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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Santos também teve festas de São Gonçalo

"...mourão é pau, aranha é bicho, pinto é pinto..."

A tradicional festa que ainda subsiste em vários estados brasileiros também foi registrada em Santos, no século XVIII, como relatou o pesquisador Francisco Martins dos Santos, na edição de 26 de março de 1944 do jornal santista A Tribuna (grafia atualizada nesta transcrição):


Imagem publicada com a matéria

(INÉDITO - PARA A TRIBUNA)
Festas de São Gonçalo

(Página santista do século dezoito)

Por Francisco Martins dos Santos
(Fundador do Instituto Histórico e Geogr. de Santos,
da Sociedade de Homens de Letras do Brasil)

No século dezoito não havia carnaval no Brasil. O vírus da pagadoeira ainda não se inoculara no sangue do nosso povo e Momo I e Único ainda não descobrira a terra cabralina mas, em alguns lugares, as festas de São Gonçalo eram o próprio Carnaval de agora, um pouco agravado em suas características, o que não deixa de ser lisongeiro para o mal falado século XX.

São Gonçalo era o santo das danças e das festas ruidosas, incluindo-se nessas festas as cavalhadas. Em Santos não havia cavalhadas, mas havia coisa melhor, mais divertida, e na altura de 1770, as "gonçalinas" eram mais do que tudo aquilo, eram o pretexto para certos excessos, para a bacanal, a folia rasgada e desabusada em que se metiam, por dois ou três dias, brancos e negros, pardos e marabás, rameiras e moças do povo, e também as grã-finas da época, as sinhazinhas ricas, que o vulgo em geral só via nas missas domingueiras, tal o seu recato, e todos seduzidos pelo raro encanto daqueles dias e daquelas noites.

Parece que foi com as gonçalinas que surgiram as máscaras no Brasil, disfarçando a seriedade de alguns, escondendo a identidade de muitos, nivelando e confundindo num divertido anonimato, gente de todo estalão e até circunspectos camaristas, o que parecia não ser do conhecimento dos governadores, instalados em S. Paulo.

Uma carta da época revela as tintas desse quadro paradoxalmente pagão dentro da nossa antiga moldura religiosa. Um Antonio de Siqueira, talvez parente de Frei Gaspar, escreveu-a a um amigo do Rio de Janeiro, enviando-a por mãos do comandante de um patacho Nossa Senhora da Ajuda. Encontramo-la no Arquivo Nacional, entre outras epístolas curiosas. Eis o trecho que nos interessa:

"As gonçalinas nesta boa terra são a coisa mais divertida deste mundo, misturando ofícios e festas religiosas com festas profanas de gosto e feitio bem tropical, saturnais que lembram aquelas descritas nos velhos autores gregos e romanos, e que vão muito bem na tristeza desolada destas marinhas malcheirosas.

"A brincadeira passa da rua para dentro das casas e de dentro das casas para a rua, culminando com uma tal de umbigadas que vai ao som de uma banda de música, misturada com vários instrumentos africanos, realizada na praça, e que é verdadeiramente inesquecível.

"A maior parte das festas são feitas com máscaras as mais diferentes, trazidas da Europa, etc.".

A fama das brincadeiras santistas cresceu tanto, pois tantas foram as liberdades tomadas a cada ano que, em 1772, o capitão-general d. Luiz Antônio Mourão, prevendo o pandemônio da vila litorânea, naturalmente sob influência de queixas religiosas e políticas, provendo ao decoro do seu governo, baixou ao comandante da Praça Militar de Santos, Aranha Barreto, e ao juiz de fora, José Gomes Pinto de Morais, uma ordem severíssima e terminante, datada de 27 de dezembro.

Dias antes da festa tradicional, afixavam-se em vários pontos da vila santista cartazes contendo a ordem do governador da Capitania e faziam-se vários bandos oficiais alusivos à proibição, dizendo isto, que os Documentos Interessantes consignam:

"O snr. capitão general d. Luiz Antônio de Souza Botelho Mourão, faz saber ao povo desta Vila que de nenhuma forma consentirá nos festejos de São Gonçalo, barulhos que se façam estranháveis e repreensíveis, e só permitirá aqueles que forem lícitos ao público, e de máscaras para honra e louvor do mesmo santo com aquele sossego, decência e seriedade que deve haver em semelhantes festividades, por lhe constar que em tais festejos nesta vila andam em chusmas, de noite e de dia pelas ruas, homens e mulheres, do que podem seguir-se ações indecorosas que não devem praticar-se nem consentir-se entre católicos (SIC).

(a) Francisco Aranha Barreto
(a) José Gomes Pinto de Moraes".

O bando estourou como uma bomba nos arraiais da vila santista. O Campo da Misericórdia já estava preparado para o último arranco da folia, exatamente a famosa Dança das Umbigadas, à noite, com fogueiras em torno, bandeirolas, fogos e luminárias de bambu a azeite de peixe da Bertioga.

Os foliões, que incluíam congadas e lutas simuladas de índios e bandeirantes em seus folguedos, ficaram desolados com a notícia, mas pouco resolvidos a cumprir a determinação do governador.

