Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0354d3.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/20/08 14:59:30
Clique na imagem para voltar à página principal

HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (12)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes. Neste capítulo, o autor se refere a episódios decorridos em São Vicente (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Os milagres do canário

No cenário verde da terra de Santa Cruz, a doce figura de Anchieta é a que mais se destaca, pelo valor de seu sacrifício, pela tenacidade de seu esforço, pelo heroísmo de sua abnegação, e pela suave simplicidade de sua vida cristã, nessas rudes terras dos brasis.

Pequeno, vagamente corcovado, na sua batina de cânhamo, cortada de um pedaço de vela, o rosto branco de cera, onde os olhos vivos resplandeciam doçura e perdão, movia-se numa faina formigueira, construindo, ensinando, curando, aconselhando, apaziguando, catequizando, modelando, num esforço supremo, o barro informe desse Brasil virgem e selvagem de índios e papagaios.

Em São Vicente de 1555, ele era o médico, o engenheiro, o juiz, o professor, o confessor e o conselheiro. Construindo com as suas próprias mãos as primeiras casas de taipa e palha, cavando o sulco das hortas, ensinando doutrina e gramática às crianças guaranis, com a sua caixa de folha de ervário e a sua lanceta de sangrador, curando, pelas sombras das ocas, enfermos atacados de bexigas ou câmaras de sangue.

Quando numa rixa áspera os tacapes se levantavam ameaçadores, era o apaziguador sereno, e pelas tardes longas de S. Vicente, até quando o sol forte agonizava detrás dos grandes morros, contava lendas suaves e cristãs a toda uma aldeia indígena, que escutava agachada sobre as grossas lajes do adro.

As pernas queimadas de geada, a batina encharcada das chuvas, tiritando na friagem de agosto ou batendo as alparcas de sola, pelas areias incandescentes de Itanhaém, lá vinha ele, com os pés escalavrados pelos matagais da serra, depois de andar sete léguas, para acudir um escravo ou batizar uma criança indígena. Todos esses atos de piedade e fé eram cumpridos com a mais serena alegria e simplicidade.

"Parece um homem de engonços e de pele e ossos, um rosto de cera amarela, ainda que alegre e cheio de risos, uns olhos sumidos, com um vestido que não sabeis se o foi algum dia, os pés descalços esfolados do solo". Assim o padre Antônio Freire descreve a Nóbrega; assim eram todos esses missionários do Bem.

Projetada dentro do tempo, recuando, para além da nitidez dos contornos contemporâneos, a figura de Anchieta ganha então uma luminosidade suave de lenda. Então a sua fé, o seu sacrifício heróico, a sua tenacidade sem desfalecimentos e a graça de seus milagres aparecem envoltos nessa luz romântica e distante do passado.

E como pérolas de um rosário, que se desfia numa prece, um a um, os seus milagres e feitos de sua vida passam dentro de nossa evocação. Aves e feras, árvores e flores, todas as formas da natureza, desde as mais grosseiras às mais delicadas, ele as envolvia no seu grande amor. Pássaros miúdos e ariscos pousavam, com uma familiaridade confiante, sobre os ombros, metiam-se pela amplidão das mangas do hábito, aninhavam-se pela sombra do capuz e cobriam de asas coloridas e palpitantes o seu breviário de padre e o seu bordão de caminheiro. Onças bravias, de goelas sanguinolentas e vorazes, vinham dóceis comer em sua mão, como cães de mama.

Um dia, conta Antônio Cubas de S. Vicente, ele partira de canoa com o Padre e outros homens. O resplendor de um sol africano parecia ferver o mar liso e luminoso. Na estreiteza da piroga, homens suavam, sob os sombreros de feltro; no céu alto e azul nem um fiapo de nuvem esbatia o sol violento, que escaldava os dorsos luzentes dos remeiros bugres remando na proa sob o suor gotejante.

