórias do submundo da periferia do porto, universo posteriormente retratado por Plínio Marcos. Em um dos episódios, após o assassinato de uma prostituta, suas colegas armam uma greve e até se quotizam para pagar as diárias das que não tinham dinheiro para pagar à dona do bordel. Os vira-latas da madrugada, ainda que distante historicamente dos anos 30, traz a mesma preocupação de registro do universo em torno do porto de Santos.

O romance é baseado nas memórias do autor e jornalista, que passou parte da infância e juventude no bairro do Paquetá, onde está o cemitério de mesmo nome, o Mercado Municipal, as ruínas da Hospedaria dos Imigrantes e a maior parte dos cortiços de hoje [129].

Em Navios Iluminados, porém, é a própria atividade portuária que define a atuação dos personagens, que trabalham como estivadores, taifeiros, operadores de guindastes, foguistas das dragas que limpam o canal do porto e exercem atividades braçais nas oficinas da Companhia Docas de Santos (CDS).

Mais que a exclusividade de funções portuárias exercidas pelos personagens do romance, o próprio Macuco – mais que os outros bairros, à margem do porto – é mostrado pelo autor com ligações mais fortes com o porto do que com o restante da cidade, da qual aparece isolado. O protagonista e todos os personagens vivem em torno do prédio da Inspetoria da CDS. A passagem do livro, logo na terceira página da narrativa (p. 19), em que a sirene da companhia acorda os 5 mil habitantes do bairro é bem representativa desse poder de atração do porto amplificado pela presença de sua autoridade administrativa:

Amanhecia devagarinho. O dia, entrando pelas frestas das paredes de madeira, desenrolava no quarto serpentinas de luz. Da rua, vinham os ruídos de todas as manhãs, muito seus conhecidos: o bonde que passava, trepidante, na outra rua, a Senador Dantas; a buzina do automóvel do leite desnatado; as carrocinhas de pão.

De repente, as cinco sirenes das docas bradaram nos ares, levantando o Macuco em peso, o grande bairro onde se alojava a maioria dos seus cinco mil operários. (NI, 13)

Essa configuração da comunidade em torno do cais foi descrita por Fernando Teixeira da Silva:

O trabalho ocasional estreitava, portanto, a proximidade entre moradia e fontes de emprego, fazendo com que os trabalhadores do cais fossem vizinhos e habitassem nas localidades contíguas ao cais, como os bairros Macuco, Vila Matias, Paquetá e a região central da cidade. Como em outras cidades portuárias, havia em Santos a presença de uma forte endogomia no interior dos bairros ou mesmo de ruas, dando origem a estreitas "comunidades familiares", caracterizadas por sólidas redes de comunicação.

Relações preexistentes às estabelecidas nos locais de trabalho fortaleciam-se, assim, por meio de laços pessoais de contratação de mão-de-obra, sendo comum a constituição de verdadeiras linhagens familiares de portuários, que transmitiam uma cultura de trabalho de geração para geração. Observa-se que, mesmo nas relações entre trabalhadores não aparentados, era comum a utilização do termo "cunhado" para expressar uma forma de convívio familiar no interior do porto [130].

No romance de Ranulpho Prata, o protagonista, o estivador José Severino de Jesus, se locomove entre o chalé do bairro portuário do Macuco e o cais. A cidade completa só é percebida pelo trabalhador migrante quando ele é internado no pavilhão de tuberculosos da Santa Casa e dali, da janela, tem acesso a uma vista geral de Santos:

A distração ali era olhar o panorama da cidade, estendida na planície. Lá estava o canal, abraçando-lhe a cintura. Via-se bem o limite do casario, as filas de armazéns, internos e externos, os vapores alinhados ao cais, a ponta dos guindastes, o fumo das locomotivas e, mais além, transposto o canal, Itapema, a Ilha Barnabé, Bocaina, Guarujá, o verde rasteiro do mangue, o monte Cabrão, o morro das Neves, a serra do Quilombo.

Depois, era o mar, as praias com os seus jardins, hotéis e pensões de luxo. Duas cidades diferentes: a de cá, escura, poenta, cheia de movimento e barulho, suada de trabalho; a de lá, clara, limpa, alegre, refrescada pelo sopro do mar, com gente ociosa no hall dos hotéis, bebendo, tomando banho, espiando as mulheres.

Ao lado do pavilhão, o Monte Serrat, com sua ferida no flanco e o cassino trepado no cocoruto, tapando a vista da velha igrejinha que Severino tanto queria olhar, sabedor de seus milagres. À noite, o ruído e a música do cassino, pingando luz pelos beirais e cornijas, incomodavam demais. Aos sábado, então, quando a folia se prolongava até a madrugada, ele, insone como a maioria dos doentes, escutava o barulho grosso da vida gozada que vinha lá de cima nas asas do vento. (NI, 168-169)

Esse isolamento é a chave da tragédia de José Severino de Jesus. Na cidade, ele é familiarizado apenas com o percurso entre sua casa e o cais; e evita fazer qualquer outro. São poucas e significativas suas saídas do bairro – a conquista do sonhado emprego na estiva, documentação de identidade, registro de casamento e internação no hospital.

