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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (11)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Tentação de Anchieta

Sob o toldo vasto de palmas araussu da oca de Cunhambebe, chefe tamoio, um moço ajoelhado reza de mãos postas. Sobre o rosto amarelado e magro, de olhos azuis, rala barba aloirada cobre a pele descarnada e baça. Veste uma sotaina rota de cânhamo grosseiro que a chuva desbotou e no seu peito pende uma cruz peitoral que brilha.

Lá fora, além das caiçaras, soturno e longo, geme o uatupu. Corpos cor de cobre, avermelhados às chamas das fogueiras, contorcem-se numa dança bárbara ao ritmo da melopéia selvagem, toada preguiçosa de canoeiros ao compasso dos remos.

É Anchieta que reza.

É ele que veio de Iperoig, numa piroga de três remos, pedir a paz aos tamoios de Vilegagnon, e que ficara só e heróico entre essa turba brutal, enquanto Nóbrega fora a Piratininga combinar com Tibiriçá.

Muitos dias atinham passado depois que Nóbrega partira e que ele ficara como refém na oca grande e Pindobussu, onde Cunhambebe, o chefe violento, de olho duro e venta chata, soltara gritos de ira com a azagaia erguida sobre a sua cabeça.

A princípio tinha sido a seqüência selvagem de todos esses impulsos rudes: Pindobussu, filho ignóbil e boçal, com a pele escura, tingida de jenipapo, e o beiço pendente e espesso, ao peso das argolas de osso, vomitando injúrias na sua língua bárbara e brandindo um tacape diante do seu corpo indefeso; megeras de ossos a romper a pele magra, untadas de mel, e eriçadas de penas de guará, sacolejando os colares e búzios em torno dos pescoços enrugados e uivando pragas, numa dança frenética e diabólica.

Mas, depois, vencera a doçura. No seu corpo frágil e vagamente corcovado, resistira ele, sereno e heróico, à arrancada selvagem. Já agora o bárbaro cedia. Cunhambebe e Pindobussu, submetidos pelo heroísmo sereno do padre, a ele se aliavam e protegiam. Mais de uma vez Cunhambebe rompera aos berros, ameaçando de lança erguida a quem lhe tocasse sequer de leve o manto, e Pindobussu, o violento, armado de espada francesa, já mais de uma vez acorrera em sua defesa contra as iras de Aymberê. Era a matéria que se submetia ao espírito, era a violência que se rendia à serenidade, era o espírito luminoso do Cristianismo que esclarecia aos poucos a treva espessa daquelas almas rudes.

E sob o toldo de palmas da oca de Cunhambebe, Anchieta rezava. Já há três anos ele labutava nestas terras ásperas d'além-mar. Já três anos de canseiras e sacrifícios tinham passado, desde quando, vindo da Bahia em barco desaparelhado pela tempestade, aportara nas águas paradas do Tumiaru.

De chegar, sentira a rudeza da terra e do homem que a povoava, quando as suas alparcas de sola, marcando os primeiros passos na areia mole, uma seta zuniu dentre a folhagem sobre a sua cabeça. Era a primeira amostra dessa terra cálida de sol e eriçada de espinhos.

Depois fora a luta lenta e penosa na terra inculta. Todas as manhãs, ainda com estrelas tremeluzindo no céu limpo, deixava o seu catre de couro ao toque lento da sineta; e em seguida, de enxada ao ombro, descia ao trabalho da terra.

Então, desde as cinco, ainda quando a madrugada rosando folhas, sob o mormaço, nos calores silenciosos do meio-dia, até quando o sol forte agonizava atrás dos grandes morros, pondo sombras de tarde debaixo das perobeiras, a sua enxada cantava alto na terra seca.

Só então, esfalfado, sedento, alagado de suor, escaldando os pés na terra solta, recolhia. E na mesa nua do refeitório, se assentava diante de um prato de palmito e de uma caneca d'água.