Já os viajantes resmungavam, entre pragas abafadas por causa do calor e da luz violenta que ofuscava, quando ainda a piroga lenta sulcava as águas distantes de Itanhaém. Foi então que o Padre, numa voz alta e clara, chamou as aves que voavam longe e esparsas. Num momento, elas acudiram em bando e, num vôo leve e reto, rumaram para a piroga. Então o vôo verde das maitacas se juntou à brancura das gaivotas e às asas escarlates dos guarás, como num toldo multicor, e, num vôo baixo e disciplinado, cobriram de asas e de sombra a piroga, que correu silente, serena e sombreada, sobre a frescura das águas azuladas...

Outra vez, em Magé, um touro furioso espuma e escarva o terreiro do engenho. Cercas e porteiras já tinham voado em pedaços, sob os cornos furiosos, e já o cano de um bacamarte apontava para o bicho, quando o padre passou. Uma bênção leve como um perdão, acenada de longe, e o touro, numa mansidão de cordeiro, abaixou a cabeça grande e cornuda, entre as mãos finas do padre.

Ano a ano, mais se acendia a santidade de Anchieta. Consumido pelos jejuns e pela insônia, as carnes maceradas sob as pontas de ferros dos açoites, absorto na contemplação, todo envolto no misticismo exaltado da prece, cada vez se afina mais o seu maravilhoso espírito. A super acuidade dos sentidos projeta-se para além do plano físico. Um dia, houve mesmo quem o visse, dentro da sua cela, "coisas de meio côvado", suspenso acima do lajedo, com a face transfigurada e resplandecente...

Cada vez maior, o seu amor se dilata pelo cosmos. No seu grande amor a Deus, ele ama também toda a sua Obra, desde as mais terrenas às mais fluídas e distantes, como a nuvem, a água e o vento, onde chega o halo de sua santidade.

Uma vez, em S. Vicente, representava-se no adro da igreja "A Pregação Universal" a uma multidão enlevada e atenta, quando fortes gotas de chuva caem de um céu baixo de nuvens grossas e escuras. Aqui e ali, pelas cabeças descobertas, a água cai pesada, numa ameaça de tempestade. Um começo de debandada agita a multidão assustada.

Mas, gesto de Anchieta sustém o povo: "Não choverá enquanto durar a representação". E as nuvens baixas e cor de chumbo lá ficaram no céu imóveis e pejadas de água, retendo a chuva nos ares... Só depois de todos recolhidos às suas casas é que se despejaram, com fragor, em lufadas e clarões, alagando todos os caminhos.

Os milagres se multiplicam. Um dia é um indígena já amortalhado no seu caixão de tábua, que se levanta vivo e curado com uma simples bênção do Padre, outro dia é um paralítico que anda, a um seu aceno. Por fim, o milagre se realiza, apenas pela sua presença. Como a catálise na química, onde a simples presença de um metal vem modificar as combinações existentes, assim a simples presença de Anchieta realiza o milagre.

Uma vez, quando ele partira para as bandas de Iperoig, uma longa estiada secou os campos de Piratininga. Sob um sol inflamado, um vento quente e seco desfolha os esqueletos esgalhados de todas as árvores. A terra quente, ressecada e cor de cinza, abre-se, em rachas escancaradas como bocas, gritando água, para um céu impassível. Riachos e nascentes, calam-se, num silêncio triste de abandono e fim. Hortas e vinhedos, agora murchos, agonizam sob o calor. Era o flagelo da seca, que vinha acompanhado da fome.

Há preces em todas as bocas e lumes em todos os altares. Procissões lentas desfilam, para que Deus conceda à terra de Piratininga a esmola da água. Mas no céu límpido, alto, lustroso e impassível, nem a sombra de uma nuvem promete uma gota de água.

Um dia em que toda a esperança parecia findar, súbito os campos reverdecem, galhos se enfolham numa pletora de verde novo; um rumor contínuo d'água marulha entre pedras e raízes, e um aroma fino de vergel passa no ar leve e todas as sebes cobrem-se de flores.

Nesse momento, todo envolto num voar de pássaros, com uma grande alegria cintilando nos olhos azuis, sorridente, ligeiro nas suas alparcas de sola - José de Anchieta aparecia, numa volta da estrada...


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

Leva para a página seguinte da série