Severino até viaja de bonde em uma única vez, mas depois prefere ir a pé para economizar. O Macuco em torno do porto é seu universo. Nesse caso, o bairro, mesmo traçado no mapa da cidade, é um território tomado pelo porto e sua atividade humana. A exploração narrativa desse espaço feita por Ranulpho Prata demarca esse isolamento.

Poucas páginas de Querô ou de Os vira-latas da madrugada contêm mais citações de bares que todo o romance de Ranulpho Prata. Em Navios Iluminados o bar que mais aparece é o Ao Gaiato de Lisboa, perto do chalé em que o protagonista divide um quarto com o amigo.

O bar fica na esquina entre a Avenida Rodrigues Alves e a Rua Senador Dantas. Com outro nome, é uma padaria que está lá hoje no lugar. Ali trabalhadores do bairro se reuniam para uns aperitivos, mas sua função na narrativa é oferecer um lugar em que o protagonista conseguisse consultar a seção de classificados de A Tribuna atrás de oportunidades de emprego. Mais tarde, quando ele recebe uma carta de rompimento, embebeda-se no bar, mas esta é uma situação-limite que contrasta com os hábitos de José Severino de Jesus.

Não que os personagens do romance não freqüentem bares: em determinado momento do livro, o narrador nos mostra uma reflexão de Severino, que não entendia o hábito dos colegas da turma de gastar em bares o curto salário. Mas esse não é o cenário em que se desenvolve a narrativa, com três curtas exceções: uma cena rápida na página 63 na qual Severino é levado ao bar Fura Mundo pelo amigo Felício a de onde logo sai reprovando a "sensualidade grossa" do local; uma cena rápida no Parisien Bar que serve de pretexto para Felício se gabar entre amigos da viagem que fizera a Buenos Aires com dinheiro ganhado no jogo do bicho; e, já no final do livro, quando Severino, já afastado do trabalho por causa da tuberculose, leva o irmão que o visitava, sempre junto com Felício, ao Bar Galo Preto (página 80). É basicamente uma cena de despedida.

Em artigo de 1996 na revista Leopoldianum, da Universidade Católica de Santos, o professor das Faculdades Metropolitanas Unidas Maurício Silva, ao analisar a obra Os vira-latas da madrugada, aponta que o ambiente do porto propicia aos romances com esta temática características distintas do romance urbano da literatura proletária ou da literatura regional:

Sem ser campo, mas também sem chegar a ser completamente cidade, o cais do porto parece situar-se numa zona limítrofe, num indefinível meio-termo, um universo norteado por uma espécie curiosa de natural dicotomia: contém, ao mesmo tempo – e numa mistura que apenas um espaço com características tão originais poderia conter –, particularidades tanto do campo, quanto da cidade, o que nos permite reformular nossa afirmação anterior: para além de ser uma região dicotômica, o cais do porto é, sobretudo, um espaço híbrido [131].

O fato de os estivadores serem uma categoria de trabalhadores avulsos (não empregados), a partir da década de 30, também colabora para que os romances do universo portuário sejam caracterizados como um universo próprio de ficção de forma autônoma à literatura proletária, ligada mais aos centros industriais [132].

Em Navios Iluminados, ao lado do registro das mazelas dos trabalhadores, percebe-se como as características do trabalho surgem no texto ficcional, tais como o trabalho avulso e sazonal, a insalubridade – desde o peso das cargas até a tuberculose da cidade úmida e dos armazéns frigoríficos.

Além do clima, a relação dos personagens com o trabalho e o ambiente do porto é mediada pela paisagem. Não há o espaço fechado das fábricas do romance proletário convencional, os estivadores trabalham ao ar livre, na chuva, no sol e no mormaço.

Além da luta contra o capital, o trabalhador e os personagens que circulam em torno do porto devem enfrentar o meio, uma característica que aproxima Navios Iluminados e a literatura de identidade portuária de obras como Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, onde o sertão ocupa a função narrativa do cais; e Germinal (1885), de Émile Zola, em que as minas de hulha desempenham tal função. Em todas essas obras, o ambiente se alia à "sobredeterminação" social na definição do destino dos personagens.

O espaço portuário se diferencia do espaço proletário também na sua configuração territorial. O porto não é a cidade, fica além dela, tanto que o território do porto de Santos é federal, o município não tem qualquer autoridade ali. Narrativamente, a obra também se realiza na linha intermediária entre a literatura proletária e a literatura regionalista.

O porto é justamente um espaço intermediário, de trocas e contato entre os dois campos. É o ponto de chegada ao país de produtos industrializados importados e de saída de produtos agrícolas e matérias-primas, sem contar o movimento populacional. É esse espaço intermediário que constitui o universo ficcional próprio da literatura de identidade portuária.