Assim se cavou o poço do pátio, assim se amanhou a horta, assim se plantaram as primeiras romanzeiras do pomar do claustro e assim se levantaram as primeiras paredes de taipa de pilão da igreja do Colégio.

Ante o esforço supremo daquelas vontades heróicas, a força bruta cedia. Já as tribos de Piratininga, submissas e aliadas, retesavam os seus aros em defesa do estandarte jesuíta, já as primeiras crianças guaranis soletravam as primeiras orações a Maria e já se erguia rude, nas suas paredes grossas, a igreja do Colégio, célula-mater da catequese jesuíta nas terras dos brasis. E amanhando terras e amainando almas, três duros anos já tinham passado.

Agora, toda essa obra formidável de esforço, de fé e de sacrifício ameaçava ruir sob as flechas tamoias, aliadas a um bando de corsários franceses, numa luta de cobiça e de conquista.

E Anchieta cismava. De fora, uma brisa leve que cheirava a mato e a flor, trazia a toada bárbara... Um evocar suave de lembranças trazia uma a uma imagens carinhosas que vieram povoar o seu pensamento. Era em Laguna. O bafo morno que vinha da África dava moleza às noites de Tenerife. A casa de seus pais, grande e toda de pedra, com as suas faias altas, seu portal musgoso e o seu escudo de armas, repousava no silêncio e no calor da noite tropical.

Às vezes, dentre folhas, chegavam de longe sons de viola. Uma vez, na sua curiosidade infantil, ele saíra pela treva morna a espreitar. Era num pátio lajeado de pedrinhas miúdas, onde dois homens tocavam viola sentados em mochos, e lânguidas formas femininas dançavam num bater de castanholas...

Assim cismava Anchieta sob o toldo de palmas da oca de Cunhambebe, quando um rumor de pés nus que pisavam folhas fe-lo voltar a cabeça. Um aroma doce de flor arejou a oca como se um frasco de essências se tivesse partido no chão.  E, na meia luz de azeite, um vulto de mulher caminhava para ele.

Um momento, o padre julgou ser a índia que lhe levava o cabaz de água e o peixe assado do jantar. Mais perto, porém, sob a luz mais forte, reconheceu, na sua esplêndida nudez bronzeada de Vênus americana, a filha de Pindobussu. Alta e fina, na linha pura dos quadris fortes de fêmea procriadora, batendo as contas vermelhas de um colar de três voltas sobre os peitos empinados, com o sexo peludo entre as coxas cor de âmbar. Sob as franjas pesadas das pestanas descidas, brilhava a concupiscência dos seus olhos negros.

Lasciva e nua se chegou, roçando as pontas dos seus peitos duros na manga da batina. Da sua carne nova subia um bafo quente que cheirava a erva e a flor.

Um momento o padre vacilou, na tentação daquela carne moça que se lhe ofertava, como se num momento toda essa terra cálida e virgem se tivesse feito mulher naquela noite de maio. E já o seu braço estendia, quando sentiu qualquer coisa de rijo e de uma frialdade metálica vincar o seu peito entre os seios de bronze.

E num momento, então, como névoa que se dissipa à luz forte do sol, passara a sua embriaguez. Era a cruz grande de metal amarelo que rebrilhava sob a luz das resinas. Sentiu então, num lance, a derrocada de todo o seu esforço comprimido por dois braços femininos. Eram os anos de renúncia e sacrifício, o esforço heróico e grandeza épica aniquilados pela doçura da carne.

Num momento, num repelão, afastou-se da bugre. Ela ainda, lasciva e terna, tentou chegar-se, mas num gesto largo, que punha faíscas de indignação nos seus olhos claros, o padre apontava a porta escancarada da oca.

De costas, a medo, num susto que a fez encolher, saiu batendo as contas dos colares de búzios. Então, só, de joelhos e de mãos postas, Anchieta pediu toda a noite fortaleza e ânimo para lutar contra a lascívia envolvente desta terra virgem.


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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