Foi chegando o dia. Chegou. Toda a vila ficou cheia de zumbos, tutúques e retuntuns. Abolia-se o trabalho, voluntário ou não. Urucungos gemiam desde a madrugada, nos fundos de quintais com o despertar dos negros. Atabaques e timutus logo os secundariam, respondidos ao longo pelos corimbós, enquanto as cantigas sensuais dos homens da senzala iam tomando corpo como uma liturgia africana, com pinceladas de velório e matanga. Nas ruas logo apareceram os primeiros grupos mascarados, lembrando o efêmero advento de São Gonçalo. Chegava gente dos sítios vizinhos, de Cubatão, de Jurubatuba, de Itapema, e até de Bertioga, para as brincadeiras.

O povo de Santos dera realmente os ombros à intimação do capitão general e prometia gozar a festa ao modo de sempre. Aquilo de ações indecorosas "que não se deviam praticar nem consentir entre católicos" a que o governador se referia, não lhe doía na consciência e era nada mais que a expansão mais livre dos temperamentos contidos todo o ano, a liberdade um pouco mais ampla dos sentidos, fugindo, temporariamente, aos preconceitos criados por uma sociedade relativamente dissimulada...

Gente que nunca mais se encontraria, que nunca mais se expandiria talvez, que mal havia que se excedesse um pouco naquelas horas tão fugazes das gonçalinas? Assim pensava a gente da terra que pretendia brincar; assim raciocinavam aquelas "chusmas de homens e mulheres" a que se referia o governador português de São Paulo, que aproveitavam a seu talante a liberdade de umas horas excepcionais, bebendo, falando, cantando, amando e caindo pelas ruas.

D. Luiz Antônio, porém, sem aviso a quem quer que fosse, descera para Santos, sem respeito às canseiras e aos perigos da travessia, a ver com seus próprios olhos se suas ordens seriam cumpridas. Talvez nem fosse para isso, e fosse mais para satisfazer uma curiosidade natural, em torno de coisa que nunca tinha visto no Brasil.

A continuação da carta de Antonio de Siqueira desvenda um aspecto das gonçalinas de 1772, vejamo-la:

"Ainda se comenta aqui o escândalo das últimas gonçalinas da terra, o aparecimento do governador durante as Umbigadas, tentando prender um casal misto (preto e branco) que se excedia, descobrindo aí que o indivíduo masculino não era outro senão... e mais não devo dizer até o dia que estejamos juntos, que será breve.".

E com proibição ou sem ela a folia começou da mesma forma, cantando o povo em bandos pelas ruas uns versos críticos musicados, dos mais antigos do gênero conhecido no Brasil:

"mourão é pau... mourão é pau
aranha é bicho, um pinto é pinto
Meu pinto pia
Não seja mau
Que é curto o dia!"

Era, como se vê, audacioso, mas notavelmente crítico e engraçado, sendo pena que se não conservasse a música de tais versos.

Tudo decorreu como sempre, mas desceu a noite e o Campo da Misericórdia começou a se encher como nunca, num burburinho contagiante de curiosos, de foliões, de mascarados e de vendedores de guloseimas.

Às oito da noite o prelúdio das umbigadas já ia num crescendo ruidoso, misto de entrudo e batuque. Logo mais a coisa de desenfreava e a festança pública, sob um céu encharcado de estrelas, tornava-se infernal.

Foi nessa hora que um vulto embuçado começou uma estranha ronda pelo Campo da Misericórdia, atropelado aqui e ali por alucinados foliões em garabulha, visivelmente preocupado com a turba que nem se apercebia dele.

Os sons da charanga semi-bárbara zangarreavam pelo espaço, envoltos na çununga do povo, no estrupido do saracoteio.

O embuçado viu tudo aquilo com certo nojo, com a superioridade de um aristocrata numa aringa em festa no coração da Núbia.

Houve um momento em que a atenção do irrevelado personagem caiu sobre um grupo de foliões mascarados. Pareceu-lhe que aquele grupo começava a incidir nos excessos condenados pelo governador, lançando o mau exemplo aos demais. E o grupo incidia mesmo, começando a destacar-se aos poucos da massa ruidosa e a encaminhar-se aos poucos para os lados do Campo do Itororó, onde se desenrolariam as cenas piores ao abrigo da sombra, homens e mulheres abraçados, a cambalear, a rir e a cantar.

O embuçado encaminhou-se para o grupo e interrompeu-lhe a passagem. Ia à frente do bando um espadaúdo mascarado e foi ele quem, entre duas gargalhadas, perguntou que sombra era aquela, intempestiva, a interromper os passos de pacatos foliões.

Como resposta o embuçado descobriu o rosto e ia dizer umas palavras:

- Silêncio!... Eu sou...

Mas não chegou a dizê-las porque as disse o folião:

- O governador!...

Assim dizendo, em evidente assombro, o folião tentou fugir, evitando talvez a própria revelação, mas d. Luiz Antônio, num gesto rápido, teria lhe arrancado a máscara protetora, passando então a ser ele o assombrado:

- O juiz de fora!... E com uma crioula!...

Estava armado o escândalo.

Disseram ao tempo que Pinto de Morais, inspirado pelo álcool, teria respondido ao governador:

- Excelência... o espírito é forte, mas a carne é fraca!

Disseram ainda que a frase celebrizou-se desde aquele fato.

A verdade é que as gonçalinas de 1772 não foram interrompidas ou molestadas, pelo receio do governador, de novas surpresas... mascaradas.


A imagem de São Gonçalo do Amarante, em Santos, está na Igreja de Nossa Senhora do Rosário
Foto do professor e pesquisador Francisco Carballa

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